terça-feira, 1 de março de 2011

A bola quadrada


Aos seis anos de idade ouvi minha primeira grande promessa e tive minha primeira desilusão. Aprendi nesta ocasião que quem espera nem sempre alcança. Não acredito que isto tenha me tornado uma pessoa melhor ou pior, era uma época de descobertas e não existia um grande sentido metafísico nas coisas, elas apenas aconteciam ou não e te deixavam tristes ou não. Mesmo hoje, sem ter esquecido, essa história não me surpreende, nem ecoa. É apenas memória, reflexo de um tempo que talvez não tenha mudado tanto. Talvez quem fui seja apenas um tipo de caricatura de quem sou. 

Tudo começou com um pedido atendido. Ia sempre à fazenda com meu pai, às vezes todo fim de semana, às vezes duas vezes por mês. Noutras o prazo era maior, passávamos cerca de um mês sem nos encontrarmos em direção a Campo Florido, o que me chateava muito. Gostava de muitas coisas naquela época, vídeo games, futebol, mas nada me era mais caro do que a relação com o campo: calçar botinas, um chapéu, atravessar estradas de terra e, principalmente, andar a cavalo. Minha relação com os equinos sempre foi fascinante. Admirava aqueles animais grandiosos e ao mesmo tempo obedientes, mansos e servis. Eram como símbolos de bondade em um mundo que já se desenhava claro em minha mente: os mais fortes mandavam, nem sempre gentilmente. Os cavalos eram como um novo paradigma. Preciso confessar que me arrependo muito do modo como os tratei algumas vezes. A sensação de dominar um ser daqueles, te deixam no topo do mundo, é algo difícil de se controlar, ainda mais para um garoto. Eu apelava, exigia um pouco mais do que deveria, fazia-os correr como loucos, subir serras sem se cansar, e as esporas eram a minha autoridade. Era deslumbre e logo parei com isso. Eles também se vingaram de mim, e apesar de nunca ter caído já passei por pelo menos três situações difíceis onde tive quase certeza que iria morrer. Um cavalo disparado é algo que te coloca no seu devido lugar. Sendo um apaixonado por esta vida, sem poder desfrutá-la diariamente, propus a meu pai que me realizasse um pequeno capricho. - Nessa época ele já tinha me dado uma égua. Hoje percebo que era fácil para ele dizer que ela era minha. Eu não exigia papéis assinados, nem contratos, nada. Simplesmente gostava muito de andar em uma égua malhada, muito mansa, e um dia pedi e ele disse que era minha. Provavelmente não era - . Mas imaginando que pudesse ser dono do que queria, e buscando soluções para os longos períodos afastado do campo, pedi a meu pai que me desse um cavalo para ficar na casa da cidade. Morava apenas com minha mãe e tínhamos um grande quintal ocupado por um vira-latas que não se incomodaria com a presença de outro amigo. Assim como me "deu" a égua, ele disse que sim. Que em breve arrumaria um cavalo para levar à cidade. 

Dos fatores determinantes para dar veracidade à história o principal foi o pedido de sigilo (mães sempre tentam impedir os planos dos garotos). Aquela cumplicidade entre nós dois, talvez o meu primeiro segredo, era fundamental para me fazer sentir parte de algo, de uma grande trama, um plano infalível que talvez demorasse, mas que surpreenderia a todos. No começo agi como qualquer criança chata, sempre que estávamos a sós perguntava insistentemente quando o cavalo viria, até que, muito seriamente, como os homens falam entre si, ele pediu paciência, e disse que as coisas aconteceriam na hora certa. Deixei de perguntar, mas não deixei de imaginar. Fiz tantos planos para minha vida na cidade com um cavalo que não pude esquecê-los. Era como se toda a minha vida dependesse daquilo. Eu o encaixava em todas minhas atividades. Geralmente, ao me deitar, pensava nele até adormecer. Antecipava como executaria cada uma das tarefas que me eram enfadonhas no dia-a-dia de uma nova forma. O cavalo dava uma nova perspectiva a tudo. Imaginava-me acordando pela manhã. A dureza de sair da cama, escovar os dentes e ir buscar o pão tomava contornos épicos. Ao invés da caminhada solitária até a padaria, da falta de dignidade de sair com o cabelo desarrumado e remelas nos olhos, teria que selar o cavalo, montar, abrir o portão montado nele - algo com um alto nível de dificuldade como abrir porteiras sem descer do cavalo - e sair triunfantemente pela rua. O barulho dos cascos contra os paralelepípedos da Rua Planura atraindo atenção e admiração. Ao chegar e amarrá-lo em alguma árvore todos me olhariam de outra forma: "um boiadeiro", pensariam. Depois voltar, alimentá-lo, e então me preparar para ir à escola. Aqui tínhamos uma grande mudança. Aos seis anos de idade provavelmente eu seria o primeiro dos caras a chegar sozinho, sem os pais. Passaria pelas árvores onde as crianças mais velhas prendiam suas bicicletas com todos me olhando lá debaixo. Pediria à diretora que deixasse meu cavalo pastar no gramado do pátio, e mesmo a idéia de falar com a diretora, até então pavorosa, me era tranquila, "estou falando com um boiadeiro", pensaria ela. A grande expectativa não era ainda em relação a nada disso, e sim quanto às brincadeiras com meus amigos do bairro. Era fácil imaginar a mudança de nível que eu teria com um cavalo. Minha performance seria melhor em tudo, além de poder criar novas situações. Quando brincássemos de "pic-pega" seria imbatível, poderia correr de todos, e se por acaso em um golpe de sorte alguém me pegasse eu chegaria facilmente até eles, num passe de mágica. Quando fossemos subir em árvores estaria já na altura da copa. Quando quiséssemos pular o muro para entrar em um terreno baldio estaria já acima dele. Até maneiras de jogar futebol sobre ele imaginei, particularmente como goleiro. Mais fascinante ainda seria brincar de cavaleiro. A possibilidade de transformar em algo real uma mera brincadeira era inquietante. Quantas vezes subíamos em cabos de vassoura velhos emulando cavalos em nossas batalhas épicas contra inimigos imaginários. Agora não, eu estaria realmente em um cavalo, como um guerreiro medieval. Seria o capitão da tropa, melhor que isso só se tivéssemos armas e inimigos de verdade. Era difícil dormir assim, com tanta expectativa, e quando conseguia era o melhor sono que poderia ter. 

