quarta-feira, 6 de abril de 2011

Juan Rulfo - Pedro Páramo



Uma narrativa que mistura memórias e poesia como poucas. Pedro Páramo é uma saga em precisas 130 páginas. Histórias tristes se misturam a desejos de vingança, servidão, amores paranóicos, violência e busca. A história sofrida de Comala muito se assemelha com a de toda a América Latina longe das capitais e do poder constituído (geralmente ocupado pelo coronelismo). 

Juan Preciado é um filho de mãe solteira que após a morte dela vai em busca de seu pai, Pedro Páramo, no povoado de Comala, México. Lá encontra uma procissão de mortos que lhes contam todas as desventuras de seu pai, um coronel implacável, de formas que variam de acordo com cada narrador. Depara-se inclusive com as memórias do próprio pai. Este "recurso narrativo" de utilizar os mortos não nada tem de espírita ou sobrenatural. Na verdade a escolha pelos mortos parece precisamente o oposto disso: como se os mortos já não temessem a verdade, como sempre o fizeram em vida, sendo eles os únicos com autonomia para relatar com precisão. Por outro lado mostra que a condenação daquele povo é eterna, que mesmo depois de mortos estão presos àquele sistema, àquela terra quente e sem esperanças, interpelando os vivos que passam por ali para que rezem por eles. E, porque não, para contar como foram algumas das mortes sob o ponto de vista mais claro, o do morto.

O contra-ponto da história de opressão de Pedro Páramo é, de certa forma, Susana San Juan, mulher que ele amou no fim da vida e que, mesmo que minimamente, lhe fez ter consciência de suas fraquezas. 

A narração é completamente não-linear, mas é fácil perceber a mudança de personagens, ou de perspectiva. Um mesmo personagem pode contar a sua história, como num relato de infância com os verbos no tempo presente, ou contar suas memórias, no pretérito. As vozes vão do coronel Páramo até senhoras simples que viveram suas vidas enclausuradas à espera de dias melhores ou de amores impossíveis. 

É fácil perceber a influência desta obra em clássicos como Cem anos de solidão. Aliás, Comala, assim como Macondo, me lembraram muito o interior de Minas Gerais, afinal "América Latina" é isso aí. 

Pode ser um exercício interessante comparar as técnicas narrativas de escritores que tratam de realidades tão próximas abordando-as de maneira tão distinta (ou seguindo "escolas literárias" diferentes) como Garcia Marquez, Juan Rulfo, Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa, etc. 

Um trecho que exemplifica bem a narrativa poética de Juan Rulfo:
"Pedro Páramo viu como os homens iam embora. Sentiu desfilar na sua frente o trote de cavalos escuros, confundidos com a noite. O suor e o pó; o tremor da terra. Quando viu os pirilampos cruzando outra vez suas luzes, percebeu que todos os homens tinham ido. Só restava ele, como um tronco duro começando a se despedaçar por dentro" (p. 120).

terça-feira, 1 de março de 2011

A bola quadrada


Aos seis anos de idade ouvi minha primeira grande promessa e tive minha primeira desilusão. Aprendi nesta ocasião que quem espera nem sempre alcança. Não acredito que isto tenha me tornado uma pessoa melhor ou pior, era uma época de descobertas e não existia um grande sentido metafísico nas coisas, elas apenas aconteciam ou não e te deixavam tristes ou não. Mesmo hoje, sem ter esquecido, essa história não me surpreende, nem ecoa. É apenas memória, reflexo de um tempo que talvez não tenha mudado tanto. Talvez quem fui seja apenas um tipo de caricatura de quem sou. 

