terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Resenha: Junta-Cadáveres


O uruguaio Juan Carlos Onetti parece estar sendo descoberto apenas agora no Brasil, inclusive por mim, em edições muito bem-feitas pela Planeta. Como destacado no prefácio, ele sempre seguiu uma tendência um pouco diferenciada da maioria dos autores latino-americanos, distanciando-se do realismo fantástico e do regionalismo, o que talvez explique um pouco o fato. Sobre as edições citadas destaco as capas de "Junta-Cadáveres" e "O Estaleiro", e o prefácio de Francisco Dantas, importantíssimo para introduzir e dimensionar a obra do uruguaio.

A estrutura da narrativa de Onetti é muito bem construída e inovadora. Em "O Estaleiro" quem conta a história é uma espécie de "voz coletiva", que narra e julga as atitudes de Larsen e dos outros personagens. Não se escondem intenções e preferências, e essa parcialidade explícita leva a voz narrativa a ser julgadora e julgada, bem como o personagem, em todos os seus atos. Em "Junta-Cadáveres" o narrador é Jorge Malabaia, garoto de dezesseis anos que vive em Santa Maria, cidade fictícia onde são ambientados todos os romances do autor, dividida em uma cruzada moral contra a instalação de um prostíbulo na cidade. O foco porém não é único, as passagens vão de primeira a terceira pessoa de acordo com o capítulo, e algumas vezes a introdução de uma primeira pessoa introspectiva em cada personagem transforma a narrativa em uma grande teia, cobrindo todas as possibilidades de se enxergar aquela sociedade, e as pessoas, por fora e por dentro.

De toda forma o que mais me atraiu na narrativa de Onetti foi o seu modo peculiar de descrição. É muito comum percebermos e entendermos uma cena apenas pelos gestos de seus personagens, o corpo refletindo pensamentos, sensações, através de movimentos, como na parte a seguir, onde Jorge caminha pela noite depois de se encontrar com Julita, confuso e insatisfeito com poemas que escreveu:

"Empurro o portão e pego a estrada; mas não tenho realmente vontade de ir, de repetir hoje a comédia noturna com o velho Lanza. Vou indo com as mãos nos bolsos da capa de chuva, cuidando para que os ombros fiquem soltos, abandonados, tentando fazer com que os braços não participem do esforço da marcha, evitando às vezes com trabalho e alarme os buracos cheios de água, pisoteando-os outras vezes com raiva. O nariz aberto para tentar descobrir a origem (a forma da árvore, o monte de lixo, da cova ou esconderijo sombrio) de cada cheiro de fim de verão que a noite úmida apodrece e adocica; a cabeça erguida naquele ângulo que indica o desespero e a vontade de assimilá-lo, aquele ângulo exagerado, viril e doloroso que determina a queda da boca e das pálpebras. Vou indo - a passos largos pelo caminho que sobe e desce e que parece virar continuamente para a direita, em espiral - porque tenho muita vontade de fazer a outra coisa; subir para comer e inclinar-me, mastigando, consciente do brilho da gordura nos lábios, sobre a estupidez desolada dos quatro versos sem destino, que não deviam ter-se formado, de cuja inútil introdução no mundo sou responsável e que não posso tirar da memória" (p. 75)

Jorge, o narrador, é um jovem que vive na cidade e observa os acontecimentos: a criação e a luta contra o prostíbulo de Junta-Cadáveres. Enquanto isso vive encontros proibidos com Julita, viúva de seu irmão, que enlouqueceu e parece confundir o irmão morto com o vivo. Por influências familiares acaba sendo levado a participar da queda da casa da orla, como é chamado o lugar onde vivem Junta e as três mulheres. Marcos, irmão de Julita, e o padre Bergner, tio de Marcos, são os maiores inimigos da casa de prostituição, além das estudantes e quase todas as mulheres da cidade. Do outro lado temos Larsen, o Junta-Cadáveres, e o médico Díaz Grey. Larsen é um homem visto por toda a sociedade como de moral questionável, um aventureiro, que sempre sonhou em montar o prostíbulo perfeito, mas conseguiu recrutar apenas três prostitutas de idade avançada. Díaz Grey é um médico velho e decadente, que do alto dos anos passados em uma cidade pequena e sem saída, olha para o passado, para as pessoas que ajudou a nascer, com certo desgosto, amargo pelo que se tornou, e esperançoso no que poderia ter sido, como no trecho a seguir, em que se imagina vivendo outra vida:

"Em vez do perfume dos jasmins amarelos e pisoteados, daquele que o vento traz do rio, daquele que flutuará sempre, imóvel, na sombra da minha escada, um cheiro composto e respirado no meio da tarde num café, numa cidade populosa que nunca vi. O mais Díaz Grey dos Díaz Grey está sentado numa mesa, sozinho, sem esperar ninguém. Não é um café familiar, não muito luxuoso nem muito pobre, tem janelas que dão para uma avenida larga e mal-lavada.

