terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Jogos de Azar



Era uma tarde ensolarada. Férias, sábado, ou algo assim. Jogávamos bola na rua como sempre. Mas tudo mudou quando um garoto passou por ali e nos disse: "a velha da rua de cima está dando gatos. tem uns oito lá". Instântaneamente chutamos a bola pro alto e saímos correndo. Contornamos o quarteirão e não demoramos a encontrar a casa que ele descreveu. Fomos lá por pura e simples curiosidade. Só queríamos ver um monte de gatos amontados. Era algo diferente, afinal.
Não tocamos a campainha. Ninguém leva a sério dois garotos descalços de 6 ou 7 anos. Escoramos a cabeça no muro e ficamos tentando ver algo. Nessa época quase tudo que fazíamos era meio clandestino. Foi quando ouvimos a voz de uma senhora perguntando se estávamos ali pelos gatos. Ficamos acuados, aquela pergunta era quase como uma acusação. Mas era um flagrante, não havia o que fazer, então confessamos. Esperávamos uma reprimenda, "tirem esses pés sujos do meu muro", ou algo pior. Porém, estranhamente ela nos fez entrar e nos levou até o ninho que a gata tinha feito. Não eram oito, mas eram muitos. Todos pretos, do nariz ao rabo, o que nos impossibilitava a contagem. Ficamos um tempo olhando, mas não chegamos perto. Ela fez então a fatídica pergunta: Querem algum? Meu vizinho foi rápido e direto, disse que sua mãe não o deixava ter animais. Eu fiquei um pouco engasgado. Querer, claro, mas nessa época nem tudo na vida dependia de mim. A senhora então demonstrou sua sabedoria, e me deu uma ótima solução: "leve, se sua mãe não quiser, você trás de volta". Acho que era um truque, pois ela conhecia o poder de sedução deles. Foi até lá, pegou um que escolhi - eram todos iguais - e me entregou. Voltamos correndo pra casa, brigando pra ver quem o carregava. Ao chegarmos, pedi que ficassem na calçada, enquanto eu chamava minha mãe. Fiz mistério, disse que havia algo muito importante na rua, que ela devia ver. Esse argumento não funcionou, então teve que ser na força bruta. Arrastei-a pelo braço sob protestos e ameaças de que se não fosse mesmo algo sério eu "ia ver". Não me lembro qual foi a primeira reação dela. Acho que estava muito nervoso para preliminares e me concentrei apenas na resposta final. Ela foi seca, mas concedente "tá bom, mas é responsabilidade sua". Acredito que um clichê nunca foi tão bem vindo. Mesmo com pouca idade já havia passado por algumas situações complexas. O primeiro dia de aula, a primeira briga, amar a professora. Ter ou não ter o gato parecia ter sido a mais fácil delas. Mas as coisas nunca vem sozinhas, e essa foi outra lição que aprendi. A decisão agora era sobre o nome. Perguntei pra minha mãe se ela tinha algum em mente. Não tinha. Meu vizinho queria palpitar, mas o gato era meu, não poderia deixá-lo decidir sobre isso. Pensei umas duas horas, enquanto tentava fazê-lo engordar em tempo recorde (o gato). Ele era preto, ágil, e tinha certa habilidade em fugir da minha marcação. Só podia ser então: Pelezinho (do latim Pelé). Todos aprovaram o nome, e assim se chamou o meu primeiro gato. Já estava levando o Pelezinho pro quarto quando fui barrado pela patrulha vigilante. "Dentro de casa não". Teria de deixá-lo fora, sob todos os perigos da misteriosa noite frutalense - nem todas se vence. Então que ficasse em segurança, ao menos - se na época alguém me dissesse que isso se assemelhava a algum tipo de senso materno eu daria uma estilingada na cabeça. Arrumei uma caixa, peguei todos os panos que consegui achar, e fiz pra ele uma cama com todo o conforto que tapetes e panos em desuso podem oferecer. Coloquei-o lá dentro, orgulhoso de mim mesmo e fomos todos dormir. Eu, satisfeitíssimo com a possibilidade de acordar e ter algo diferente pra cuidar. Dormi pouco e logo que acordei fui correndo até a caixa para ver como ele estava. Mas ele não estava mais lá, nem em lugar algum. Foi então que me dei conta de que o muro estava todo esburacado. Pelezinho nunca mais foi visto por aquelas bandas. E talvez essa tenha sido a minha primeira perda significativa.