Tudo começou com um pedido atendido. Ia sempre à fazenda com meu pai, às vezes todo fim de semana, às vezes duas vezes por mês. Noutras o prazo era maior, passávamos cerca de um mês sem nos encontrarmos em direção a Campo Florido, o que me chateava muito. Gostava de muitas coisas naquela época, vídeo games, futebol, mas nada me era mais caro do que a relação com o campo: calçar botinas, um chapéu, atravessar estradas de terra e, principalmente, andar a cavalo. Minha relação com os equinos sempre foi fascinante. Admirava aqueles animais grandiosos e ao mesmo tempo obedientes, mansos e servis. Eram como símbolos de bondade em um mundo que já se desenhava claro em minha mente: os mais fortes mandavam, nem sempre gentilmente. Os cavalos eram como um novo paradigma. Preciso confessar que me arrependo muito do modo como os tratei algumas vezes. A sensação de dominar um ser daqueles, te deixam no topo do mundo, é algo difícil de se controlar, ainda mais para um garoto. Eu apelava, exigia um pouco mais do que deveria, fazia-os correr como loucos, subir serras sem se cansar, e as esporas eram a minha autoridade. Era deslumbre e logo parei com isso. Eles também se vingaram de mim, e apesar de nunca ter caído já passei por pelo menos três situações difíceis onde tive quase certeza que iria morrer. Um cavalo disparado é algo que te coloca no seu devido lugar. Sendo um apaixonado por esta vida, sem poder desfrutá-la diariamente, propus a meu pai que me realizasse um pequeno capricho. - Nessa época ele já tinha me dado uma égua. Hoje percebo que era fácil para ele dizer que ela era minha. Eu não exigia papéis assinados, nem contratos, nada. Simplesmente gostava muito de andar em uma égua malhada, muito mansa, e um dia pedi e ele disse que era minha. Provavelmente não era - . Mas imaginando que pudesse ser dono do que queria, e buscando soluções para os longos períodos afastado do campo, pedi a meu pai que me desse um cavalo para ficar na casa da cidade. Morava apenas com minha mãe e tínhamos um grande quintal ocupado por um vira-latas que não se incomodaria com a presença de outro amigo. Assim como me "deu" a égua, ele disse que sim. Que em breve arrumaria um cavalo para levar à cidade. 

Dos fatores determinantes para dar veracidade à história o principal foi o pedido de sigilo (mães sempre tentam impedir os planos dos garotos). Aquela cumplicidade entre nós dois, talvez o meu primeiro segredo, era fundamental para me fazer sentir parte de algo, de uma grande trama, um plano infalível que talvez demorasse, mas que surpreenderia a todos. No começo agi como qualquer criança chata, sempre que estávamos a sós perguntava insistentemente quando o cavalo viria, até que, muito seriamente, como os homens falam entre si, ele pediu paciência, e disse que as coisas aconteceriam na hora certa. Deixei de perguntar, mas não deixei de imaginar. Fiz tantos planos para minha vida na cidade com um cavalo que não pude esquecê-los. Era como se toda a minha vida dependesse daquilo. Eu o encaixava em todas minhas atividades. Geralmente, ao me deitar, pensava nele até adormecer. Antecipava como executaria cada uma das tarefas que me eram enfadonhas no dia-a-dia de uma nova forma. O cavalo dava uma nova perspectiva a tudo. Imaginava-me acordando pela manhã. A dureza de sair da cama, escovar os dentes e ir buscar o pão tomava contornos épicos. Ao invés da caminhada solitária até a padaria, da falta de dignidade de sair com o cabelo desarrumado e remelas nos olhos, teria que selar o cavalo, montar, abrir o portão montado nele - algo com um alto nível de dificuldade como abrir porteiras sem descer do cavalo - e sair triunfantemente pela rua. O barulho dos cascos contra os paralelepípedos da Rua Planura atraindo atenção e admiração. Ao chegar e amarrá-lo em alguma árvore todos me olhariam de outra forma: "um boiadeiro", pensariam. Depois voltar, alimentá-lo, e então me preparar para ir à escola. Aqui tínhamos uma grande mudança. Aos seis anos de idade provavelmente eu seria o primeiro dos caras a chegar sozinho, sem os pais. Passaria pelas árvores onde as crianças mais velhas prendiam suas bicicletas com todos me olhando lá debaixo. Pediria à diretora que deixasse meu cavalo pastar no gramado do pátio, e mesmo a idéia de falar com a diretora, até então pavorosa, me era tranquila, "estou falando com um boiadeiro", pensaria ela. A grande expectativa não era ainda em relação a nada disso, e sim quanto às brincadeiras com meus amigos do bairro. Era fácil imaginar a mudança de nível que eu teria com um cavalo. Minha performance seria melhor em tudo, além de poder criar novas situações. Quando brincássemos de "pic-pega" seria imbatível, poderia correr de todos, e se por acaso em um golpe de sorte alguém me pegasse eu chegaria facilmente até eles, num passe de mágica. Quando fossemos subir em árvores estaria já na altura da copa. Quando quiséssemos pular o muro para entrar em um terreno baldio estaria já acima dele. Até maneiras de jogar futebol sobre ele imaginei, particularmente como goleiro. Mais fascinante ainda seria brincar de cavaleiro. A possibilidade de transformar em algo real uma mera brincadeira era inquietante. Quantas vezes subíamos em cabos de vassoura velhos emulando cavalos em nossas batalhas épicas contra inimigos imaginários. Agora não, eu estaria realmente em um cavalo, como um guerreiro medieval. Seria o capitão da tropa, melhor que isso só se tivéssemos armas e inimigos de verdade. Era difícil dormir assim, com tanta expectativa, e quando conseguia era o melhor sono que poderia ter. 

