terça-feira, 6 de agosto de 2013

Resenha: William Faulkner - Luz em Agosto

                                            

Lena Grove é uma jovem que vai caminhando do Alabama ao Mississipi em busca de Lucas Burch. Solteira e grávida ela decide ir atrás do pai da criança para se casar antes do filho nascer. Burch a deixou prometendo avisar assim que se estabelecesse; nunca mais mandou notícias. Por quatro semanas ela segue a pé atrás de uma pista até ouvir dizer que havia um "Burch" trabalhando em uma serraria de Jefferson, Mississipi. Ao chegar até lá Lena encontra Byron Bunch e percebe que, provavelmente, houve uma confusão entre os nomes Bunch e Burch. Logo descobre, porém, que Lucas Burch está na cidade, mas agora usa o nome de Joe Brown. Naquele dia, no entanto, todas as atenções estão voltadas para um grande incêndio na casa de Joanna Burden, uma mulher solitária que é ignorada há décadas em Jefferson por ser descendente de uma família abolicionista que veio do norte

Byron Bunch é um homem pacato e com certa fobia social, trabalha incansavelmente e faz horas extras na serraria aos sábados. Nos domingos viaja 30 km para reger o coral de uma igreja. Seu único amigo é Gail Hightower, um pastor aposentado há décadas, expulso da igreja após o suicídio da mulher. Hightower vive sozinho e depois de anos de perseguições morais e físicas passou a ser quase um fantasma na cidade, mal saindo de casa. Ele chegou a Jefferson logo após o casamento, fez tudo para vir à cidade onde o avô morreu durante a guerra civil. Avô que lhe era quase uma obsessão: um soldado que morreu de forma prematura e estúpida (levou um tiro enquanto roubava galinhas). Mesmo depois dos escândalos pelos quais passou em Jefferson o ex-pastor não quis se mudar, continuou ali, resistindo, até ser esquecido e passar a ser apenas uma sobra do passado na cidade.

Joe Brown, ou Lucas Burch, a quem Lena procura, vive em uma cabana nos fundos da casa que fora incendiada. Vendia uísque contrabandeado em sociedade com o misterioso Joe christmas, o protagonista da história. A história de Christmas começa ainda no orfanato onde descobre que apesar de sua pele branca ele tem sangue negro (fato que não fica claro se verdadeiro ou não, mas é uma verdade que Christmas assume). Logo na infância começa a ser perseguido por uma professora que pensa ter sido descoberta por ele enquanto dormia com um funcionário, ela faz de tudo para que ele seja enviado para um orfanato de negros. Depois é adotado pelo fanático religioso McEachern e sua esposa, passando a infância e adolescência em uma fazenda com o aprendizado da dor e da punição. O ódio e o completo desprezo a qualquer tipo de compaixão, inclusive própria, são o resultado disso. Alguns dos momentos mais raivosos da juventude de Christmas são exatamente contra a mãe adotiva que tenta ser carinhosa e cúmplice dele. O que mais lhe assusta é a possibilidade de que ela o faça se comover. Christmas então se apaixona por uma prostituta que vive na cidade, e por causa dela acaba dando uma cadeirada na cabeça do pai adotivo e fugindo. Passa anos vivendo com negros em comunidades até que chega a Jefferson e conhece Joanna Burden. Ela é mais velha e eles têm um caso completamente doentio marcado por violência e mistérios de ambas as partes. No dia do incêndio em sua casa ela é assassinada, aparentemente por Christmas.

Seu assassinato não havia causado nenhuma comoção em Jefferson, principalmente por ser uma abolicionista (chamavam-na de Yankee). Tudo muda quando descobrem que Christmas, o principal suspeito, possui sangue negro, o que torna sua punição uma questão de honra para a cidade. Quem traz a informação até o xerife é Brown (ou Burch), que está interessado na recompensa. A esta altura Lena ainda não o viu, mas está sendo amparada por Byron Bunch, que se apaixonou por ela mas mesmo assim  prometeu levá-la até o pai da criança para se casarem.

A perseguição policial a Christmas o leva em fuga até a cidade de Mottstown, onde é preso. Lá vive um casal de idosos, os Hines, que são os verdadeiros avós de Christmas. A filha deles (mãe de Christmas) morreu no parto quando seu pai, Doc Hines, se recusou a procurar um médico, por ela ter engravidado de um artista de circo, morto por Doc, um mexicano que, segundo o dono do circo, tinha sangue negro. O neto é odiado pelo avô antes mesmo de nascer e a morte da filha lhe parece justa pelo pecado que cometeu. A avó tenta cuidar do neto, mas ele o leva para um orfanato onde passa a trabalhar como porteiro para vigiar a criança. Assim que ficam sabendo que o neto está preso, trinta anos depois, cada um tem uma atitude distinta. O avô passa a fazer discursos públicos pelo linchamento, a avó tenta de alguma forma salvá-lo. Os dois vão então até Jefferson, onde seria realizado o julgamento.