Os dias seguintes foram um pouco vazios para mim. Me senti como um dos dois porquinhos que não fizeram fizeram a casa de tijolo. Um boxeador que se prepara meses para a luta de sua vida e cai no primeiro round. Ainda não sei se o que me chateou foi a perda em si ou se foi a minha incompetência. Falhei quando precisaram de mim, quando eu era responsável por algo. As coisas não eram tão óbvias quanto pareciam, e aprender isso doeu um pouco. Talvez por comoção, ou prêmio de consolação, minha mãe me lembrou: "você não disse que tinha uma porção deles? Vá até lá e pegue outro". Isso poderia ter me feito pensar várias coisas: que era uma nova chance, que tudo tem volta, mas o bom dessa fase é que os reflexos são mais apurados que o pensamento, e a única coisa que fiz foi sair correndo novamente até a casa da senhora. Dessa vez toquei a campainha, e mal ela abriu, despejei: "tem outro gato?". Ela perguntou o que tinha sido daquele. Hesitei, mas ela tinha me pego novamente, e só me restava mais uma vez dizer a verdade. Ouvi um aconchegante "acontece". Foi até lá e pegou outro. Assim que cheguei em casa, deixei-o preso dentro de uma caixa e tampei todos os buracos dos muros. Eu sabia que dessa vez não poderia falhar, e que boas intenções apenas não eram suficientes. Todos os detalhes deveriam ser pensados. A vida era um grande jogo de estratégia. Agora ele não teria por onde sair, pelo menos até ter idade de pular os muros. O próximo desafio era velho, e parecia fácil, arrumar outro nome. Mas foi então que um outro vizinho mais velho o complicou: "é fêmea". Até então eu só havia tido animais machos (o cachorro Tapete e o meteórico Pelezinho). E provavelmente pelo fato de serem machos era mais fácil projetar neles algo que eu gostaria de ser, ou tirar um sarro. Mas nunca havia escolhido o nome de uma garota. Não poderia dar um nome afeminado, nem meigo, não queria criar problema. Tinha que ser algo neutro, mas no feminino. Talvez eu tenha exagerado, mas depois de alguma meditação, o único consenso comigo mesmo foi "Bruxinha". Para a sorte dela esse nome durou poucos dias. Logo alguém que entendia um pouco mais de gatos nos disse que estávamos enganados, que era macho mesmo. Bruxinha então virou Slash.

