sábado, 31 de março de 2007

Buenos Aires: jazz portenho


Buenos Aires, 02 de setembro de 2006

Uma leve diferença arquitetônica, toques pitorescos de antiguidade. Cafés que mesmo ao sol do meio dia pareciam escuros e sombrios. O vento frio que balançava o cachecol, peça que nunca havia usado. Um ambiente propício para cigarros tão fortes e fumados incessantemente. A fumaça no rosto, o calor no céu da boca. Talvez eu pudesse me perder, e não conseguir me fazer entender. Talvez chegasse a algum lugar de onde não saísse, tomado por uma força magnética. Talvez odiasse tudo, ou ficasse entediado. Essa era a sensação ao me aproximar de cada esquina no primeiro passeio a pé por esta cidade. Embora no fundo eu soubesse o máximo e o mínimo que poderia encontrar. Me entregava ao que estivesse entre isto. Em geral, as simples calçadas e esquinas de um sábado frio. Era o que eu precisava.

Existem aproximadamente cinco pessoas que eu traria a Buenos Aires. Ao menos uma estava comigo. E dividir a experiência de chegar à Praça de Maio era necessário. Subia daquela praça, como de uma ilha avistada ao longe, um cheiro de esperança, misturado com uma sensação de sofrimento. As placas, as pixações, abraçavam-nos ao mesmo tempo que nos olhavam com os olhos transtornados de ódio. Uma sedução arriscada. Como uma vontade quase incontrolável de se jogar de uma ponte, um sorriso macabro perante a idéia da morte rápida e inesperada. Pombas, mendingos, bancos. Uma praça cravada no sul da América do Sul, me trazendo memórias que não vivi. Relembrando fatos que não conheço. Tensionando meus músculos ao ponto de me fazer aqui, nesta praça, numa vigília incessante. Depor quem for contra meus irmãos, quem quiser tomar minha terra. Senti-me parte de algo que sabia não ser. Repugnavam-me os turistas tirando fotos, os grupos de pessoas sorrindo e falando português ou ingles. Incitava-me uma força interna e violenta a algum atentado. A Casa Rosada, exibindo seus guardas emplumados e estáticos. Sentei-me. Olhei com indiferença para os imponentes prédios ao redor. Vi bandeiras tremulando, e senti o orgulho de quem trabalhava ou vivia com janelas virada para ali. Senti-me então traído por nacionalismos que não existem em mim. Monumentalizaram a pátria. Juntaram num mesmo saco todas as bandeiras, todos os interesses, todas as angústias, e disseram "esta é Argentina". O país parecia de fato estar acima de todos. Ou melhor, o país era todos. A maneira de falar o espanhol. As propagandas tão hipócritas quanto as do resto do mundo (a una amiga nunca se deja sola - cigarrillos philip morris).
Levantamo-nos e pegamos o metrô. Havia o silêncio, e o apito do guarda. O silêncio, reprimido. As portas então, fecham-se. O silêncio, o apito do guarda, as portas fechadas. Rumamos para Palermo Viejo.

Espaço. É tudo que posso dizer sobre esse bairro. Também tem verde, zoologico, praças, mas tudo se insere de maneira quase milimétrica na exatidão dos grandes espaços. Os grandes espaços onde é impossível se perder, mas é muito fácil errar. Erramos, não era a Palermo Viejo que tinhamos que ter vindo. A rua que procuramos fica no centro. Impressionou-me como os argentinos (selecionados) de Palermo pareciam sentir-se bem nessa imensidão vasta de Argentina. Eram simpáticos e prestativos. Os cavalos enfeitados que levavam crianças também felizes a um passeio por 25 pesos. Tudo aqui sorria. Vamos ao centro.

Centros são, quase sempre, efusivos e radiantes. Fábricas de extâse coletivo, materializados pelas luzes e vitrines aglutinadas, atiradas ferozmente em retinas sem aviso. Corpos andando num ritmo como o dos peixes, milhares, sem se tocar. Todos olhando aos pontos fixos, e o mundo se diminui, ou aumenta. Entramos nessa, já que o centro de Buenos Aires não fugia à regra. Eu querendo toda a coleção dos livros de Cortazar (baratíssimos), e minha amiga selecionando um ou outro filme nos cartazes (e querendo os livros do Cortazar). A rua Corrientes, um mar de água doce e quente. Infelizmente um pequeno contratempo nos aconteceu, e precisamos deixá-la. Desfrutamos dos serviços públicos, e para amenizar, fomos a um bar onde acontecia um show de jazz. À noite em San Telmo, todos os bares sao pardos. O unico critério para entrar ou não seria cara ou coroa. Por mais que andássemos, víamos sempre os mesmos rostos, nas mesmas mesas, etc. Esse etc. tornava a simples busca um enorme cansaço. Até que a sorte nos trouxe o jazz, e uma pizza de mussarela.

segunda-feira, 26 de março de 2007

Buenos Aires: a chegada




Buenos Aires, 02 de setembro de 2006

Chegar até aqui nao foi nada fácil. Nao me refiro unicamente às 33h preso na condução. Não. Apesar da distância e da demora, havia sempre a janela, e algo novo. Paisagens, nada excepcional, mas em todo caso, paisagens que ainda não havia visto, possibilidades de surpresa a cada quilômetro rodado. Esse instinto de curiosidade sempre me repele qualquer sensação de tédio ou de insegurança. Refiro-me, mais que tudo, ao longo caminho entre a vontade de estar em Buenos Aires e de fato estar em Buenos Aires. Muitos de meus planos apenas nascem e morrem, nunca crescem ou frutificam. Este não. Circunstancias foram me levando a cada vez mais quere-lo, e mesmo quando não pensava necessariamente nesta cidade, ela se encaixava perfeitamente ao desejo de uma fuga planejada.