Christmas é levado a Jefferson, mas consegue fugir para a casa de Hightower. A esta altura o ex-reverendo já fez o parto de Lena Grove e ouviu os apelos da avó para que fosse o álibe de Joe Christmas. Já havia então em Jefferson uma espécie de milícia liderada por Percy Grimm, da Guarda Nacional, que seguia o caso com sede de morte caso o tribunal não condenasse à pena máxima o provável assassino. Quando Christmas foge Grimm tem sua chance e não a desperdiça. Ao entrar na casa, mesmo com os apelos de Hightower de que Joe era inocente, Grimm o mata e o castra, para ele "deixar as mulheres brancas em paz, mesmo no inferno".

Enquanto isso Byron Bunch consegue levar Lucas Burch até Lena, sem que ele soubesse do que se tratava. Ao entrar e ver a mulher com o filho nos braços ele dá um jeito de fugir novamente, desta vez pela janela. Byron havia decidido deixar a cidade, mas quando percebe que Lena está novamente sozinha ele volta. No último capítulo ambos conseguem uma carona de caminhão até o Tennesse. Byron pede continuamente a mão de Lena em casamento, mas como ela recusa continua a ajudá-la a encontrar Lucas Burch. Como se os dois fossem passar a vida juntos, viajando atrás de algo inalcançável e inútil.

Joe Christmas é uma mistura de herói e anti-herói. Tudo nele tem certo exagero, um personagem absurdo, como sua vida, como o racismo e o conservadorismo da sociedade americana da época. Ao mesmo tempo em que assume sua condição de negro ele se mantém racista: era natural odiar os negros, mesmo que você fosse um deles, como neste diálogo imaginário com a mãe adotiva: "Escute. Ele diz que criou um blasfemo e um ingrato. Eu a desafio a lhe dizer o que ele criou. Que ele criou um crioulo embaixo do próprio teto, com sua própria comida em sua própria mesa".  Todos os personagens são solitários, exilados, abandonados, amargos ou com esperanças vazias. O fanatismo é o pano de fundo, é o que justifica praticamente tudo que acontece, como se fosse a única coisa certa e regente no mundo que recebe o bebê de Lena Grove. Um retrato amargo e realista do sul dos Estados Unidos à época, ainda abraçado ao cadáver quente da guerra civil. Todas as mazelas sociais recaem sobre os personagens de Luz em Agosto, todos são alguma face sombria de sua época. Os dramas pessoais são perfeitamente construídos, como os de Hightower. A imensidão épica que ele dava ao avô, soldado confederado, o faz ficar eternamente preso ao passado, delirando com histórias que lhe fazem criar um filtro psicológico para a realidade e o levam ao imobilismo. Assim como Christmas, todos são um pouco caricatos, e este exagero parece uma escolha, Faulkner cria com tanto detalhismo as vidas de seus personagens, dá-lhes uma forma de pensar tão particular que é como se os víssemos por dentro de uma forma em que não podemos julgá-los por conhecermos tanto seus pontos fracos. Entramos em suas misérias particulares, vemos seus medos, suas limitações, principalmente as limitações. Em resumo, é possível enxergar o porquê deles entenderem o mundo de determinada forma. Daí todos ficarem um pouco exagerados, porque olhamos de perto demais.

A narrativa em Luz de Agosto segue o fluxo de consciência dos personagens. Não há onisciência, mesmo o narrador em terceira pessoa só conhece a história até o ponto em que o personagem a conhece, deixando inclusive lacunas que outros personagens podem vir a cobrir. Christmas, por exemplo, nada sabe sobre sua primeira infância, e o leitor também não, o que só mudará quando aparecerem seus avós. Os personagens são a narrativa. O narrador, no entanto, a organiza e a constrói. Porém, diferentemente de James Joyce em Ulisses e do próprio Faulkner em Enquanto Agonizo, a consciência não domina a linguagem. Neste Faulkner a linguagem do narrador molda a vida dos personagens ao contar suas histórias. Ela explica e amplifica os sentimentos, dá-lhes uma forma artística sem deixar de ser prosaica. Faulkner parte da consciência de seus personagens e a lapida, diferentemente do que faz, como citado, em Enquanto Agonizo, onde ele deixa que os personagens construam a narrativa. Seguem abaixo alguns exemplos:

