quarta-feira, 2 de março de 2016

Resenha: Milton Hatoum - Dois Irmãos



"Dois irmãos" é a história dos gêmeos Omar e Yaqub, inimigos em um conflito constante que marca suas vidas e a de todos à sua volta. Porém não é apenas um livro sobre esta rivalidade, espécie de interpretação livre e contemporânea da história de Caim e Abel. Há de fato a intertextualidade com o relato bíblico: irmãos que recebem atenção diferenciada por parte da mãe desde o nascimento, tal como o deus que prefere Abel, deixando Caim enciumado e propenso à vingança. Neste paralelo Abel seria Omar, o filho preferido pela mãe, escolhido para ficar na casa quando começam os conflitos entre ambos na adolescência. Yaqub é Caim, o renegado, enviado para longe de casa como solução dos problemas, fechado para sempre em sua rejeição. Ao se tornarem adultos se mantém opostos, um escolhe a disciplina exagerada, o outro transforma a vida em uma festa onde todos pagam a conta. Mas Hatoum vai além, transformando lentamente os gêmeos, alternando qualidades e defeitos, distintos porém devastadores, nas personalidades que construiu completamente opostas, a ponto de não se reconhecerem em absolutamente nada além da aparência física que os une - esta também rompida por Omar ao deixar uma cicatriz no rosto de Yaqub. Assim como Caim, Yaqub se vinga, mas é Omar, tão ou mais responsável pela destruição da própria família, quem sofre a pena final de ser um fugitivo vagando sem rumo pelo mundo. Yaqub, apartado da casa e da vida que deveriam ter sido suas, refaz a vida distante, não sendo capaz de perdoar o irmão e atender o último pedido da mãe. Também Omar nunca pede perdão pelas vidas que destruiu.

Mas "Dois irmãos" não é apenas sobre estas vidas divididas que deixaram seu rastro de guerra sobre toda a família. É também um livro sobre imigrantes libaneses, Halim e Zana, pais dos gêmeos e de Rana. Sobre como chegaram e viveram, construindo do outro lado do mundo um pedaço da sua terra, ressignificando o mundo tropical com suas tradições, comendo peixe frito com Arak, mesclando o português com o árabe, se apegando a objetos que lembram o que ficou no Líbano, enfim, todas as pequenas e grandes coisas que não se localizam geograficamente senão pela ação dos deslocadas. Zana é a mãe superprotetora de Omar, que deixa a criação de Yaqub a cargo de Domingas, a índia que serve a família numa quase escravidão. A matriarca zela por três coisas em sua vida: sua casa, a memória do pai, e seu filho Omar. Sacrificará todo o resto para manter estas três coisas intocadas e próximas de si, mas acaba por abrir mão até das duas primeiras para satisfazer o filho. Halim é o pai que nunca quis ter filhos. Um imigrante simples que desejava ganhar apenas o suficiente para passar a vida em um amor erótico com a esposa, jogando e bebendo com os seus. Abriu um comércio onde recebia mais amigos que clientes, assim era feliz. Porém os filhos mudaram tudo, os gêmeos tiraram-lhe a paz com Zana, abalando para sempre o amor carnal que tanto os fazia feliz; Rana, a filha mais nova, acaba por tomar conta dos negócios do pai e transforma sua pequena venda de bugigangas em uma grande loja, saem os amigos e entram os clientes, uma apaixonada pelos negócios e astuta na arte de lucrar. Halim vai se retirando de cena na própria casa, virando um recluso na própria vida. Na loja fica apenas com uma salinha de onde olha a rua, lembrando e esquecendo de si, culpando os filhos pela vida que teve.

Domingas, inicialmente uma personagem secundária, vai crescendo na trama e se torna peça chave no enredo. É uma índia que ao se tornar órfã foi entregue a um orfanato católico, onde aprendeu a rezar e trabalhar. Seu sonho revoltado contra a instituição é o desejo de um novo destino, que acaba sendo a casa da família. Ali seu martírio continua, ainda sem liberdade, rezando e servindo dia e noite, acordando madrugadas seguidas para cuidar de Omar depois de suas bebedeiras. É também a mãe do narrador, Nael, filho de um estupro ou de um amor proibido tolerado em segredo na casa. Nael, o narrador, é outro caso à parte. Temos, em meio a tanta intensidade, uma narração que ao mesmo tempo pode observar tudo e ainda está imersa na história, tem seus próprios sentimentos e conclusões. Ele é um dos explorados, uma das vítimas da casa, e isso torna a narrativa ainda mais pessoal, repleta de inconformismo e dúvida.

Difícil ser conciso ao escrever sobre um livro com tantas reflexões possíveis, mas para terminar ressalto ainda dois pontos que circulam e constroem a história: Manaus, a cidade que ao longo da trama vai deixando de ser provinciana, simples e próxima, para se tornar uma metrópole capitalista, impessoal, com grandes obras, mudança no fluxo de trabalho, demolições, e esta é uma segunda perda para os imigrantes mais velhos, especialmente Halim, como se tivesse novamente se deslocado; o outro é o estabelecimento da ditadura militar na cidade, os saraus clandestinos, a prisão do professor de literatura, sua morte, a revolta e a impotência diante da opressão, o único aspecto capaz de aproximar alguns personagens.

Das muitas formas de se compreender o mundo através de uma história familiar, Hatoum criou uma das mais interessantes possíveis.