terça-feira, 6 de agosto de 2013

Resenha: William Faulkner - Luz em Agosto

                                            

Lena Grove é uma jovem que vai caminhando do Alabama ao Mississipi em busca de Lucas Burch. Solteira e grávida ela decide ir atrás do pai da criança para se casar antes do filho nascer. Burch a deixou prometendo avisar assim que se estabelecesse; nunca mais mandou notícias. Por quatro semanas ela segue a pé atrás de uma pista até ouvir dizer que havia um "Burch" trabalhando em uma serraria de Jefferson, Mississipi. Ao chegar até lá Lena encontra Byron Bunch e percebe que, provavelmente, houve uma confusão entre os nomes Bunch e Burch. Logo descobre, porém, que Lucas Burch está na cidade, mas agora usa o nome de Joe Brown. Naquele dia, no entanto, todas as atenções estão voltadas para um grande incêndio na casa de Joanna Burden, uma mulher solitária que é ignorada há décadas em Jefferson por ser descendente de uma família abolicionista que veio do norte

Byron Bunch é um homem pacato e com certa fobia social, trabalha incansavelmente e faz horas extras na serraria aos sábados. Nos domingos viaja 30 km para reger o coral de uma igreja. Seu único amigo é Gail Hightower, um pastor aposentado há décadas, expulso da igreja após o suicídio da mulher. Hightower vive sozinho e depois de anos de perseguições morais e físicas passou a ser quase um fantasma na cidade, mal saindo de casa. Ele chegou a Jefferson logo após o casamento, fez tudo para vir à cidade onde o avô morreu durante a guerra civil. Avô que lhe era quase uma obsessão: um soldado que morreu de forma prematura e estúpida (levou um tiro enquanto roubava galinhas). Mesmo depois dos escândalos pelos quais passou em Jefferson o ex-pastor não quis se mudar, continuou ali, resistindo, até ser esquecido e passar a ser apenas uma sobra do passado na cidade.

Joe Brown, ou Lucas Burch, a quem Lena procura, vive em uma cabana nos fundos da casa que fora incendiada. Vendia uísque contrabandeado em sociedade com o misterioso Joe christmas, o protagonista da história. A história de Christmas começa ainda no orfanato onde descobre que apesar de sua pele branca ele tem sangue negro (fato que não fica claro se verdadeiro ou não, mas é uma verdade que Christmas assume). Logo na infância começa a ser perseguido por uma professora que pensa ter sido descoberta por ele enquanto dormia com um funcionário, ela faz de tudo para que ele seja enviado para um orfanato de negros. Depois é adotado pelo fanático religioso McEachern e sua esposa, passando a infância e adolescência em uma fazenda com o aprendizado da dor e da punição. O ódio e o completo desprezo a qualquer tipo de compaixão, inclusive própria, são o resultado disso. Alguns dos momentos mais raivosos da juventude de Christmas são exatamente contra a mãe adotiva que tenta ser carinhosa e cúmplice dele. O que mais lhe assusta é a possibilidade de que ela o faça se comover. Christmas então se apaixona por uma prostituta que vive na cidade, e por causa dela acaba dando uma cadeirada na cabeça do pai adotivo e fugindo. Passa anos vivendo com negros em comunidades até que chega a Jefferson e conhece Joanna Burden. Ela é mais velha e eles têm um caso completamente doentio marcado por violência e mistérios de ambas as partes. No dia do incêndio em sua casa ela é assassinada, aparentemente por Christmas.

Seu assassinato não havia causado nenhuma comoção em Jefferson, principalmente por ser uma abolicionista (chamavam-na de Yankee). Tudo muda quando descobrem que Christmas, o principal suspeito, possui sangue negro, o que torna sua punição uma questão de honra para a cidade. Quem traz a informação até o xerife é Brown (ou Burch), que está interessado na recompensa. A esta altura Lena ainda não o viu, mas está sendo amparada por Byron Bunch, que se apaixonou por ela mas mesmo assim  prometeu levá-la até o pai da criança para se casarem.

A perseguição policial a Christmas o leva em fuga até a cidade de Mottstown, onde é preso. Lá vive um casal de idosos, os Hines, que são os verdadeiros avós de Christmas. A filha deles (mãe de Christmas) morreu no parto quando seu pai, Doc Hines, se recusou a procurar um médico, por ela ter engravidado de um artista de circo, morto por Doc, um mexicano que, segundo o dono do circo, tinha sangue negro. O neto é odiado pelo avô antes mesmo de nascer e a morte da filha lhe parece justa pelo pecado que cometeu. A avó tenta cuidar do neto, mas ele o leva para um orfanato onde passa a trabalhar como porteiro para vigiar a criança. Assim que ficam sabendo que o neto está preso, trinta anos depois, cada um tem uma atitude distinta. O avô passa a fazer discursos públicos pelo linchamento, a avó tenta de alguma forma salvá-lo. Os dois vão então até Jefferson, onde seria realizado o julgamento.