(Joe Christmas e a mãe adotiva)
Não era o trabalho duro que ele odiava, nem o castigo e a injustiça. Estava acostumado a isso antes mesmo de ter visto qualquer um deles. Não esperava menos, e por isso não se sentia ultrajado nem surpreso. Era a mulher: aquela bondade suave da qual se acreditava condenado a ser a vítima eterna e que odiava mais do que a dura e implacável justiça dos homens. "Ela está tentando me fazer chorar", pensava, deitado frio e rígido na cama, as mãos atrás da cabeça e o luar caindo sobre o corpo, ouvindo um murmúrio constante da voz do homem como se ela subisse a escada para o primeiro estágio a caminho do céu. "Estava tentando me fazer chorar. Aí ela acha que eles teriam me submetido".
p. 150

Percebe-se então que a narrativa e a voz de Christmas se completam, o personagem exemplifica o que o narrador explica. Já em outros trechos, como o descrito abaixo, o próprio personagem pode se explicar por completo:

(conversa entre Hightower e Byron Bunch)
"Por que você passa as tardes de sábado trabalhando na fábrica enquanto outros homens estão se divertindo na cidade?"(...).
"Não sei", disse Byron. "Acho que a minha vida é esta mesmo".
"E eu acho que a minha vida é esta mesmo, também", disse o outro. "Mas agora sei por quê", Byron pensa. "É porque um sujeito tem mais medo do problema que poderá vir a ter do que do problema que já tem. Ele se agarrará ao problema a que está acostumado em vez de arriscar-se a uma mudança. Sim. Um homem falará sobre como gostaria de escapar dos vivos. Mas são os mortos que lhe causam dano. É dos mortos que jazem quietos num lugar e não tentam agarrá-lo que ele não pode escapar".
p. 67

No trecho abaixo há apenas uma pequena interferência de Hightower em meio ao trabalho do narrador (e por sinal uma intervenção do narrador quando Hightower está falando/pensando), o modo como se organiza a memória, detalhista e precisa. O ex-pastor escuta de sua casa os sons da cerimônia e lembra como era em sua época, misturando passado e presente para formar uma coisa única, atemporal, onde sobrevive:

Esperando, observando a rua e o portão da janela do estúdio às escuras, Hightower ouve a música distante no momento em que ela começa. Ele não sabe que a espera, que todas as noites de quarta-feira e domingo, sentado à janela escura, ele espera que ela comece. Sabe quase o segundo em que deve começar a ouvi-la sem recorrer ao relógio de bolso ou o de parede. Ele não usa nenhum dos dois, já não precisa deles há vinte e cinco anos. Vive dissociado do tempo mecânico. Mas por essa razão ele nunca o perdeu. É como se no seu subconsciente ele produzisse, sem querer, as poucas cristalizações de instâncias estabelecidas pelas quais sua vida morta no mundo real fora governada e ordenada um dia. Sem recorrer a relógio ele poderia saber imediatamente, pelo pensamento, precisamente onde, em sua vida antiga, ele estaria e fazendo o quê entre dois momentos fixos que marcavam o começo e o fim do serviço dominical matinal e do serviço dominical noturno e do serviço de oração na quarta-feira à noite; precisamente quando estaria entrando na igreja, precisamente quando estaria trazendo para um desfecho calculado a oração ou o sermão. Assim, antes de o crepúsculo ter desvanecido por completo, ele está dizendo para si mesmo '
Agora eles estão se reunindo, se aproximando pela rua lentamente e virando para entrar, saudando-se uns aos outros: os grupos, os casais, os solteiros. Uma ou outra conversa informal na própria igreja, em voz baixa, as senhoras de sempre um pouco sibilantes com leques, acenando com a cabeça para as amigas que chegam enquanto passam pela nave. A srta. Carruthers (ela era sua organista e já morrera há quase vinte anos) está entre elas; logo ela se levantará e entrará no balcão do órgão' Reunião para orações no domingo à noite. Sempre lhe pareceu que naquela hora o homem chega mais perto de Deus, mais perto do que em qualquer outra hora de todos os sete dias. Só então, entre todas as reuniões religiosas, existe algo daquela paz que é a promessa e o fim da igreja. A mente e o coração se purgavam então, se assim devesse ser; a semana e seus desastres, quaisquer que eles fossem, terminados e somados e expiados pelo furor duro e formal do serviço matinal; a semana seguinte e seus possíveis desastres ainda não nascidos, o coração aquietado agora por algum tempo sob o fresco e suave sopro da fé e esperança".
p.319a

Em relação ao título, sempre me pareceu haver uma relação entre "luz" e o nascimento do filho de Lena. Há uma aparente releitura do nascimento de Cristo, até alguma semelhança, como entre a cabana onde ela dá a luz e a manjedoura, ou os três personagens que estavam com ela no momento (os Hines e Hightower) com os três reis magos, e além de tudo o nome de seu outro personagem, Christmas. Até mesmo a capa da edição brasileira mais recente, da Cosac Naify, mostra uma sombra sobre uma adolescente, mais especificamente a barriga de Lena Grove. De toda forma algumas pesquisas me indicaram que o próprio Faulkner refutava esta relação e dizia que em agosto, no Mississipi, em alguns dias a luz do sol lhe dava a impressão de que estava em outra época, uma época clássica, como a Grécia antiga.