Lembro-me de uns três anos atrás, quando Fernando, Gil, e eu, programamos ir a Buenos Aires. A vontade maior era estar com meus amigos, mas Buenos Aires me pareceu, além de tudo, um destino agradável e pitoresco para este feito. Não fomos, mas a vontade não morreu. A literatura ajudou: primeiro Borges, e depois Horácio Oliveira, quando Bons Ares se tornou quase obrigação. A conversa no porto, os arredores caóticos. Eu sentia que de alguma forma tinha de viver aquilo. E, mais recentemente, dissertando numa tediosa noite de domingo, rascunhei em algum canto: "eu ando precisando mudar de ares, de música nova, de uma língua nova.", e juro que nesse dia nao pensava nessa viagem específica. Como eu disse, Buenos Aires era a fuga perfeita.

Bom, como cheguei agora a pouco, posso falar apenas de minhas primeiras impressões. Viadutos... chegamos por uma parte da cidade com muitos viadutos. Apesar de achá-los belas construções, me incomodam, principalmente quando estou a pé. Me deixam um pouco perdido... mas logo passamos por eles, e a primeira claridade do dia apareceu. Veio a melhor parte: as árvores secas por causa do inverno.. todas, sem folhas, sem vida. Tudo opaco, acinzentando as fachadas dos prédios, os cachecóis, o rosto dos que acordam cedo, um cinza que não era triste, era apenas sóbrio. Esse cinza, que de vez em quando também acontece no Brasil, sempre me afugenta instantaneamente a felicidade e a tristeza. Sentimentos que talvez não sejam tão ajustados a minha personalidade.

Quando desci do ônibus o vento era cortante e implacável, e a minha primeira lembrança foi a Loveless. Sim, acho uma boa relação: corte, frio, sobriedade. Se você é muito emocional, nao controla uma Loveless.. se é muito racional, calcula melhor a temperatura da chegada e se precave. Mas era um frio que me dizia: vá em frente, isso não é um obstaculo, é um presente meu para você, que tanto quis me conhecer.

Agora vou deixar minhas bagagens no quarto, tomar banho, e ver o que mais essa mítica cidade me preparará.


"Son para el solitario una promesa
porque millares de almas singulares las pueblan
únicas ante Dios y en el tiempo
sin duda preciosas.
Hacia el Oeste, el Norte y el Sur
se han desplegado – y son también la patria – las calles" (Borges, Las calles)

sexta-feira, 23 de março de 2007

Nocautes Históricos: Marciano x Louis




Alguns nocautes são lembrados por serem plasticamente intocáveis. Outros, por terem acontecido em lutas envoltas por diversos fatores que as tornam especiais. O nocaute de Rocky Marciano em Joe Louis tem isso tudo em doses cavalares. A primeira frase que me ocorre ao lembrar dele é: "o fim de uma era, o começo de outra". Alguma coisa como se o sol, ao morrer, gerasse uma outra estrela, tão poderosa quanto.
Se Joe Louis, com a carreira que teve, precisava ter se exposto a isso, é a pergunta que não cala. Lutar boxe deve ser difícil. Dedicar seu tempo e sua vida a isso. Deixar de lutar boxe é ainda pior. Em que dedicar sua vida e seu tempo? Joe Louis tentou parar. Ezzrard teria sido o último, mas o boxe tem lá suas nuances. Se Louis vencesse, a sua carreira, tão gloriosa, seria encerrada do modo mais nobre que qualquer pugilista poderia sonhar. Acho que mesmo tendo perdido, não foi desonroso. Louis passou o bastão, e o fez em cima do ringue. Sucumbiu de um modo e tanto... Sim, foi um nocaute fortíssimo e que talvez Louis não merecesse. Lembrar daquele garoto negro, rápido como uma bala e preciso como nunca havia se visto até então. Ou imaginar o homem perturbado de alguns anos depois desta luta. E ver Louis caindo fora do ringue. Não, Louis não merecia um nocaute desse. Mas Marciano merecia conseguir esse nocaute. O rapaz mostrava naquele momento o surgimento de um dos socos mais poderosos do boxe. Marciano nunca perdeu uma luta, e nocateou quase todos que o enfrentaram. Joe Louis foi não só a catapulta física para essa carreira irretocável, mas acredito que tenha sido a psicológica também. Não foi atoa que Marciano disse a Louis depois da luta "eu sou seu fã", e nunca escondeu a ninguém que Louis havia sido o grande inspirador de sua carreira. Imagino a cabeça do jovem Marciano ao ter em seu campo de visão, num determinado segundo, Joe Louis em queda livre e o seu braço esticado, ainda tocando o rosto do ídolo.