Díaz Grey fuma, com o corpo em abandono, um pouco suado, fresco e cálido por essa leve umidade das caminhadas nos finais de primavera; apóia o cigarro na borda de uma xícara para soltar a cinza. Alguém varre e esparrama serragem atrás do balcão; deixaram abertos os mictórios e um cheiro de sexo e amoníaco, de caracóis mortos esfrega-se contra o piso, contra o cheiro de serragem molhada. Da janela chega o cheiro de nafta da rua e o de jornais recém-impressos; há também um perfume de mulher, intenso, suave, com uma intenção que não consegue se concretizar.

Sem dúvida, nada disso tem sentido nem importância; de qualquer modo, vou subindo com cautela a escada em sombras com uma tênue inveja do suposto Díaz Grey, com os olhos fechados e o nariz inquieto, tentando reunir e respirar os diferentes cheiros que formam o cheiro que lhe convém" (p. 127)

Enfim, um livro para ser lido por diversos motivos, o antagonismo social e moral, as certezas que se tornam perigosas e munição para guerra, o radicalismo de idéias, a vida dissecada de uma sociedade fechada, a variação de personalidades do público para o privado, e principalmente, a meu ver, as descrições e construções narrativas, únicas.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Resenha: homem comum


Em matéria de descobertas literárias o ano de 2010 tem sido esplêndido. Li neste ano alguns dos melhores livros de minha vida, e quatro em especial são de autores que até então eu não havia lido nada: Ernesto Sábato (O Túnel), Cormac McCarthy (Todos os belos cavalos), Juan Carlos Onetti (O Estaleiro), e Philip Roth, com "homem comum", livro sobre o qual escrevi abaixo algumas impressões.

"Homem comum" é um livro completamente arrasador. Daqueles que te fazem parar quase de página em página e pensar na própria vida. Não que te ensine algo, mas pela forma familiar de construir lembranças. A história começa no enterro do protagonista e termina com sua morte. Philip Roth se debruça sobre o que há de mais triste e inevitável na existência humana. O livro não é nada além disso: morte, pessoas unidas à espera da morte, decadência, espera, arrependimento. Aliás, a única parte viva deste romance, a única em que os personagens criam, vivem intensamente, e não se preocupam com o amanhã, é narrado em forma de memórias, portanto terreno fértil para arrependimentos e crises.

Roth constrói de maneira muito fluida e natural sua narrativa, e às vezes nem parece que trata de um tema tão áspero. Ao mesmo tempo em que segue uma prosa simplificada e sintética ele intercala considerações reflexivas fortes, porém, em nenhum momento, pedantes (como "Para quem provou a vida, a morte não parece nem sequer natural"). Consegue reunir as melhores reflexões de uma escrita clássica em uma narrativa contemporânea e passível de ser lida por qualquer um, misturado a uma dose de realismo.

Outro traço marcante é a relação com os pais. A variação de momentos mais fortes do livro é entre a velhice terminal do protagonista e a morte de seus pais. É interessante como ele constrói essa mudança de paradigma, primeiro:  "o que será deles", e depois, num amargo amadurecimento, "o que será de mim". Uma das coisas que mais me agradou foi justamente a perfeita descrição da decadência do corpo e da carne como justificativa para a decadência psicológica do ser humano.

Tenho a impressão de que este romance/novela é exatamente o que penso de arquétipo de um romance moderno (não no sentido de modernismo, mas de contemporaneidade).

Um trecho para exemplificar a leve narrativa do pesado tema da obra. Neste momento ele visita o túmulo dos pais:

"Eram apenas ossos, ossos dentro de uma caixa, mas os ossos deles eram dele, e ele aproximou-se dos ossos o máximo que pôde, como se a proximidade pudesse estabelecer um vínculo com eles e atenuar o isolamento causado pela perda do futuro e religá-lo a tudo o que havia ido embora. Durante uma hora e meia, aqueles ossos foram a coisa mais importante no mundo. Eram tudo o que importava, a despeito do ambiente de decadência daquele cemitério abandonado. Na presença daqueles ossos, ele não conseguia se afastar deles, não conseguia não falar com eles, não conseguia fazer outra coisa senão ouvir o que eles diziam. Entre ele e aqueles ossos muita coisa aconteceu, muitos mais do que agora entre ele e os que tinham carne em torno de seus ossos. A carne vai embora, porém os ossos permanecem. Os ossos eram o único consolo que restava para alguém que não acredita na vida após a morte e sabia, sem nenhuma dúvida, que deus era uma ficcão, e que aquela vida era a única que ele teria". (p. 123-124)

