terça-feira, 29 de setembro de 2009

Os mortos


Ao colocar a chave sobre a mesa, ouvindo o barulho alto do vidro, lembrou-se que ele pediria que não fizesse aquilo. Era uma mesa grande para o cômodo. Muito bem cuidada, apesar da idade. "O vidro arranha, do jeito que você joga essa chave, qualquer hora ele quebra". Um vidro dessa espessura não quebra, pensava ela. Retirou a chave, e pendurou-a no porta-chaves. O tamanho da mesa tornava quase um reflexo colocar qualquer coisa sobre ela. Quantas e tantas discussões por não estar vazia: apenas o forro, o jarro, e a própria mesa. Ao pendurar a chave resmungava contra aquilo. "Você era tão chato que mesmo não estando aqui me assombra com suas manias". Sentiria remorso ao contrariá-las. Mais remorso do que quando fazia algo sabendo que ele chegaria em casa e brigaria. Como é estranha essa sensação de não ter de te esperar. Parece que o ar e tudo fica tão cheio de você, como se antes você anulasse tudo isso com sua presença. Ah, mas como eu sou boba, o ar é o mesmo, é tudo a mesma coisa. Até o silêncio é o mesmo. Sim, você imóvel daquela forma nunca quebrava o silêncio. Ruíam cascas da parede, formigas, mosquitos, a brisa, mas isso tudo era silêncio e continua sendo o mesmo. É estranho o fato de que antes a esperança era quanto ao dia em que o silêncio seria mais profundo. Que viria o estopim, as portas batendo, o carro arrancando, e de repente, tudo tornaria a ser um silêncio calmo e sem peso, sem você. Quando você voltou, pela última vez, eu já havia me despedido. Acredito que você também. A última vez que sonhei com nós dois, estávamos em um trem. Era estranho, parece que íamos para alguma faculdade, em meio a muitos jovens que usavam roupas de formatura, mas era outono e não estavam em clima de festa. De um banco olhávamos, depois você quis entrar em uma das cabines e eu te impedi. Não entendi nada desse sonho, só me lembro dele por ser o último. Quem sabe agora eu não volte a sonhar contigo? Mas sim, como eu dizia, antes a esperança era de que o silêncio se tornasse mais profundo. Agora, quando esta sala lembra um entardecer na memória, tudo parece abstrato e esfumaçado, a esperança é de que um dia possa se ouvir, aqui neste mesmo ambiente escuro e calado, um som espontâneo cortando o ar e surpreendendo estas velhas paredes. Esperança, ou talvez apenas curiosidade. Se um dia tudo vai parecer sólido e firme novamente. Se vão ranger as madeiras. Ou se passou mesmo esse tempo, sem migalhas do passado, e o que se reserva a tudo isso é um fim que provavelmente desconhecerei, como velhos soldados aposentados e inválidos em asilos. Só me resta esperar e continuar com essa esperança, ou talvez curiosidade. Não que eu tenha tempo para esperar, só não resta muito além disso.

sábado, 19 de setembro de 2009

Má reputação




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Má reputação
Preguiçoso ou inconstante
Preciso mesmo me envergonhar
De ser eu a cada instante?

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Fugiu-me agora
depois de uma cerveja
Se queria te esquecer
ou então já era

Na garupa da moto
premonição sombria
pode custar a vida
uma decisão tardia

Se queria ser feliz
errei na medida
fechou o bar antes da hora
agora: não sei

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Quero voltar, quero voltar
sem tantos
verbos no infinitivo do pensamento

Penso em gerúndio ou particípio
desde que seja válido
justificar o precipício

Nenhuma rima porém traria
aquela cor de primavera
velha, fria
como uma foto de outrora.

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Não tomarei esta cerveja
pois já bebi demais.
É uma pena que não esteja
em Montevidéo
(como estive um dia)
ao lado do cais


quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Day is done



When the day is done
Down to earth then sinks the sun
Along with everything that was lost and won
When the day is done.

When the day is done
Hope so much your race will be all run
Then you find you jumped the gun
Have to go back where you began
When the day is done.

When the night is cold
Some get by but some get old
Just to show life's not made of gold
When the night is cold.

When the bird has flown
Got no-one to call your own
Got no place to call your home
When the bird has flown.

When the game's been fought
You speed the ball across the court
Lost much sooner than you would have thought
Now the game's been fought.

When the party's through
Seems so very sad for you
Didn't do the things you meant to do
Now there's no time to start anew
Now the party's through.

When the day is done
Down to earth then sinks the sun
Along with everything that was lost and won
When the day is done.

(Nick Drake - Day is done. Album: Five Leaves Left)

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Abismo Tangente


No mundo
entre outros tantos
um velho sofá
a mesa o mármore
esperam

De costas
bruço
desajeitado nos braços
levanto, tusso
a cortina esconde o traço

Dia
passando as horas
quentes sempre
latejam o ano todo
Marrom e verde

Mastigo
maxilares rígidos
contra si mesmo
remoendo cáries
e o abismo tangente

Seca
a boca e o asfalto
em silêncio
à espera
quase sinto remorso

Sobre
o balanço dos freios
caminho desolado
para perdida tarde
sempre ao vento

Sombras
são ritmos
cedentes ao tempo
o perigo do passado
imaginação ausente

O velho sofá
a mesa o mármore
de qualquer forma
sempre tu
enigma aceso