Luz em Agosto é um clássico maiúsculo. Impossível não se sentir inserido na história americana, além da usual aula de técnicas literárias que Faulkner nos proporciona. 


FAULKNER, W. Luz em Agosto. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Resenha: João Cabral de Melo Neto - Auto do Frade

O poema dramático de João Cabral de Melo Neto sobre Frei Caneca relata o último dia do carmelita condenado à morte por sua atuação republicana, mais especificamente como um dos líderes da Confederação do Equador. Apesar do forte conteúdo histórico-político a narrativa é totalmente centrada na ação, na reconstrução dos momentos percorridos por Caneca da prisão até a execução da sentença. Como é um auto, a poesia se desenvolve como estrutura teatral, cada personagem em seu espaço narrativo. Destacam-se então a voz do povo, as vozes oficiais, e a do próprio frei. A mistura de todas as impressões, — geralmente opostasm já que a maioria nas ruas estava ao lado do condenado e a voz oficial, inquisitiva e protocolar, aliados ao lirismo lúcido e contestador de Caneca mesmo à beira da morte — constroem um quadro belo e doloroso daquela tarde que enquanto acontecia já parecia destinada à história.

A interpretação dos atos mais simbólicos geralmente se dá pelos comentários dos populares, que enchiam as ruas do Recife. Como na cena da excomunhão em um ritual público onde lhe vestem a batina e depois a arrancam, para assim entregar à justiça um homem comum, e não um padre.

“ —  Quando tiravam alguma coisa,

vinham o incenso e a água benta.

— Não era o frade a quem benziam,

estavam benzendo era a prenda.

 — Queriam limpá-la do frade

e do diabo, se estava prenha.

— Queriam lavá-de tudo,

do frade, do diabo e suas lêndeas.”

Mais raras são as reflexões do próprio frei, porém oferecem uma perspectiva intimista, um ponto de vista pessoal de quem se notava pelo pensamento público:

“O raso Fora-de-Portas

de minha infância menina,

onde o mar era redondo,

verde-azul, e se fundia

com um céu também redondo

de igual luz e geometria!

Girando sobre mim mesmo,

girava em redor a vista

pelo imenso meio círculo

de Guararapes a Olinda.

Eu era um ponto qualquer

numa planície sem medida,

em que as coisas recortadas

pareciam mais precisas,

mais lavadas, mais dispostas

segundo clara justiça.

Era tão clara a planície,

tão justas as coisas via,

que uma cidade solar

pensei que construiria.”

O povo está nas ruas, e está ao lado do frei. Paira no ar uma consternação indignada, ao mesmo tempo em que há uma esperança de que chegue a qualquer momento, por água ou por terra, um indulto do imperador. Esperanças que vão morrendo aos poucos conforme passam as horas, ou quando se convencem que o imperador sequer sabe onde fica Pernambuco. O burburinho das ruas, que se avoluma cada vez mais enquanto o seguem como em uma procissão, incomoda muito os oficiais, como se prestes a haver uma revolta para libertá-lo. Ao chegarem à forca as ordens são de que o executem logo, mas com que carrasco? Todos se recusam a matá-lo, pois rondava na cidade a lenda de que a Virgem Maria foi vista sobrevoando a cidade e pedindo que não lhe enforcassem o afilhado. Nem mesmo outros condenados à morte, para os quais é oferecido indulto em troca de realizar o serviço sujo, aceitam. Sentado ao pé da forca Caneca espera. Sem sucesso os oficiais são obrigados a chamar um pelotão de fuzilamento para cumprir a pena. Este é um fato muito simbólico. O frei foi condenado como um criminoso comum, por isso seria enforcado. A tentativa de desmoralizá-lo ruiu ao terem de recorrer ao fuzilamento. Morrer fuzilado era quase uma honra militar, uma redenção, um ato heróico. Fuzilá-lo era como ratificar sua posição de mártir.

Por fim morre Caneca, com doze tiros. A cena da morte é narrada através de seu pai, que está em um bairro onde não pode ver, apenas ouvir o que acontece no Forte. Ao som dos tiros da tropa ele volta para o quarto onde passou dias rezando e acendendo velas a todos os santos. Apaga todas, joga as flores no lixo, recolhe os santos e os joga ao mar.

Ainda sobre o pai, foi por ele que Joaquim do Amor Divino Rabelo se tornou Caneca.

“ — Por que o chamam sempre Caneca

se se chama mesmo é Rabelo?