Estava prestes a dizer que todo sonho pode se transformar em pesadelo, mas acho que é um pouco de exagero. O tempo passava, eu guardando o segredo como um nobre acordo entre cavalheiros, e o cavalo não aparecia. Voltei a incomodá-lo, esperava que entendesse minha insistência, aquilo de fato era muito importante. Acho que meu pai sempre foi um homem esperto, daqueles que se livram de um problema com uma frase, mesmo que ela apenas transfira o problema, e ele me disse: "vocês estão de mudança, precisamos ver se a casa nova vai ter um bom quintal". Não esqueci e depois que nos mudamos fui dizer a ele que sim, o quintal era suficiente. Foi então que comecei a desconfiar, quando ele descumpriu um de nossos tratos, e disse: "bom, agora você precisa perguntar a sua mãe se ela deixa". Senti-me traído, tivemos parte de nosso acordo quebrado. Guardei durante um ano, ou até mais que isso, aquele segredo. Resignei-me e fui obedientemente até ela pedir para ter um cavalo no quintal. Aquilo era loucura, mas eu queria tanto o cavalo que resolvi engolir seco e perguntar. A resposta foi o esperado: "você está louco? Aliás, seu pai que está louco. É impossível criar um cavalo aqui". Apesar de tanto tempo passado, de ter mudado de amigos e vizinhança, era como se aquilo não fosse apenas mais uma esperança e sim um fato. E muito pior que perder as esperanças é se despedir de um fato. Ainda tentei argumentar com ele que tínhamos um trato, que ela não poderia fazer nada se chegássemos com o cavalo, mas sabia de antemão que sem seu consentimento seria impossível. Agora percebo que a culpei por ter caído em uma armadilha que não foi criada por ela. Fui vítima do truque de meu pai de que as pessoas se esquecem de tudo, de que precisavam apenas de uma ilusão para acreditar, e assim viveriam felizes por algum tempo, depois se esqueceriam e então tudo ficaria bem. Bom, não posso afirmar que ele seja assim, talvez só tenha procurado uma saída diante de um pedido que hoje concordo em classificar como bizarro. Fiquei por alguns meses com o coração partido, pensando em como teria sido, em como a vida poderia ser um mundo novo com aquele cavalo ao meu lado. Mas tudo bem, de um modo estranho é como se ele tivesse mesmo chegado, e fizemos tantas coisas, vivemos tantas aventuras que, mesmo sem existir de fato, ele me ensinou que o mundo também gira dentro da nossa cabeça. Lamento apenas não lembrar como era seu nome, e mesmo sem isso afirmo que sempre foi meu cavalo favorito.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Resenha: Água viva


