quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Causa Perdida



"Meu avô francês foi feito prisioneiro pelos prussianos em 1870; meu pai alemão foi feito prisioneiro pelos franceses em 1918; eu, francês, fui feito prisioneiro pelos alemães em junho de 1940, e depois, recrutado a força pela Wehrmacht em 1943, fui feito prisioneiro pelos russos em 1945. Veja o senhor que nós temos um sentido da história muito particular. Estamos sempre do lado errado da história, sistematicamente: sempre acabamos as guerras com o uniforme do prisioneiro, o nosso único uniforme permanente."

Michel Pollak. Memória, esquecimento, silêncio. 

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

A Brincadeira


Quatro trechos do livro "A brincadeira", de Milan Kundera. Todas as partes são de capítulos do personagem Ludvik.

Independente dos trechos descritos, que soltos não dizem nada da história, o mote do livro me lembrou um pouco "A piada mortal", do Batman. A teoria de que um dia ruim pode mudar toda a vida de um homem. (Aliás, o segundo lembrou o primeiro, já que este fora escrito mais de vinte anos antes). E quando muita gente fala a mesma coisa, pode ser que seja verdade. Mesmo que o Batman não concorde.



"Tomei um velho bonde de bitola estreita que percorria um caminho cheio de curvas, caminho esse que ligava entre si os distantes bairros de Ostrava, e deixei-me levar ao sabor do vento. (...) Toda essa periferia interminável de Ostrava, em que se misturaram estranhamente as fábricas e a natureza, os campos e os depósitos de lixo, os bosques de árvore e os entulhos, grandes prédios e casinhas campestres, me atraía e me perturbava de maneira extraodinária; tendo deixado definitivamente o bonde, comecei um longo caminho a pé: contemplava, quase com paixão, a estranha paisagem e esforçava-me por decifrar-lhe o sentido; procurava o nome daquilo que confere unidade e ordem a esse quadro tão disparatado; passando perto de uma casa idílica coberta de hera, percebi que ela estava em seu verdadeiro lugar aqui precisamente porque não combinava de maneira alguma com as altas fachadas repugnantes que se erguiam nas proximidades, nem tampouco com as silhuetas das escoras, das chaminés e dos altos fornos que lhe serviam de pano de fundo. (...) Essas incompatibilidades me perturbavam, não apenas porque elas me apareciam como o denominador da paisagem, mas, sobretudo, porque eu enxergava nelas a imagem de meu próprio destino, de meu exílio aqui; e, naturalmente, tal projeção de minha história pessoal na objetividade de uma cidade inteira me proporcionava uma espécie de consolação; eu compreendia que não pertencia a esse lugar, como a ele não pertenciam o chorão e a casinha coberta de hera, como a ele não pertenciam as ruas curtas que levavam a lugar nenhum, ruas compostas de construções disparatadas; eu também não pertencia a esse lugar, outrora alegremente rural, agora com essas horrendas quadras de barracos baixos, e me dava conta de que era porque eu não pertencia a esse lugar que meu verdadeiro lugar era aqui, nessa consternadora metrópole de incompatibilidades, nessa cidade cujo abraço implacável envolvia tudo o que era estranho em si." p. 71-72

"É, agora eu via isso com clareza: a maioria das pessoas se entrega à miragem de uma dupla crença: acredita na perenidade da memória (dos homens, das coisas, dos atos, das nações) e na possibilidade de reparar (os atos, os erros, os pecados, as injustiças). Uma é tão falsa quanto a outra. A verdade se situa justamente no oposto: tudo será esquecido e nada será reparado. O papel da reparação (tanto pela vingança quanto pelo perdão) será representado pelo esquecimento. Ninguém ira reparar as injustiças cometidas, mas todas as injustiças serão esquecidas." p. 304

"'Se as montanhas fossem de papel,
se a água se transformasse em tinta
e as estrelas em escribas,
se todo o vasto mundo quisesse escrever,
ninguém chegaria ao fim
do testamento do meu amor'
cantava Jaroslav, sem desgrudar o violino do peito, e eu estava feliz com essas canções (na cabine de vidro das canções), em que a tristeza não é superficial, o riso não é um rito, o amor não é risível, o ódio não é tímido, em que as pessoas amam de corpo e alma (sim, Lucie, de corpo e alma), em que a felicidade as faz dançar e o desespero faz com que se atirem no Danúbio (...). Parecia-me que no interior dessas canções se encontrava minha saída, minha marca original, o lar que eu traíra, mas que era mais ainda meu lar (já que o lamento mais pungente vem do lar traído); mas eu compreendia ao mesmo tempo que esse lar não era deste mundo (mas que lar é esse, se não é desse mundo?), que tudo o que cantávamos era apenas uma lembrança, um monumento, a conversa imaginária daquilo que não existe mais, e sentia que o chão desse lar fugia dos meus pés e que eu escorregava, com a clarineta nos lábios, na profundeza dos anos, dos séculos, numa profundeza sem fundo (onde amor é amor e dor é dor), e pensava com espanto que meu único lar era justamente essa descida, essa queda, indagadora e ávida, e abandonava-me a ela e à volúpia de minha vertigem." p. 324-325

"Compreendi que me era impossível anular minha própria brincadeira, quando eu mesmo e toda minha vida estamos incluídos numa brincadeira muito maior (que me suplanta) e totalmente irrevogável". p. 298-299

KUNDERA, Milan. A brincadeira. São Paulo: Círculo do Livro, [1988].