Estava prestes a dizer que todo sonho pode se transformar em pesadelo, mas acho que é um pouco de exagero. O tempo passava, eu guardando o segredo como um nobre acordo entre cavalheiros, e o cavalo não aparecia. Voltei a incomodá-lo, esperava que entendesse minha insistência, aquilo de fato era muito importante. Acho que meu pai sempre foi um homem esperto, daqueles que se livram de um problema com uma frase, mesmo que ela apenas transfira o problema, e ele me disse: "vocês estão de mudança, precisamos ver se a casa nova vai ter um bom quintal". Não esqueci e depois que nos mudamos fui dizer a ele que sim, o quintal era suficiente. Foi então que comecei a desconfiar, quando ele descumpriu um de nossos tratos, e disse: "bom, agora você precisa perguntar a sua mãe se ela deixa". Senti-me traído, tivemos parte de nosso acordo quebrado. Guardei durante um ano, ou até mais que isso, aquele segredo. Resignei-me e fui obedientemente até ela pedir para ter um cavalo no quintal. Aquilo era loucura, mas eu queria tanto o cavalo que resolvi engolir seco e perguntar. A resposta foi o esperado: "você está louco? Aliás, seu pai que está louco. É impossível criar um cavalo aqui". Apesar de tanto tempo passado, de ter mudado de amigos e vizinhança, era como se aquilo não fosse apenas mais uma esperança e sim um fato. E muito pior que perder as esperanças é se despedir de um fato. Ainda tentei argumentar com ele que tínhamos um trato, que ela não poderia fazer nada se chegássemos com o cavalo, mas sabia de antemão que sem seu consentimento seria impossível. Agora percebo que a culpei por ter caído em uma armadilha que não foi criada por ela. Fui vítima do truque de meu pai de que as pessoas se esquecem de tudo, de que precisavam apenas de uma ilusão para acreditar, e assim viveriam felizes por algum tempo, depois se esqueceriam e então tudo ficaria bem. Bom, não posso afirmar que ele seja assim, talvez só tenha procurado uma saída diante de um pedido que hoje concordo em classificar como bizarro. Fiquei por alguns meses com o coração partido, pensando em como teria sido, em como a vida poderia ser um mundo novo com aquele cavalo ao meu lado. Mas tudo bem, de um modo estranho é como se ele tivesse mesmo chegado, e fizemos tantas coisas, vivemos tantas aventuras que, mesmo sem existir de fato, ele me ensinou que o mundo também gira dentro da nossa cabeça. Lamento apenas não lembrar como era seu nome, e mesmo sem isso afirmo que sempre foi meu cavalo favorito.

7 comentários:

  1. Fica difícil acreditar que por trás das "vestimentas pretas" reside um legítimo cowboy. Black Metal, Thrash, Doom... quando na verdade na alma estão impregnadas as marcas de Tonico e Tinoco, Tião Carreiro e Pardinho, Praião e Prainha...
    É o passado que não perdoa, que belo texto, que emocionante... somos todos cowboys!

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  2. Cara, que idéia mais velha essa que vc tem de mim, parece que faz 5 anos que não nos vemos, hehe.

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  3. Estava com saudade dos seus textos! ^^
    Grande abraço, Ruiva ^^
    ou melhor, Paty =P

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  4. Oi Paty, pensei que tinha esquecido do blog, hehe.
    Vamos ver se consigo ser mais frequente.
    Obrigado, abração.

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  5. Ei... tá de greve, eh? Já veio e foi embora de Frutal um monte de vezes e nada de postar textos novos como tinha prometido =/ rs
    Larga de preguiça e volte a escrever! Anda, anda, anda! rs
    Beijao
    Paty =P

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  6. Paty, que nao é mais ruiva. Quando vc mudar a cor do cabelo eu posto algo. Mas que fique claro que achei fantástico, isso é só uma desculpa pra não escrever tão cedo, hehe

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