Slash não fugiu, não se rebelou, nem esboçou qualquer reação contra o mundo. Depois de todos contratempos houve apenas calma e silêncio. Foi o gato mais contido que tive - talvez porque todo Slash, para ser feliz, precise de uma guitarra e uma garrafa de uísque, e ele não tinha nada disso. Passou uns quatro anos comigo, e a única coisa que me lembro bem é dele dormindo no quintal. Gostava do dormir no sol. Esticava os braços e as pernas e ficava de lado, ocupando o máximo de espaço que conseguisse. Algumas vezes era obrigado pelo acaso ou por uma bolada a mudar de lugar, mas parecia não se incomodar muito com isso, nem com nada. Aprendi algumas coisas com ele, como o fato de que enquanto os cachorros entendem que mudaram de casa reconhecendo as pessoas, os gatos o entendem sentindo os móveis (dentro de poucos meses ele já vivia dentro de casa). Sua textura, seu cheiro, sua maciez. E me agradava essa percepção física do mundo. Passava alguns dias fora de casa também. Chegava a sumir por até uma semana, e numa dessas simplesmente não voltou. Demoramos um pouco para nos dar conta que tempo demais havia passado, e quando demos por sacramentada sua perda, não houve dor ou drama. Aquele gato era tão sóbrio que por certo saberia onde ir. Que caminhos seguir para uma vida tranquila, como ele gostava. Não dava pra imaginar que ele não voltaria se não tivesse encontrado algo melhor pra fazer. E assim, confiando no caráter dele, não se falou mais no assunto. Dizem que os gatos, quando pressentem a morte, costumam sair do lugar onde vivem, e ir para longe. Já apareceram mesmo alguns gatos mortos no meu quintal, em buracos que aparentemente eles cavaram. Durante um tempo pensei que podia ter sido esse o destino de Slash, mas logo percebi que não. Ele ainda era jovem, forte, e afinal, qual o problema em sair de casa? Muita gente faz isso. Muitos gatos também. Não posso dizer que fiquei feliz, afinal, ele estava comigo há alguns anos. Mas eu acho que talvez eu tenha sentido o que não senti com Pelezinho, a sensação de que algo chegou ao fim na hora certa.

Apesar disso, hoje em dia meus gatos não saem mais de casa. Acho que são felizes assim também. 

domingo, 14 de outubro de 2007

Cronologia anacrônica



Havia em volta de mim
um rio vermelho, que refletia uma estrela
Não sei se ela um dia já foi vista
por alguém que não eu
E em nome do egoísmo infantil
guardei-a em segredo na lembrança

Ontem tentei encontrá-la
mas só havia pedras e peixes
A estrela se afogou
e o céu estava limpo como se fosse segunda
Pensei quantos anos viveria uma estrela
Descobri que tanto ela quanto todas as coisas
que encantaram meus olhos
Vivem os dias necessários,
e não adiam a hora de partir.

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Doodsangst



ANGUISH (uncountable)

1. Extreme pain, either of body or mind; excruciating distress.

Quotations

A terrible scream—a prolonged yell of horror and anguish—burst out of the silence of the moor. That frightful cry turned the blood to ice in my veins.
Sir Arthur Conan Doyle in The Hound of the Baskervilles

Synonyms

* agony
* calvary
* cross
* pang
* torture
* torment

Translations

* Finnish: kärsimys, tuska
* French: angoisse de la mort, affres de la mort, calvaire, croix
* German: Kreuz, Agonie, Todesangst
* Hungarian: aggodalom, gyötrelem, gyötrődés, kín
* Italian: angoscia mortale, agonia, calvario, croce
* Dutch: doodsangst, agonie, doodsstrijd, hevig lijden, martelgang
* Spanish: angustia
* Russian: му́ка f

terça-feira, 15 de maio de 2007

FUNDAÇÃO MÍTICA DE FRUTAL


E foi por este rio bosteiro em que pescavas
que as proas arriaram para afundar a pária?
Iriam às frutas as vaquinhas pintadas
por entre os aguapés da correnteza arisca.

Pensando bem a coisa, supomos que o corguinho
era marrom então como a terra doce
com sua estradinha velha para marcar o latifúndio
em que esbanjou um general e os índios sumiram.

O certo é que dez homens e outros dez arriaram
por um pomar que de largo tinha uns cinco pés
ainda de laranjas e abacaxis povoado
e pedras doloridas que enlouqueciam a cambada.

Fincaram algumas calçadas trêmulas pelo centro,
e dormiram abraçados. Dizem que na matriz,
mas estes são boatos que forjaram no Estudantil.
Um quarteirão inteiro e em meu bairro: Ipê.

Um quarteirão inteiro é o Polivalente,
exposto às alvoradas, aabb´s e contadores.
A quadra similar que persiste em meu bairro:
Claiton Brito, Buraco Fundo e Marretão.

