terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Jogos de Azar



Era uma tarde ensolarada. Férias, sábado, ou algo assim. Jogávamos bola na rua como sempre. Mas tudo mudou quando um garoto passou por ali e nos disse: "a velha da rua de cima está dando gatos. tem uns oito lá". Instântaneamente chutamos a bola pro alto e saímos correndo. Contornamos o quarteirão e não demoramos a encontrar a casa que ele descreveu. Fomos lá por pura e simples curiosidade. Só queríamos ver um monte de gatos amontados. Era algo diferente, afinal.
Não tocamos a campainha. Ninguém leva a sério dois garotos descalços de 6 ou 7 anos. Escoramos a cabeça no muro e ficamos tentando ver algo. Nessa época quase tudo que fazíamos era meio clandestino. Foi quando ouvimos a voz de uma senhora perguntando se estávamos ali pelos gatos. Ficamos acuados, aquela pergunta era quase como uma acusação. Mas era um flagrante, não havia o que fazer, então confessamos. Esperávamos uma reprimenda, "tirem esses pés sujos do meu muro", ou algo pior. Porém, estranhamente ela nos fez entrar e nos levou até o ninho que a gata tinha feito. Não eram oito, mas eram muitos. Todos pretos, do nariz ao rabo, o que nos impossibilitava a contagem. Ficamos um tempo olhando, mas não chegamos perto. Ela fez então a fatídica pergunta: Querem algum? Meu vizinho foi rápido e direto, disse que sua mãe não o deixava ter animais. Eu fiquei um pouco engasgado. Querer, claro, mas nessa época nem tudo na vida dependia de mim. A senhora então demonstrou sua sabedoria, e me deu uma ótima solução: "leve, se sua mãe não quiser, você trás de volta". Acho que era um truque, pois ela conhecia o poder de sedução deles. Foi até lá, pegou um que escolhi - eram todos iguais - e me entregou. Voltamos correndo pra casa, brigando pra ver quem o carregava. Ao chegarmos, pedi que ficassem na calçada, enquanto eu chamava minha mãe. Fiz mistério, disse que havia algo muito importante na rua, que ela devia ver. Esse argumento não funcionou, então teve que ser na força bruta. Arrastei-a pelo braço sob protestos e ameaças de que se não fosse mesmo algo sério eu "ia ver". Não me lembro qual foi a primeira reação dela. Acho que estava muito nervoso para preliminares e me concentrei apenas na resposta final. Ela foi seca, mas concedente "tá bom, mas é responsabilidade sua". Acredito que um clichê nunca foi tão bem vindo. Mesmo com pouca idade já havia passado por algumas situações complexas. O primeiro dia de aula, a primeira briga, amar a professora. Ter ou não ter o gato parecia ter sido a mais fácil delas. Mas as coisas nunca vem sozinhas, e essa foi outra lição que aprendi. A decisão agora era sobre o nome. Perguntei pra minha mãe se ela tinha algum em mente. Não tinha. Meu vizinho queria palpitar, mas o gato era meu, não poderia deixá-lo decidir sobre isso. Pensei umas duas horas, enquanto tentava fazê-lo engordar em tempo recorde (o gato). Ele era preto, ágil, e tinha certa habilidade em fugir da minha marcação. Só podia ser então: Pelezinho (do latim Pelé). Todos aprovaram o nome, e assim se chamou o meu primeiro gato. Já estava levando o Pelezinho pro quarto quando fui barrado pela patrulha vigilante. "Dentro de casa não". Teria de deixá-lo fora, sob todos os perigos da misteriosa noite frutalense - nem todas se vence. Então que ficasse em segurança, ao menos - se na época alguém me dissesse que isso se assemelhava a algum tipo de senso materno eu daria uma estilingada na cabeça. Arrumei uma caixa, peguei todos os panos que consegui achar, e fiz pra ele uma cama com todo o conforto que tapetes e panos em desuso podem oferecer. Coloquei-o lá dentro, orgulhoso de mim mesmo e fomos todos dormir. Eu, satisfeitíssimo com a possibilidade de acordar e ter algo diferente pra cuidar. Dormi pouco e logo que acordei fui correndo até a caixa para ver como ele estava. Mas ele não estava mais lá, nem em lugar algum. Foi então que me dei conta de que o muro estava todo esburacado. Pelezinho nunca mais foi visto por aquelas bandas. E talvez essa tenha sido a minha primeira perda significativa.