Christmas é levado a Jefferson, mas consegue fugir para a casa de Hightower. A esta altura o ex-reverendo já fez o parto de Lena Grove e ouviu os apelos da avó para que fosse o álibe de Joe Christmas. Já havia então em Jefferson uma espécie de milícia liderada por Percy Grimm, da Guarda Nacional, que seguia o caso com sede de morte caso o tribunal não condenasse à pena máxima o provável assassino. Quando Christmas foge Grimm tem sua chance e não a desperdiça. Ao entrar na casa, mesmo com os apelos de Hightower de que Joe era inocente, Grimm o mata e o castra, para ele "deixar as mulheres brancas em paz, mesmo no inferno".

Enquanto isso Byron Bunch consegue levar Lucas Burch até Lena, sem que ele soubesse do que se tratava. Ao entrar e ver a mulher com o filho nos braços ele dá um jeito de fugir novamente, desta vez pela janela. Byron havia decidido deixar a cidade, mas quando percebe que Lena está novamente sozinha ele volta. No último capítulo ambos conseguem uma carona de caminhão até o Tennesse. Byron pede continuamente a mão de Lena em casamento, mas como ela recusa continua a ajudá-la a encontrar Lucas Burch. Como se os dois fossem passar a vida juntos, viajando atrás de algo inalcançável e inútil.

Joe Christmas é uma mistura de herói e anti-herói. Tudo nele tem certo exagero, um personagem absurdo, como sua vida, como o racismo e o conservadorismo da sociedade americana da época. Ao mesmo tempo em que assume sua condição de negro ele se mantém racista: era natural odiar os negros, mesmo que você fosse um deles, como neste diálogo imaginário com a mãe adotiva: "Escute. Ele diz que criou um blasfemo e um ingrato. Eu a desafio a lhe dizer o que ele criou. Que ele criou um crioulo embaixo do próprio teto, com sua própria comida em sua própria mesa".  Todos os personagens são solitários, exilados, abandonados, amargos ou com esperanças vazias. O fanatismo é o pano de fundo, é o que justifica praticamente tudo que acontece, como se fosse a única coisa certa e regente no mundo que recebe o bebê de Lena Grove. Um retrato amargo e realista do sul dos Estados Unidos à época, ainda abraçado ao cadáver quente da guerra civil. Todas as mazelas sociais recaem sobre os personagens de Luz em Agosto, todos são alguma face sombria de sua época. Os dramas pessoais são perfeitamente construídos, como os de Hightower. A imensidão épica que ele dava ao avô, soldado confederado, o faz ficar eternamente preso ao passado, delirando com histórias que lhe fazem criar um filtro psicológico para a realidade e o levam ao imobilismo. Assim como Christmas, todos são um pouco caricatos, e este exagero parece uma escolha, Faulkner cria com tanto detalhismo as vidas de seus personagens, dá-lhes uma forma de pensar tão particular que é como se os víssemos por dentro de uma forma em que não podemos julgá-los por conhecermos tanto seus pontos fracos. Entramos em suas misérias particulares, vemos seus medos, suas limitações, principalmente as limitações. Em resumo, é possível enxergar o porquê deles entenderem o mundo de determinada forma. Daí todos ficarem um pouco exagerados, porque olhamos de perto demais.

A narrativa em Luz de Agosto segue o fluxo de consciência dos personagens. Não há onisciência, mesmo o narrador em terceira pessoa só conhece a história até o ponto em que o personagem a conhece, deixando inclusive lacunas que outros personagens podem vir a cobrir. Christmas, por exemplo, nada sabe sobre sua primeira infância, e o leitor também não, o que só mudará quando aparecerem seus avós. Os personagens são a narrativa. O narrador, no entanto, a organiza e a constrói. Porém, diferentemente de James Joyce em Ulisses e do próprio Faulkner em Enquanto Agonizo, a consciência não domina a linguagem. Neste Faulkner a linguagem do narrador molda a vida dos personagens ao contar suas histórias. Ela explica e amplifica os sentimentos, dá-lhes uma forma artística sem deixar de ser prosaica. Faulkner parte da consciência de seus personagens e a lapida, diferentemente do que faz, como citado, em Enquanto Agonizo, onde ele deixa que os personagens construam a narrativa. Seguem abaixo alguns exemplos:

(Joe Christmas e a mãe adotiva)
Não era o trabalho duro que ele odiava, nem o castigo e a injustiça. Estava acostumado a isso antes mesmo de ter visto qualquer um deles. Não esperava menos, e por isso não se sentia ultrajado nem surpreso. Era a mulher: aquela bondade suave da qual se acreditava condenado a ser a vítima eterna e que odiava mais do que a dura e implacável justiça dos homens. "Ela está tentando me fazer chorar", pensava, deitado frio e rígido na cama, as mãos atrás da cabeça e o luar caindo sobre o corpo, ouvindo um murmúrio constante da voz do homem como se ela subisse a escada para o primeiro estágio a caminho do céu. "Estava tentando me fazer chorar. Aí ela acha que eles teriam me submetido".
p. 150