Um armazém rosado como as costas de um pêssego
brilhou e lá no fundo um mameluco gritava;
no armazém cor-de-rosa defloraram o compadre,
rainha da esquina agora, e ressentido e duro.

Já no primeiro realejo saudavam os bóias frias
com seus rostos baixos, sua marmita e pirajubanos.
Por certo o barracão já ostentava na Vila,
alguma viola mandava sertanejos de Goiás.

Uma praça suja e verde surgiu defronte
a igreja. Seus bancos desmoronavam em ontens,
e os homens caiam em um passado ilusório.
Só faltou uma coisa: o fumo Fulgor.

Para mim só na lenda começou Frutal:
entendo-o tão passageiro como a fruta: verde, madura, perdida

sexta-feira, 13 de abril de 2007

O Jogo da Amarelinha - Cap. 7



Toco a sua boca, com um dedo toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a sua boca se entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e desenha no seu rosto, e que por um acaso que não procuro compreender coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que a minha mão desenha em você.

Você me olha, de perto me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de cíclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõem-se, e os cíclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do seu cabelo, enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água.

(Júlio Cortazar. O jogo da Amarelinha)

quarta-feira, 4 de abril de 2007

Buenos Aires: um domingo antigo



Buenos Aires, 03 de setembro de 2006

Não há nada como saborear a derrota do inimigo estando próximo a ele. Quando se vence em meio aos seus pares, todos são tomados por uma fraternidade, que nos traz a acomodação fácil de quem não pode ser mais atingido. O confronto acaba e você está seguro. Quando se está em meio ao inimigo, e é o vencedor há, sobretudo, um desejo secreto de anunciar aos quatro cantos uma suposta supremacia. Contenta-se, entretanto, com uma silenciosa admiração da dor alheia, e uma discreta contenção de explosão em cada trunfo. Apesar disso, me parece uma alegria mais equilibrada, e, ao mesmo tempo, extremamente sádica. Brasil 3, Argentina 0. O churrasco e a Quilmes descendo lentamente pela garganta dos que dividiam o restaurante conosco, enquanto resmungavam e movimentavam os braços. Alguns iam embora, outros chegavam. O que não mudava era a feição de velório ao olharem para os números mágicos no canto da tela. E nós dois ali, falando o bom português sem nenhum pudor, tomando docemente quilmes com fogazzas e sorrisos. 

Depois disso a cidade se calou, e tomada por uma nostalgia (talvez dos tempos em que tinham Maradona) foi toda para a feira de antiguidades de San Telmo. Havia muita coisa, mas confesso que nao me prendi a quase nada. Só me chamaram a atenção alguns casacos. Havia neles qualquer coisa de rústico com o toque nostálgico de Buenos Aires. Não, não caberia na mala, melhor sair logo daqui. Minhas pretensões, afinal, eram outras naquele domingo de sol. As ladeiras, com seus paralelepídos - cravados há 100 anos por homens que vieram do norte, e chegaram pelo que hoje é o Puerto Madeiro - , ajudavam consideravelmente a amenizar a temperatura. As barracas, a quantidade de pessoas, a subida. Quase me sentia incomodado. Mas de fato tudo isso não passava de desculpa. A verdade é que depois de tomar uma Quilmes, tudo que eu queria era tomar outra. E rumamos em busca de um lugar qualquer. Encontramos, por sorte, um bar vazio e agradável. Apoiavam os cotovelos no balcão dois senhores de idade um pouco avançada, bastante corteses. Serviram-nos sanduiches e algumas cervejas. Era um lugar escuro, numa esquina da Avenida Independência. Talvez pela quantidade de pessoas de alta idade, pela decoração, não sei ao certo, mas algo de antigo pairava no ar que respirávamos naquele ambiente, o que me fez imaginar que neste domingo não poderia fugir do saudosismo e das antiguidades. Entretanto não havia o sol, e sim as Quilmes.