Ganhei este livro no fim de 2010, em um amigo secreto. Clarice Lispector era uma das minhas grandes lacunas literárias, que ainda são muitas. Só conhecia alguns contos dela que saíram naquelas coletâneas escolares, e não havia lido nenhum romance. Conhecia um pouco dela pelo livro de cartas com o Fernando Sabino, "cartas perto do coração", e algumas entrevistas. E comecei quase por um anti-romance. Um livro sem linearidade, sem cronologia, sem capítulos. Eu adoro essas estruturas caóticas, desde que não sejam incompreensíveis, que possuam ao menos alguma ordem possível de se construir por trás de tudo, senão vira arte pela arte. Aqui a narrativa é muito espontânea, muito livre. E na verdade todo ele gira em torno disto, já que praticamente não há história, apenas um longo relato, uma carta da protagonista, uma pintora, para um homem que não se define bem quem é. 


"Sei o que estou fazendo aqui: estou improvisando. Mas que mal tem isto? improviso como no jazz improvisam música, jazz em fúria, improviso diante da platéia" p. 21.



"Isto não é história porque não conheço história assim, mas só sei ir dizendo e fazendo: é história de instantes que fogem como os trilhos fugitivos que se vêem da janela dos trens". p. 67



Me parece que ela tenta fazer a narrativa seguir a mesma lógica das reflexões que constrói. Parece óbvio, mas não é. É preciso ajustar o ritmo da escrito ao ritmo dos pensamentos, usando metáforas e histórias mais selvagens ou mais calmas, sincronizando sempre forma e conteúdo. Usando as metáforas não apenas como exemplos ilustrativos, mas em uma sucessão caótica, desordenada, e vai construindo pictoricamente - como uma pintora faria em uma tela - o momento, um estado psicológico quase "primitivo", atrás de sensações perdidas, ou não entendidas. 



"Estremeço de prazer por entre a novidade de usar palavras que formam intenso matagal. Luto por conquistar mais profundamente a minha liberdade de sensações e pensamentos, sem nenhum sentido utilitário: sou sozinha, eu e minha liberdade. (...) Esta minha capacidade de viver o que é redondo e amplo - cerco-me de plantas carnívoras e animais legendários, tudo banhado pela tosca e esquerda luz de um sexo místico. Vou adiante de modo intuitivo e sem procurar uma idéia: sou orgânica. E não me indago sobre os meus motivos. Mergulho na quase dor de uma intensa alegria - e para me enfeitar nascem entre os meus cabelos folhas e ramagens" p. 22.



Enfim, é um romance da espontaneidade, sem ensaio, algo como um desabafo organizado. Outra técnica interessante que ela usa às vezes é que os sentidos vão se ligando, o fim de uma frase traz um conceito que dá início a outra frase, parágrafo, tema, como em um jogo. Por exemplo: 

"O excesso de mim chega a doer e quando estou excessiva tenho que dar de mim como o leite que se não fluir rebenta o seio. Livro-me da pressão e volto ao tamanho natural. A elasticidade exata. Elasticidade de uma pantera macia. 
Uma pantera negra enjaulada. Uma vez olhei bem nos olhos de uma pantera e ela me olhou bem nos meus olhos. Trasmutamo-nos. Aquele medo."p. 73. E assim vai. 



Por não ter uma "história" clara, definida, parece que o livro poderia continuar sendo escrito e lido para sempre, sem ter um fim. Ela mesma deixa isso claro: 



"O que te escrevo é um 'isto'. Não vai parar: continua". p. 87



Além de tudo - me foquei basicamente nos aspectos narrativos - as reflexões dela-personagem são ótimas, vale bastante a leitura.