Os dias seguintes foram um pouco vazios para mim. Me senti como um dos dois porquinhos que não fizeram fizeram a casa de tijolo. Um boxeador que se prepara meses para a luta de sua vida e cai no primeiro round. Ainda não sei se o que me chateou foi a perda em si ou se foi a minha incompetência. Falhei quando precisaram de mim, quando eu era responsável por algo. As coisas não eram tão óbvias quanto pareciam, e aprender isso doeu um pouco. Talvez por comoção, ou prêmio de consolação, minha mãe me lembrou: "você não disse que tinha uma porção deles? Vá até lá e pegue outro". Isso poderia ter me feito pensar várias coisas: que era uma nova chance, que tudo tem volta, mas o bom dessa fase é que os reflexos são mais apurados que o pensamento, e a única coisa que fiz foi sair correndo novamente até a casa da senhora. Dessa vez toquei a campainha, e mal ela abriu, despejei: "tem outro gato?". Ela perguntou o que tinha sido daquele. Hesitei, mas ela tinha me pego novamente, e só me restava mais uma vez dizer a verdade. Ouvi um aconchegante "acontece". Foi até lá e pegou outro. Assim que cheguei em casa, deixei-o preso dentro de uma caixa e tampei todos os buracos dos muros. Eu sabia que dessa vez não poderia falhar, e que boas intenções apenas não eram suficientes. Todos os detalhes deveriam ser pensados. A vida era um grande jogo de estratégia. Agora ele não teria por onde sair, pelo menos até ter idade de pular os muros. O próximo desafio era velho, e parecia fácil, arrumar outro nome. Mas foi então que um outro vizinho mais velho o complicou: "é fêmea". Até então eu só havia tido animais machos (o cachorro Tapete e o meteórico Pelezinho). E provavelmente pelo fato de serem machos era mais fácil projetar neles algo que eu gostaria de ser, ou tirar um sarro. Mas nunca havia escolhido o nome de uma garota. Não poderia dar um nome afeminado, nem meigo, não queria criar problema. Tinha que ser algo neutro, mas no feminino. Talvez eu tenha exagerado, mas depois de alguma meditação, o único consenso comigo mesmo foi "Bruxinha". Para a sorte dela esse nome durou poucos dias. Logo alguém que entendia um pouco mais de gatos nos disse que estávamos enganados, que era macho mesmo. Bruxinha então virou Slash.

Slash não fugiu, não se rebelou, nem esboçou qualquer reação contra o mundo. Depois de todos contratempos houve apenas calma e silêncio. Foi o gato mais contido que tive - talvez porque todo Slash, para ser feliz, precise de uma guitarra e uma garrafa de uísque, e ele não tinha nada disso. Passou uns quatro anos comigo, e a única coisa que me lembro bem é dele dormindo no quintal. Gostava do dormir no sol. Esticava os braços e as pernas e ficava de lado, ocupando o máximo de espaço que conseguisse. Algumas vezes era obrigado pelo acaso ou por uma bolada a mudar de lugar, mas parecia não se incomodar muito com isso, nem com nada. Aprendi algumas coisas com ele, como o fato de que enquanto os cachorros entendem que mudaram de casa reconhecendo as pessoas, os gatos o entendem sentindo os móveis (dentro de poucos meses ele já vivia dentro de casa). Sua textura, seu cheiro, sua maciez. E me agradava essa percepção física do mundo. Passava alguns dias fora de casa também. Chegava a sumir por até uma semana, e numa dessas simplesmente não voltou. Demoramos um pouco para nos dar conta que tempo demais havia passado, e quando demos por sacramentada sua perda, não houve dor ou drama. Aquele gato era tão sóbrio que por certo saberia onde ir. Que caminhos seguir para uma vida tranquila, como ele gostava. Não dava pra imaginar que ele não voltaria se não tivesse encontrado algo melhor pra fazer. E assim, confiando no caráter dele, não se falou mais no assunto. Dizem que os gatos, quando pressentem a morte, costumam sair do lugar onde vivem, e ir para longe. Já apareceram mesmo alguns gatos mortos no meu quintal, em buracos que aparentemente eles cavaram. Durante um tempo pensei que podia ter sido esse o destino de Slash, mas logo percebi que não. Ele ainda era jovem, forte, e afinal, qual o problema em sair de casa? Muita gente faz isso. Muitos gatos também. Não posso dizer que fiquei feliz, afinal, ele estava comigo há alguns anos. Mas eu acho que talvez eu tenha sentido o que não senti com Pelezinho, a sensação de que algo chegou ao fim na hora certa.

Apesar disso, hoje em dia meus gatos não saem mais de casa. Acho que são felizes assim também.