Domingo, em qualquer lugar do planeta, é o dia sagrado do futebol, e apesar do providencial clássico da manhã, ainda havia Estudiantes contra alguém e River contra outro alguém. O bar logo se encheu para assistir os jogos. A atmosfera era tão simpática que nem mesmo as crianças me incomodavam. Cheguei até a achar um ou outro engraçado. Perdi levemente a noção de que a Quilmes tem um litro, e tomei aproximadamente o número de garrafas que tomaria se ela fosse do tamanho das cervejas que estou acostumado. Então, entre um copo vazio e um cheio, descobri o segredo daquele bar. Ali as horas passavam mais rápido. O tempo fluía por uma fenda própria no tempo, e nos levava com ele. Os assuntos, os gestos, os copos, certeiros e voadores, como uma bala. Tudo escorregava com agilidade entre as mesas apertadas e a meia luz. Aquela calma era justamente isso: o referencial da velocidade, a rápida leveza contra o peso que tanto dificultava a caminhada do mundo. Tão rápido que quando estava prestes a pedir talvez minha nona Quilmes, vimos o senhor levantando as cadeiras e limpando o chão. O pior, ainda era cedo. Cedo no meu relógio, e no tempo dos mortais, ali dentro já era tarde, embora eu quisesse permanecer naquela mesa por talvez uma parte da eternidade.

Talvez pela grande quantidade de cerveja, não me lembro de mais nada desta noite.

sábado, 31 de março de 2007

Buenos Aires: jazz portenho


Buenos Aires, 02 de setembro de 2006

Uma leve diferença arquitetônica, toques pitorescos de antiguidade. Cafés que mesmo ao sol do meio dia pareciam escuros e sombrios. O vento frio que balançava o cachecol, peça que nunca havia usado. Um ambiente propício para cigarros tão fortes e fumados incessantemente. A fumaça no rosto, o calor no céu da boca. Talvez eu pudesse me perder, e não conseguir me fazer entender. Talvez chegasse a algum lugar de onde não saísse, tomado por uma força magnética. Talvez odiasse tudo, ou ficasse entediado. Essa era a sensação ao me aproximar de cada esquina no primeiro passeio a pé por esta cidade. Embora no fundo eu soubesse o máximo e o mínimo que poderia encontrar. Me entregava ao que estivesse entre isto. Em geral, as simples calçadas e esquinas de um sábado frio. Era o que eu precisava.

Existem aproximadamente cinco pessoas que eu traria a Buenos Aires. Ao menos uma estava comigo. E dividir a experiência de chegar à Praça de Maio era necessário. Subia daquela praça, como de uma ilha avistada ao longe, um cheiro de esperança, misturado com uma sensação de sofrimento. As placas, as pixações, abraçavam-nos ao mesmo tempo que nos olhavam com os olhos transtornados de ódio. Uma sedução arriscada. Como uma vontade quase incontrolável de se jogar de uma ponte, um sorriso macabro perante a idéia da morte rápida e inesperada. Pombas, mendingos, bancos. Uma praça cravada no sul da América do Sul, me trazendo memórias que não vivi. Relembrando fatos que não conheço. Tensionando meus músculos ao ponto de me fazer aqui, nesta praça, numa vigília incessante. Depor quem for contra meus irmãos, quem quiser tomar minha terra. Senti-me parte de algo que sabia não ser. Repugnavam-me os turistas tirando fotos, os grupos de pessoas sorrindo e falando português ou ingles. Incitava-me uma força interna e violenta a algum atentado. A Casa Rosada, exibindo seus guardas emplumados e estáticos. Sentei-me. Olhei com indiferença para os imponentes prédios ao redor. Vi bandeiras tremulando, e senti o orgulho de quem trabalhava ou vivia com janelas virada para ali. Senti-me então traído por nacionalismos que não existem em mim. Monumentalizaram a pátria. Juntaram num mesmo saco todas as bandeiras, todos os interesses, todas as angústias, e disseram "esta é Argentina". O país parecia de fato estar acima de todos. Ou melhor, o país era todos. A maneira de falar o espanhol. As propagandas tão hipócritas quanto as do resto do mundo (a una amiga nunca se deja sola - cigarrillos philip morris).
Levantamo-nos e pegamos o metrô. Havia o silêncio, e o apito do guarda. O silêncio, reprimido. As portas então, fecham-se. O silêncio, o apito do guarda, as portas fechadas. Rumamos para Palermo Viejo.