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Porto novo


TRÂNSITO

e quando tudo ficou claro
à minha frente
um certo momento, de repente
estava mudo o Mar
jovem como o tempo
em que tudo era
liberdade

____________


OUTRO DIA

seu tempo era outro
não sabia que chegava
a partida
o que fica: do tamanho
do Oceano

____________



SUPERTIÇÃO

pode ser que dê azar
correr sempre
na direção do vento
se a sorte está do outro lado

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Orange Colored Sky


O que eu mais gostava em São Paulo? Os bares. A profusão deles, os azuleijos, o fato de serem quase todos iguais - porque não há nada pior do que entrar em um bar sem saber muito bem como ele funciona, se o garçom vem na mesa, se você pede no balcão, que horário tem comida, etc. Sendo todos iguais não tinha erro, você sempre estava em casa em qualquer um.

O que não gostava? Principalmente de fatores ligados a locomoção. Os motoristas que não dão seta nunca, o trânsito dos pedrestres vagarosos no centro, a impossibilidade de se ir a pé a muitos lugares - o que eu geralmente ignorava. Mas na boa, nada tão sério.

Bom, valeu a todo mundo. Vocês me ajudaram a construir nesses sete anos uma vida, no mínimo, mais eclética do que eu poderia imaginar quando cheguei aqui. E foi foda pra caralho.
Boa sorte pra todos vocês.
Ah, e dêem notícias, seus putos.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Revolução Francesa


OS OLHOS DOS POBRES

Quer saber por que a odeio hoje? Sem dúvida lhe será menos fácil compreendê-lo do que a mim explicá-lo; pois acho que você é o mais belo exemplo da impermeabilidade feminina que se possa encontrar. Tínhamos passado juntos um longo dia, que a mim me pareceu curto. Tínhamos nos prometido que todos os nossos pensamentos seriam comuns, que nossas almas, daqui por diante, seriam uma só; sonho que nada tem de original, no fim das contas, salvo o fato de que, se os homens o sonharam, nenhum o realizou. De noite, um pouco cansada, você quis se sentar num café novo na esquina de um bulevar novo, todo sujo ainda de entulho e já mostrando gloriosamente seus esplendores inacabados. O café resplandecia. O próprio gás disseminava ali todo o ardor de uma estréia e iluminava com todas as suas forças as paredes ofuscantes de brancura, as superfícies faiscantes dos espelhos, os ouros das madeiras e cornijas, os pajens de caras rechonchudas puxados por coleiras de cães, as damas rindo para o falcão em suas mãos, as ninfas e deusas portando frutos na cabeça, os patês e a caça, as Hebes e os Ganimedes estendendo a pequena ânfora de bavarezas, o obelisco bicolor dos sorvetes matizados; toda a história e toda a mitologia a serviço da comilança. Plantado diante de nós, na calçada, um bravo homem dos seus quarenta anos, de rosto cansado, barba grisalha, trazia pela mão um menino e no outro braço um pequeno ser ainda muito frágil para andar. Ele desempenhava o ofício de empregada e levava as crianças para tomarem o ar da tarde. Todos em farrapos. Estes três rostos eram extraordinariamente sérios e os seis olhos contemplavam fixamente o novo café com idêntica admiração, mas diversamente nuançada pela idade. Os olhos do pai diziam: "Como é bonito! Como é bonito! Parece que todo o ouro do pobre mundo veio parar nessas paredes." Os olhos do menino: "Como é bonito, como é bonito, mas é uma casa onde só entra gente que não é como nós." Quanto aos olhos do menor, estavam fascinados demais para exprimir outra coisa que não uma alegria estúpida e profunda. Dizem os cancionistas que o prazer torna a alma boa e amolece o coração. Não somente essa família de olhos me enternecia, mas ainda me sentia um tanto envergonhado de nossas garrafas e copos, maiores que nossa sede. Voltei os olhos para os seus, querido amor, para ler neles meu pensamento; mergulhava em seus olhos tão belos e tão estranhamente doces, nos seus olhos verdes habitados pelo Capricho e inspirados pela Lua, quando você me disse: "Essa gente é insuportável, com seus olhos abertos como portas de cocheira! Não poderia pedir ao maître para os tirar daqui?" Como é difícil nos entendermos, querido anjo, e o quanto o pensamento é incomunicável, mesmo entre pessoas que se amam!

(Nesse frio, só Baudelaire)

domingo, 27 de janeiro de 2008

O punhal




Numa gaveta há um punhal.

Foi forjado em Toledo, em fins do século passado; Luis Melián Lafinur deu-o a meu pai, que o trouxe do Uruguai; Evaristo Carriego teve-o uma vez na mão.
Os que o vêem tem de brincar um pouco com ele; percebe-se que há muito o buscavam; a mão se apressa em apertar o punho que a espera; a lâmina obediente e poderosa folga com precisão na bainha.

O punhal outra coisa quer.

É mais que uma estrutura feita de metais. Os homens o pensaram e o formaram para um fim muito preciso; é, de algum modo, eterno, o punhal que na noite passada matou um homem em Tacuarembó, e os punhais que mataram César. Quer matar, quer derramar brusco sangue.

Numa gaveta da secretária, entre borradores e cartas, interminavelmente sonha o punhal seu singelo sonho de tigre, e a mão se anima quando o dirige porque o metal se anima, o metal que em cada contato pressente o homicida para quem os homens o criaram.

Às vezes, dá-me pena. Tanta dureza, tanta fé, tanta impassível ou inocente soberba, e os anos passam, inúteis.


(Jorge Luís Borges).