— Frei Caneca é o filho maior

de um certo Rabelo tanoeiro;

ao pai, por sua profissão,

chama-o Caneca o povo inteiro.

E o filho quando se ordenou

quis levar a alcunha do velho.

— Por que não deixou para um lado

esse apelido de Caneca?

Ser do Amor Divino era pouco

para dignificar quem ele era?

— Não quis esconder que seu pai

um simples operário era,

nem mentir parecendo vir

das grandes famílias da terra.”

Um personagem histórico vivido por um personagem literário. Uma reinterpretação, uma reconstrução pela poesia como se fosse a ciência da linguagem, típica de João Cabral.

O poeta escolhe o lado e recria esta faceta rígida e lírica, totalizante ao mesmo tempo que se baseia em vozes soltas. Uma espécie de monumento de representação dos vencidos, este é o admirável paradoxo.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Juan Rulfo - Pedro Páramo



Uma narrativa que mistura memórias e poesia como poucas. Pedro Páramo é uma saga em precisas 130 páginas. Histórias tristes se misturam a desejos de vingança, servidão, amores paranóicos, violência e busca. A história sofrida de Comala muito se assemelha com a de toda a América Latina longe das capitais e do poder constituído (geralmente ocupado pelo coronelismo). 

Juan Preciado é um filho de mãe solteira que após a morte dela vai em busca de seu pai, Pedro Páramo, no povoado de Comala, México. Lá encontra uma procissão de mortos que lhes contam todas as desventuras de seu pai, um coronel implacável, de formas que variam de acordo com cada narrador. Depara-se inclusive com as memórias do próprio pai. Este "recurso narrativo" de utilizar os mortos não nada tem de espírita ou sobrenatural. Na verdade a escolha pelos mortos parece precisamente o oposto disso: como se os mortos já não temessem a verdade, como sempre o fizeram em vida, sendo eles os únicos com autonomia para relatar com precisão. Por outro lado mostra que a condenação daquele povo é eterna, que mesmo depois de mortos estão presos àquele sistema, àquela terra quente e sem esperanças, interpelando os vivos que passam por ali para que rezem por eles. E, porque não, para contar como foram algumas das mortes sob o ponto de vista mais claro, o do morto.

O contra-ponto da história de opressão de Pedro Páramo é, de certa forma, Susana San Juan, mulher que ele amou no fim da vida e que, mesmo que minimamente, lhe fez ter consciência de suas fraquezas. 

A narração é completamente não-linear, mas é fácil perceber a mudança de personagens, ou de perspectiva. Um mesmo personagem pode contar a sua história, como num relato de infância com os verbos no tempo presente, ou contar suas memórias, no pretérito. As vozes vão do coronel Páramo até senhoras simples que viveram suas vidas enclausuradas à espera de dias melhores ou de amores impossíveis. 

É fácil perceber a influência desta obra em clássicos como Cem anos de solidão. Aliás, Comala, assim como Macondo, me lembraram muito o interior de Minas Gerais, afinal "América Latina" é isso aí. 

Pode ser um exercício interessante comparar as técnicas narrativas de escritores que tratam de realidades tão próximas abordando-as de maneira tão distinta (ou seguindo "escolas literárias" diferentes) como Garcia Marquez, Juan Rulfo, Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa, etc. 

Um trecho que exemplifica bem a narrativa poética de Juan Rulfo:
"Pedro Páramo viu como os homens iam embora. Sentiu desfilar na sua frente o trote de cavalos escuros, confundidos com a noite. O suor e o pó; o tremor da terra. Quando viu os pirilampos cruzando outra vez suas luzes, percebeu que todos os homens tinham ido. Só restava ele, como um tronco duro começando a se despedaçar por dentro" (p. 120).

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Resenha: Água viva


Ganhei este livro no fim de 2010, em um amigo secreto. Clarice Lispector era uma das minhas grandes lacunas literárias, que ainda são muitas. Só conhecia alguns contos dela que saíram naquelas coletâneas escolares, e não havia lido nenhum romance. Conhecia um pouco dela pelo livro de cartas com o Fernando Sabino, "cartas perto do coração", e algumas entrevistas. E comecei quase por um anti-romance. Um livro sem linearidade, sem cronologia, sem capítulos. Eu adoro essas estruturas caóticas, desde que não sejam incompreensíveis, que possuam ao menos alguma ordem possível de se construir por trás de tudo, senão vira arte pela arte. Aqui a narrativa é muito espontânea, muito livre. E na verdade todo ele gira em torno disto, já que praticamente não há história, apenas um longo relato, uma carta da protagonista, uma pintora, para um homem que não se define bem quem é. 


"Sei o que estou fazendo aqui: estou improvisando. Mas que mal tem isto? improviso como no jazz improvisam música, jazz em fúria, improviso diante da platéia" p. 21.