Espaço. É tudo que posso dizer sobre esse bairro. Também tem verde, zoologico, praças, mas tudo se insere de maneira quase milimétrica na exatidão dos grandes espaços. Os grandes espaços onde é impossível se perder, mas é muito fácil errar. Erramos, não era a Palermo Viejo que tinhamos que ter vindo. A rua que procuramos fica no centro. Impressionou-me como os argentinos (selecionados) de Palermo pareciam sentir-se bem nessa imensidão vasta de Argentina. Eram simpáticos e prestativos. Os cavalos enfeitados que levavam crianças também felizes a um passeio por 25 pesos. Tudo aqui sorria. Vamos ao centro.

Centros são, quase sempre, efusivos e radiantes. Fábricas de extâse coletivo, materializados pelas luzes e vitrines aglutinadas, atiradas ferozmente em retinas sem aviso. Corpos andando num ritmo como o dos peixes, milhares, sem se tocar. Todos olhando aos pontos fixos, e o mundo se diminui, ou aumenta. Entramos nessa, já que o centro de Buenos Aires não fugia à regra. Eu querendo toda a coleção dos livros de Cortazar (baratíssimos), e minha amiga selecionando um ou outro filme nos cartazes (e querendo os livros do Cortazar). A rua Corrientes, um mar de água doce e quente. Infelizmente um pequeno contratempo nos aconteceu, e precisamos deixá-la. Desfrutamos dos serviços públicos, e para amenizar, fomos a um bar onde acontecia um show de jazz. À noite em San Telmo, todos os bares sao pardos. O unico critério para entrar ou não seria cara ou coroa. Por mais que andássemos, víamos sempre os mesmos rostos, nas mesmas mesas, etc. Esse etc. tornava a simples busca um enorme cansaço. Até que a sorte nos trouxe o jazz, e uma pizza de mussarela.

segunda-feira, 26 de março de 2007

Buenos Aires: a chegada




Buenos Aires, 02 de setembro de 2006

Chegar até aqui nao foi nada fácil. Nao me refiro unicamente às 33h preso na condução. Não. Apesar da distância e da demora, havia sempre a janela, e algo novo. Paisagens, nada excepcional, mas em todo caso, paisagens que ainda não havia visto, possibilidades de surpresa a cada quilômetro rodado. Esse instinto de curiosidade sempre me repele qualquer sensação de tédio ou de insegurança. Refiro-me, mais que tudo, ao longo caminho entre a vontade de estar em Buenos Aires e de fato estar em Buenos Aires. Muitos de meus planos apenas nascem e morrem, nunca crescem ou frutificam. Este não. Circunstancias foram me levando a cada vez mais quere-lo, e mesmo quando não pensava necessariamente nesta cidade, ela se encaixava perfeitamente ao desejo de uma fuga planejada.

Lembro-me de uns três anos atrás, quando Fernando, Gil, e eu, programamos ir a Buenos Aires. A vontade maior era estar com meus amigos, mas Buenos Aires me pareceu, além de tudo, um destino agradável e pitoresco para este feito. Não fomos, mas a vontade não morreu. A literatura ajudou: primeiro Borges, e depois Horácio Oliveira, quando Bons Ares se tornou quase obrigação. A conversa no porto, os arredores caóticos. Eu sentia que de alguma forma tinha de viver aquilo. E, mais recentemente, dissertando numa tediosa noite de domingo, rascunhei em algum canto: "eu ando precisando mudar de ares, de música nova, de uma língua nova.", e juro que nesse dia nao pensava nessa viagem específica. Como eu disse, Buenos Aires era a fuga perfeita.

