terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Resenha: Água viva


Ganhei este livro no fim de 2010, em um amigo secreto. Clarice Lispector era uma das minhas grandes lacunas literárias, que ainda são muitas. Só conhecia alguns contos dela que saíram naquelas coletâneas escolares, e não havia lido nenhum romance. Conhecia um pouco dela pelo livro de cartas com o Fernando Sabino, "cartas perto do coração", e algumas entrevistas. E comecei quase por um anti-romance. Um livro sem linearidade, sem cronologia, sem capítulos. Eu adoro essas estruturas caóticas, desde que não sejam incompreensíveis, que possuam ao menos alguma ordem possível de se construir por trás de tudo, senão vira arte pela arte. Aqui a narrativa é muito espontânea, muito livre. E na verdade todo ele gira em torno disto, já que praticamente não há história, apenas um longo relato, uma carta da protagonista, uma pintora, para um homem que não se define bem quem é. 


"Sei o que estou fazendo aqui: estou improvisando. Mas que mal tem isto? improviso como no jazz improvisam música, jazz em fúria, improviso diante da platéia" p. 21.



"Isto não é história porque não conheço história assim, mas só sei ir dizendo e fazendo: é história de instantes que fogem como os trilhos fugitivos que se vêem da janela dos trens". p. 67



Me parece que ela tenta fazer a narrativa seguir a mesma lógica das reflexões que constrói. Parece óbvio, mas não é. É preciso ajustar o ritmo da escrito ao ritmo dos pensamentos, usando metáforas e histórias mais selvagens ou mais calmas, sincronizando sempre forma e conteúdo. Usando as metáforas não apenas como exemplos ilustrativos, mas em uma sucessão caótica, desordenada, e vai construindo pictoricamente - como uma pintora faria em uma tela - o momento, um estado psicológico quase "primitivo", atrás de sensações perdidas, ou não entendidas. 



"Estremeço de prazer por entre a novidade de usar palavras que formam intenso matagal. Luto por conquistar mais profundamente a minha liberdade de sensações e pensamentos, sem nenhum sentido utilitário: sou sozinha, eu e minha liberdade. (...) Esta minha capacidade de viver o que é redondo e amplo - cerco-me de plantas carnívoras e animais legendários, tudo banhado pela tosca e esquerda luz de um sexo místico. Vou adiante de modo intuitivo e sem procurar uma idéia: sou orgânica. E não me indago sobre os meus motivos. Mergulho na quase dor de uma intensa alegria - e para me enfeitar nascem entre os meus cabelos folhas e ramagens" p. 22.



Enfim, é um romance da espontaneidade, sem ensaio, algo como um desabafo organizado. Outra técnica interessante que ela usa às vezes é que os sentidos vão se ligando, o fim de uma frase traz um conceito que dá início a outra frase, parágrafo, tema, como em um jogo. Por exemplo: 

"O excesso de mim chega a doer e quando estou excessiva tenho que dar de mim como o leite que se não fluir rebenta o seio. Livro-me da pressão e volto ao tamanho natural. A elasticidade exata. Elasticidade de uma pantera macia. 
Uma pantera negra enjaulada. Uma vez olhei bem nos olhos de uma pantera e ela me olhou bem nos meus olhos. Trasmutamo-nos. Aquele medo."p. 73. E assim vai. 



Por não ter uma "história" clara, definida, parece que o livro poderia continuar sendo escrito e lido para sempre, sem ter um fim. Ela mesma deixa isso claro: 



"O que te escrevo é um 'isto'. Não vai parar: continua". p. 87



Além de tudo - me foquei basicamente nos aspectos narrativos - as reflexões dela-personagem são ótimas, vale bastante a leitura.