"Isto não é história porque não conheço história assim, mas só sei ir dizendo e fazendo: é história de instantes que fogem como os trilhos fugitivos que se vêem da janela dos trens". p. 67



Me parece que ela tenta fazer a narrativa seguir a mesma lógica das reflexões que constrói. Parece óbvio, mas não é. É preciso ajustar o ritmo da escrito ao ritmo dos pensamentos, usando metáforas e histórias mais selvagens ou mais calmas, sincronizando sempre forma e conteúdo. Usando as metáforas não apenas como exemplos ilustrativos, mas em uma sucessão caótica, desordenada, e vai construindo pictoricamente - como uma pintora faria em uma tela - o momento, um estado psicológico quase "primitivo", atrás de sensações perdidas, ou não entendidas. 



"Estremeço de prazer por entre a novidade de usar palavras que formam intenso matagal. Luto por conquistar mais profundamente a minha liberdade de sensações e pensamentos, sem nenhum sentido utilitário: sou sozinha, eu e minha liberdade. (...) Esta minha capacidade de viver o que é redondo e amplo - cerco-me de plantas carnívoras e animais legendários, tudo banhado pela tosca e esquerda luz de um sexo místico. Vou adiante de modo intuitivo e sem procurar uma idéia: sou orgânica. E não me indago sobre os meus motivos. Mergulho na quase dor de uma intensa alegria - e para me enfeitar nascem entre os meus cabelos folhas e ramagens" p. 22.



Enfim, é um romance da espontaneidade, sem ensaio, algo como um desabafo organizado. Outra técnica interessante que ela usa às vezes é que os sentidos vão se ligando, o fim de uma frase traz um conceito que dá início a outra frase, parágrafo, tema, como em um jogo. Por exemplo: 

"O excesso de mim chega a doer e quando estou excessiva tenho que dar de mim como o leite que se não fluir rebenta o seio. Livro-me da pressão e volto ao tamanho natural. A elasticidade exata. Elasticidade de uma pantera macia. 
Uma pantera negra enjaulada. Uma vez olhei bem nos olhos de uma pantera e ela me olhou bem nos meus olhos. Trasmutamo-nos. Aquele medo."p. 73. E assim vai. 



Por não ter uma "história" clara, definida, parece que o livro poderia continuar sendo escrito e lido para sempre, sem ter um fim. Ela mesma deixa isso claro: 



"O que te escrevo é um 'isto'. Não vai parar: continua". p. 87



Além de tudo - me foquei basicamente nos aspectos narrativos - as reflexões dela-personagem são ótimas, vale bastante a leitura.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Resenha: Junta-Cadáveres


O uruguaio Juan Carlos Onetti parece estar sendo descoberto apenas agora no Brasil, inclusive por mim, em edições muito bem-feitas pela Planeta. Como destacado no prefácio, ele sempre seguiu uma tendência um pouco diferenciada da maioria dos autores latino-americanos, distanciando-se do realismo fantástico e do regionalismo, o que talvez explique um pouco o fato. Sobre as edições citadas destaco as capas de "Junta-Cadáveres" e "O Estaleiro", e o prefácio de Francisco Dantas, importantíssimo para introduzir e dimensionar a obra do uruguaio.

A estrutura da narrativa de Onetti é muito bem construída e inovadora. Em "O Estaleiro" quem conta a história é uma espécie de "voz coletiva", que narra e julga as atitudes de Larsen e dos outros personagens. Não se escondem intenções e preferências, e essa parcialidade explícita leva a voz narrativa a ser julgadora e julgada, bem como o personagem, em todos os seus atos. Em "Junta-Cadáveres" o narrador é Jorge Malabaia, garoto de dezesseis anos que vive em Santa Maria, cidade fictícia onde são ambientados todos os romances do autor, dividida em uma cruzada moral contra a instalação de um prostíbulo na cidade. O foco porém não é único, as passagens vão de primeira a terceira pessoa de acordo com o capítulo, e algumas vezes a introdução de uma primeira pessoa introspectiva em cada personagem transforma a narrativa em uma grande teia, cobrindo todas as possibilidades de se enxergar aquela sociedade, e as pessoas, por fora e por dentro.