Bom, como cheguei agora a pouco, posso falar apenas de minhas primeiras impressões. Viadutos... chegamos por uma parte da cidade com muitos viadutos. Apesar de achá-los belas construções, me incomodam, principalmente quando estou a pé. Me deixam um pouco perdido... mas logo passamos por eles, e a primeira claridade do dia apareceu. Veio a melhor parte: as árvores secas por causa do inverno.. todas, sem folhas, sem vida. Tudo opaco, acinzentando as fachadas dos prédios, os cachecóis, o rosto dos que acordam cedo, um cinza que não era triste, era apenas sóbrio. Esse cinza, que de vez em quando também acontece no Brasil, sempre me afugenta instantaneamente a felicidade e a tristeza. Sentimentos que talvez não sejam tão ajustados a minha personalidade.

Quando desci do ônibus o vento era cortante e implacável, e a minha primeira lembrança foi a Loveless. Sim, acho uma boa relação: corte, frio, sobriedade. Se você é muito emocional, nao controla uma Loveless.. se é muito racional, calcula melhor a temperatura da chegada e se precave. Mas era um frio que me dizia: vá em frente, isso não é um obstaculo, é um presente meu para você, que tanto quis me conhecer.

Agora vou deixar minhas bagagens no quarto, tomar banho, e ver o que mais essa mítica cidade me preparará.


"Son para el solitario una promesa
porque millares de almas singulares las pueblan
únicas ante Dios y en el tiempo
sin duda preciosas.
Hacia el Oeste, el Norte y el Sur
se han desplegado – y son también la patria – las calles" (Borges, Las calles)

sexta-feira, 23 de março de 2007

Nocautes Históricos: Marciano x Louis




Alguns nocautes são lembrados por serem plasticamente intocáveis. Outros, por terem acontecido em lutas envoltas por diversos fatores que as tornam especiais. O nocaute de Rocky Marciano em Joe Louis tem isso tudo em doses cavalares. A primeira frase que me ocorre ao lembrar dele é: "o fim de uma era, o começo de outra". Alguma coisa como se o sol, ao morrer, gerasse uma outra estrela, tão poderosa quanto.
Se Joe Louis, com a carreira que teve, precisava ter se exposto a isso, é a pergunta que não cala. Lutar boxe deve ser difícil. Dedicar seu tempo e sua vida a isso. Deixar de lutar boxe é ainda pior. Em que dedicar sua vida e seu tempo? Joe Louis tentou parar. Ezzrard teria sido o último, mas o boxe tem lá suas nuances. Se Louis vencesse, a sua carreira, tão gloriosa, seria encerrada do modo mais nobre que qualquer pugilista poderia sonhar. Acho que mesmo tendo perdido, não foi desonroso. Louis passou o bastão, e o fez em cima do ringue. Sucumbiu de um modo e tanto... Sim, foi um nocaute fortíssimo e que talvez Louis não merecesse. Lembrar daquele garoto negro, rápido como uma bala e preciso como nunca havia se visto até então. Ou imaginar o homem perturbado de alguns anos depois desta luta. E ver Louis caindo fora do ringue. Não, Louis não merecia um nocaute desse. Mas Marciano merecia conseguir esse nocaute. O rapaz mostrava naquele momento o surgimento de um dos socos mais poderosos do boxe. Marciano nunca perdeu uma luta, e nocateou quase todos que o enfrentaram. Joe Louis foi não só a catapulta física para essa carreira irretocável, mas acredito que tenha sido a psicológica também. Não foi atoa que Marciano disse a Louis depois da luta "eu sou seu fã", e nunca escondeu a ninguém que Louis havia sido o grande inspirador de sua carreira. Imagino a cabeça do jovem Marciano ao ter em seu campo de visão, num determinado segundo, Joe Louis em queda livre e o seu braço esticado, ainda tocando o rosto do ídolo.