Percebe-se então que a narrativa e a voz de Christmas se completam, o personagem exemplifica o que o narrador explica. Já em outros trechos, como o descrito abaixo, o próprio personagem pode se explicar por completo:

(conversa entre Hightower e Byron Bunch)
"Por que você passa as tardes de sábado trabalhando na fábrica enquanto outros homens estão se divertindo na cidade?"(...).
"Não sei", disse Byron. "Acho que a minha vida é esta mesmo".
"E eu acho que a minha vida é esta mesmo, também", disse o outro. "Mas agora sei por quê", Byron pensa. "É porque um sujeito tem mais medo do problema que poderá vir a ter do que do problema que já tem. Ele se agarrará ao problema a que está acostumado em vez de arriscar-se a uma mudança. Sim. Um homem falará sobre como gostaria de escapar dos vivos. Mas são os mortos que lhe causam dano. É dos mortos que jazem quietos num lugar e não tentam agarrá-lo que ele não pode escapar".
p. 67

No trecho abaixo há apenas uma pequena interferência de Hightower em meio ao trabalho do narrador (e por sinal uma intervenção do narrador quando Hightower está falando/pensando), o modo como se organiza a memória, detalhista e precisa. O ex-pastor escuta de sua casa os sons da cerimônia e lembra como era em sua época, misturando passado e presente para formar uma coisa única, atemporal, onde sobrevive:

Esperando, observando a rua e o portão da janela do estúdio às escuras, Hightower ouve a música distante no momento em que ela começa. Ele não sabe que a espera, que todas as noites de quarta-feira e domingo, sentado à janela escura, ele espera que ela comece. Sabe quase o segundo em que deve começar a ouvi-la sem recorrer ao relógio de bolso ou o de parede. Ele não usa nenhum dos dois, já não precisa deles há vinte e cinco anos. Vive dissociado do tempo mecânico. Mas por essa razão ele nunca o perdeu. É como se no seu subconsciente ele produzisse, sem querer, as poucas cristalizações de instâncias estabelecidas pelas quais sua vida morta no mundo real fora governada e ordenada um dia. Sem recorrer a relógio ele poderia saber imediatamente, pelo pensamento, precisamente onde, em sua vida antiga, ele estaria e fazendo o quê entre dois momentos fixos que marcavam o começo e o fim do serviço dominical matinal e do serviço dominical noturno e do serviço de oração na quarta-feira à noite; precisamente quando estaria entrando na igreja, precisamente quando estaria trazendo para um desfecho calculado a oração ou o sermão. Assim, antes de o crepúsculo ter desvanecido por completo, ele está dizendo para si mesmo '
Agora eles estão se reunindo, se aproximando pela rua lentamente e virando para entrar, saudando-se uns aos outros: os grupos, os casais, os solteiros. Uma ou outra conversa informal na própria igreja, em voz baixa, as senhoras de sempre um pouco sibilantes com leques, acenando com a cabeça para as amigas que chegam enquanto passam pela nave. A srta. Carruthers (ela era sua organista e já morrera há quase vinte anos) está entre elas; logo ela se levantará e entrará no balcão do órgão' Reunião para orações no domingo à noite. Sempre lhe pareceu que naquela hora o homem chega mais perto de Deus, mais perto do que em qualquer outra hora de todos os sete dias. Só então, entre todas as reuniões religiosas, existe algo daquela paz que é a promessa e o fim da igreja. A mente e o coração se purgavam então, se assim devesse ser; a semana e seus desastres, quaisquer que eles fossem, terminados e somados e expiados pelo furor duro e formal do serviço matinal; a semana seguinte e seus possíveis desastres ainda não nascidos, o coração aquietado agora por algum tempo sob o fresco e suave sopro da fé e esperança".
p.319a

Em relação ao título, sempre me pareceu haver uma relação entre "luz" e o nascimento do filho de Lena. Há uma aparente releitura do nascimento de Cristo, até alguma semelhança, como entre a cabana onde ela dá a luz e a manjedoura, ou os três personagens que estavam com ela no momento (os Hines e Hightower) com os três reis magos, e além de tudo o nome de seu outro personagem, Christmas. Até mesmo a capa da edição brasileira mais recente, da Cosac Naify, mostra uma sombra sobre uma adolescente, mais especificamente a barriga de Lena Grove. De toda forma algumas pesquisas me indicaram que o próprio Faulkner refutava esta relação e dizia que em agosto, no Mississipi, em alguns dias a luz do sol lhe dava a impressão de que estava em outra época, uma época clássica, como a Grécia antiga.

Luz em Agosto é um clássico maiúsculo. Impossível não se sentir inserido na história americana, além da usual aula de técnicas literárias que Faulkner nos proporciona. 


FAULKNER, W. Luz em Agosto. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007.