De toda forma o que mais me atraiu na narrativa de Onetti foi o seu modo peculiar de descrição. É muito comum percebermos e entendermos uma cena apenas pelos gestos de seus personagens, o corpo refletindo pensamentos, sensações, através de movimentos, como na parte a seguir, onde Jorge caminha pela noite depois de se encontrar com Julita, confuso e insatisfeito com poemas que escreveu:

"Empurro o portão e pego a estrada; mas não tenho realmente vontade de ir, de repetir hoje a comédia noturna com o velho Lanza. Vou indo com as mãos nos bolsos da capa de chuva, cuidando para que os ombros fiquem soltos, abandonados, tentando fazer com que os braços não participem do esforço da marcha, evitando às vezes com trabalho e alarme os buracos cheios de água, pisoteando-os outras vezes com raiva. O nariz aberto para tentar descobrir a origem (a forma da árvore, o monte de lixo, da cova ou esconderijo sombrio) de cada cheiro de fim de verão que a noite úmida apodrece e adocica; a cabeça erguida naquele ângulo que indica o desespero e a vontade de assimilá-lo, aquele ângulo exagerado, viril e doloroso que determina a queda da boca e das pálpebras. Vou indo - a passos largos pelo caminho que sobe e desce e que parece virar continuamente para a direita, em espiral - porque tenho muita vontade de fazer a outra coisa; subir para comer e inclinar-me, mastigando, consciente do brilho da gordura nos lábios, sobre a estupidez desolada dos quatro versos sem destino, que não deviam ter-se formado, de cuja inútil introdução no mundo sou responsável e que não posso tirar da memória" (p. 75)

Jorge, o narrador, é um jovem que vive na cidade e observa os acontecimentos: a criação e a luta contra o prostíbulo de Junta-Cadáveres. Enquanto isso vive encontros proibidos com Julita, viúva de seu irmão, que enlouqueceu e parece confundir o irmão morto com o vivo. Por influências familiares acaba sendo levado a participar da queda da casa da orla, como é chamado o lugar onde vivem Junta e as três mulheres. Marcos, irmão de Julita, e o padre Bergner, tio de Marcos, são os maiores inimigos da casa de prostituição, além das estudantes e quase todas as mulheres da cidade. Do outro lado temos Larsen, o Junta-Cadáveres, e o médico Díaz Grey. Larsen é um homem visto por toda a sociedade como de moral questionável, um aventureiro, que sempre sonhou em montar o prostíbulo perfeito, mas conseguiu recrutar apenas três prostitutas de idade avançada. Díaz Grey é um médico velho e decadente, que do alto dos anos passados em uma cidade pequena e sem saída, olha para o passado, para as pessoas que ajudou a nascer, com certo desgosto, amargo pelo que se tornou, e esperançoso no que poderia ter sido, como no trecho a seguir, em que se imagina vivendo outra vida:

"Em vez do perfume dos jasmins amarelos e pisoteados, daquele que o vento traz do rio, daquele que flutuará sempre, imóvel, na sombra da minha escada, um cheiro composto e respirado no meio da tarde num café, numa cidade populosa que nunca vi. O mais Díaz Grey dos Díaz Grey está sentado numa mesa, sozinho, sem esperar ninguém. Não é um café familiar, não muito luxuoso nem muito pobre, tem janelas que dão para uma avenida larga e mal-lavada.

Díaz Grey fuma, com o corpo em abandono, um pouco suado, fresco e cálido por essa leve umidade das caminhadas nos finais de primavera; apóia o cigarro na borda de uma xícara para soltar a cinza. Alguém varre e esparrama serragem atrás do balcão; deixaram abertos os mictórios e um cheiro de sexo e amoníaco, de caracóis mortos esfrega-se contra o piso, contra o cheiro de serragem molhada. Da janela chega o cheiro de nafta da rua e o de jornais recém-impressos; há também um perfume de mulher, intenso, suave, com uma intenção que não consegue se concretizar.

Sem dúvida, nada disso tem sentido nem importância; de qualquer modo, vou subindo com cautela a escada em sombras com uma tênue inveja do suposto Díaz Grey, com os olhos fechados e o nariz inquieto, tentando reunir e respirar os diferentes cheiros que formam o cheiro que lhe convém" (p. 127)

Enfim, um livro para ser lido por diversos motivos, o antagonismo social e moral, as certezas que se tornam perigosas e munição para guerra, o radicalismo de idéias, a vida dissecada de uma sociedade fechada, a variação de personalidades do público para o privado, e principalmente, a meu ver, as descrições e construções narrativas, únicas.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Resenha: homem comum


Em matéria de descobertas literárias o ano de 2010 tem sido esplêndido. Li neste ano alguns dos melhores livros de minha vida, e quatro em especial são de autores que até então eu não havia lido nada: Ernesto Sábato (O Túnel), Cormac McCarthy (Todos os belos cavalos), Juan Carlos Onetti (O Estaleiro), e Philip Roth, com "homem comum", livro sobre o qual escrevi abaixo algumas impressões.