E um segundo trecho, onde ele pensa sobre como fora o suicídio de uma de suas amigas de velhice, Millicent Kramer. Espero não ser muito longo:

"Quando acordou, no meio da noite, acendeu todas as luzes, bebeu um copo d'água, escancarou uma janela e ficou andando de um lado para o outro para recuperar o equilíbrio, porém, por mais que tentasse pensar em outra coisa, só conseguia formular uma única pergunta: como fora seu suicídio? Num impulso, engolindo todas as pílulas antes que mudasse de idéia? E, depois que as engolira, teria gritado que não queria morrer, que só não queria continuar sofrendo aquela dor paralisante (...) teria gritado que só queria que Gerald estivesse ali para ajudá-la e lhe dizer para aguentar firme, para lhe garantir que ela conseguiria suportar e que estavam juntos para enfrentar tudo? (...) Ou teria agido com frieza, convencida, por fim, de que estava fazendo a coisa certa? Teria agido sem pressa, segurando o frasco com as duas mãos, pensativa, antes de esvaziá-lo na palma de uma das mãos e engolir os comprimidos um por um com seu último copo d'água, a última água de sua vida? (...) talvez sorrindo enquanto chorava e relembrava todos os prazeres, tudo o que a entusiasmava e agradara, evocando centenas de momentos comuns que não lhe pareceram importantes quando ela os vivera, mas que agora era como se tivessem existido com a intenção específica de inundar sua vida de uma felicidade cotidiana? Ou teria perdido o interesse nas coisas que estava deixando para trás? Teria ficado sem medo, pensando apenas: finalmente a dor passou, a dor finalmente foi embora, agora é só dormir e ir embora desta coisa extraordinária? (p. 118-119)

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Dias longos, noites curtas


Senti que se pudesse alcançar tua mão tudo estaria resolvido. Sorrir ao te beijar e receber outro sorriso em troca, depois do beijo. Seus dedos passeando pelos meus braços, cansados de um dia inteiro. Assim dia-a-dia, passo a passo, respirando o ar carregado da metrópole. E que nos dias de ausência tua falta não doesse ainda como eu esperava. Pois o cheiro de seus cabelos, os fios de seus cabelos espalhados nos cantos, tudo estaria inundado de presença e do rosto e da voz em minha mente. Uma lembrança breve de ontem, uma esperança quase corriqueira do amanhã tão certo.

Abrir minhas gavetas e me deparar com coisas só suas. Seguir seus rastros pela casa e encontrar o tesouro no fim do arco-íris. Adormecida, sozinha, num sofá-cama meio manco. Te levar para se deitar na cama, mesmo eu sem sono algum. A respiração leve do sono recém inaugurado. Um leve sobressalto de quem sonha sem ainda estar no estágio devido do sono. O que estaria sonhando? O quanto imagino de seus sonhos que você esquecerá pela manhã ao tentar me descrever, ainda com a voz meio rouca e embargada por uma tosse de ontem.

Esquecer exatamente tudo ao exato momento em que se fecha a porta da rua. Experimentar esta barreira instransponível entre o mundo dos outros e o nosso. Da porta pra dentro há uma desatenção perceptiva do todo que converge para você. Um ritual tribalista de imaginação coletiva que permeia a realidade com mitos embaraçantes e prazerosos. Uma racionalidade às avessar, um be-a-bá sensorial que não se explica fora dos coloridos de uma mente que não poderia nos pertencer normalmente. Habituar-nos ao déjà vu constante de uma época que não parece envelhecer.

Fujo da imensidão do redemoinho que gira e me consome o dia todo. Que de manhã me parece inevitável, pela tarde inaceitável e pela noite insaciável. Quando prestes a me entregar ao fado de um nocaute diário sinto ao longe tua voz a me chamar. Imagino exatamente a cena da minha redenção. O gosto de nossas comidas, o som de nossas músicas, a imagem de tuas formas. Às vezes demoro ainda para me situar e continuo a agir como se em meio à ventania e à multidão, quiças sozinho, terminantemente fustigado e maltratado abaixo a cabeça e os olhos já em nosso reino. Não demoro a deitar fora tudo de ruim que o mundo me reserva quando seu hálito se aproxima do meu com uma pergunta ou uma resposta sentida.

Senti que se pudesse alcançar tua mão tudo estaria resolvido. E que assim seríamos felizes.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010




"Grandes são os desertos e tudo é deserto,

Salvo erro, naturalmente.
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!"

(Álvaro de Campos)