sexta-feira, 13 de abril de 2007

O Jogo da Amarelinha - Cap. 7



Toco a sua boca, com um dedo toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a sua boca se entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e desenha no seu rosto, e que por um acaso que não procuro compreender coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que a minha mão desenha em você.

Você me olha, de perto me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de cíclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõem-se, e os cíclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do seu cabelo, enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água.

(Júlio Cortazar. O jogo da Amarelinha)

quarta-feira, 4 de abril de 2007

Buenos Aires: um domingo antigo



Buenos Aires, 03 de setembro de 2006

Não há nada como saborear a derrota do inimigo estando próximo a ele. Quando se vence em meio aos seus pares, todos são tomados por uma fraternidade, que nos traz a acomodação fácil de quem não pode ser mais atingido. O confronto acaba e você está seguro. Quando se está em meio ao inimigo, e é o vencedor há, sobretudo, um desejo secreto de anunciar aos quatro cantos uma suposta supremacia. Contenta-se, entretanto, com uma silenciosa admiração da dor alheia, e uma discreta contenção de explosão em cada trunfo. Apesar disso, me parece uma alegria mais equilibrada, e, ao mesmo tempo, extremamente sádica. Brasil 3, Argentina 0. O churrasco e a Quilmes descendo lentamente pela garganta dos que dividiam o restaurante conosco, enquanto resmungavam e movimentavam os braços. Alguns iam embora, outros chegavam. O que não mudava era a feição de velório ao olharem para os números mágicos no canto da tela. E nós dois ali, falando o bom português sem nenhum pudor, tomando docemente quilmes com fogazzas e sorrisos. 

Depois disso a cidade se calou, e tomada por uma nostalgia (talvez dos tempos em que tinham Maradona) foi toda para a feira de antiguidades de San Telmo. Havia muita coisa, mas confesso que nao me prendi a quase nada. Só me chamaram a atenção alguns casacos. Havia neles qualquer coisa de rústico com o toque nostálgico de Buenos Aires. Não, não caberia na mala, melhor sair logo daqui. Minhas pretensões, afinal, eram outras naquele domingo de sol. As ladeiras, com seus paralelepídos - cravados há 100 anos por homens que vieram do norte, e chegaram pelo que hoje é o Puerto Madeiro - , ajudavam consideravelmente a amenizar a temperatura. As barracas, a quantidade de pessoas, a subida. Quase me sentia incomodado. Mas de fato tudo isso não passava de desculpa. A verdade é que depois de tomar uma Quilmes, tudo que eu queria era tomar outra. E rumamos em busca de um lugar qualquer. Encontramos, por sorte, um bar vazio e agradável. Apoiavam os cotovelos no balcão dois senhores de idade um pouco avançada, bastante corteses. Serviram-nos sanduiches e algumas cervejas. Era um lugar escuro, numa esquina da Avenida Independência. Talvez pela quantidade de pessoas de alta idade, pela decoração, não sei ao certo, mas algo de antigo pairava no ar que respirávamos naquele ambiente, o que me fez imaginar que neste domingo não poderia fugir do saudosismo e das antiguidades. Entretanto não havia o sol, e sim as Quilmes.

Domingo, em qualquer lugar do planeta, é o dia sagrado do futebol, e apesar do providencial clássico da manhã, ainda havia Estudiantes contra alguém e River contra outro alguém. O bar logo se encheu para assistir os jogos. A atmosfera era tão simpática que nem mesmo as crianças me incomodavam. Cheguei até a achar um ou outro engraçado. Perdi levemente a noção de que a Quilmes tem um litro, e tomei aproximadamente o número de garrafas que tomaria se ela fosse do tamanho das cervejas que estou acostumado. Então, entre um copo vazio e um cheio, descobri o segredo daquele bar. Ali as horas passavam mais rápido. O tempo fluía por uma fenda própria no tempo, e nos levava com ele. Os assuntos, os gestos, os copos, certeiros e voadores, como uma bala. Tudo escorregava com agilidade entre as mesas apertadas e a meia luz. Aquela calma era justamente isso: o referencial da velocidade, a rápida leveza contra o peso que tanto dificultava a caminhada do mundo. Tão rápido que quando estava prestes a pedir talvez minha nona Quilmes, vimos o senhor levantando as cadeiras e limpando o chão. O pior, ainda era cedo. Cedo no meu relógio, e no tempo dos mortais, ali dentro já era tarde, embora eu quisesse permanecer naquela mesa por talvez uma parte da eternidade.

Talvez pela grande quantidade de cerveja, não me lembro de mais nada desta noite.