"Homem comum" é um livro completamente arrasador. Daqueles que te fazem parar quase de página em página e pensar na própria vida. Não que te ensine algo, mas pela forma familiar de construir lembranças. A história começa no enterro do protagonista e termina com sua morte. Philip Roth se debruça sobre o que há de mais triste e inevitável na existência humana. O livro não é nada além disso: morte, pessoas unidas à espera da morte, decadência, espera, arrependimento. Aliás, a única parte viva deste romance, a única em que os personagens criam, vivem intensamente, e não se preocupam com o amanhã, é narrado em forma de memórias, portanto terreno fértil para arrependimentos e crises.

Roth constrói de maneira muito fluida e natural sua narrativa, e às vezes nem parece que trata de um tema tão áspero. Ao mesmo tempo em que segue uma prosa simplificada e sintética ele intercala considerações reflexivas fortes, porém, em nenhum momento, pedantes (como "Para quem provou a vida, a morte não parece nem sequer natural"). Consegue reunir as melhores reflexões de uma escrita clássica em uma narrativa contemporânea e passível de ser lida por qualquer um, misturado a uma dose de realismo.

Outro traço marcante é a relação com os pais. A variação de momentos mais fortes do livro é entre a velhice terminal do protagonista e a morte de seus pais. É interessante como ele constrói essa mudança de paradigma, primeiro:  "o que será deles", e depois, num amargo amadurecimento, "o que será de mim". Uma das coisas que mais me agradou foi justamente a perfeita descrição da decadência do corpo e da carne como justificativa para a decadência psicológica do ser humano.

Tenho a impressão de que este romance/novela é exatamente o que penso de arquétipo de um romance moderno (não no sentido de modernismo, mas de contemporaneidade).

Um trecho para exemplificar a leve narrativa do pesado tema da obra. Neste momento ele visita o túmulo dos pais:

"Eram apenas ossos, ossos dentro de uma caixa, mas os ossos deles eram dele, e ele aproximou-se dos ossos o máximo que pôde, como se a proximidade pudesse estabelecer um vínculo com eles e atenuar o isolamento causado pela perda do futuro e religá-lo a tudo o que havia ido embora. Durante uma hora e meia, aqueles ossos foram a coisa mais importante no mundo. Eram tudo o que importava, a despeito do ambiente de decadência daquele cemitério abandonado. Na presença daqueles ossos, ele não conseguia se afastar deles, não conseguia não falar com eles, não conseguia fazer outra coisa senão ouvir o que eles diziam. Entre ele e aqueles ossos muita coisa aconteceu, muitos mais do que agora entre ele e os que tinham carne em torno de seus ossos. A carne vai embora, porém os ossos permanecem. Os ossos eram o único consolo que restava para alguém que não acredita na vida após a morte e sabia, sem nenhuma dúvida, que deus era uma ficcão, e que aquela vida era a única que ele teria". (p. 123-124)

E um segundo trecho, onde ele pensa sobre como fora o suicídio de uma de suas amigas de velhice, Millicent Kramer. Espero não ser muito longo:

"Quando acordou, no meio da noite, acendeu todas as luzes, bebeu um copo d'água, escancarou uma janela e ficou andando de um lado para o outro para recuperar o equilíbrio, porém, por mais que tentasse pensar em outra coisa, só conseguia formular uma única pergunta: como fora seu suicídio? Num impulso, engolindo todas as pílulas antes que mudasse de idéia? E, depois que as engolira, teria gritado que não queria morrer, que só não queria continuar sofrendo aquela dor paralisante (...) teria gritado que só queria que Gerald estivesse ali para ajudá-la e lhe dizer para aguentar firme, para lhe garantir que ela conseguiria suportar e que estavam juntos para enfrentar tudo? (...) Ou teria agido com frieza, convencida, por fim, de que estava fazendo a coisa certa? Teria agido sem pressa, segurando o frasco com as duas mãos, pensativa, antes de esvaziá-lo na palma de uma das mãos e engolir os comprimidos um por um com seu último copo d'água, a última água de sua vida? (...) talvez sorrindo enquanto chorava e relembrava todos os prazeres, tudo o que a entusiasmava e agradara, evocando centenas de momentos comuns que não lhe pareceram importantes quando ela os vivera, mas que agora era como se tivessem existido com a intenção específica de inundar sua vida de uma felicidade cotidiana? Ou teria perdido o interesse nas coisas que estava deixando para trás? Teria ficado sem medo, pensando apenas: finalmente a dor passou, a dor finalmente foi embora, agora é só dormir e ir embora desta coisa extraordinária? (p. 118-119)

terça-feira, 12 de janeiro de 2010




"Grandes são os desertos e tudo é deserto,

Salvo erro, naturalmente.
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!"

(Álvaro de Campos)

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Day is done



When the day is done
Down to earth then sinks the sun
Along with everything that was lost and won
When the day is done.

When the day is done
Hope so much your race will be all run
Then you find you jumped the gun
Have to go back where you began
When the day is done.

When the night is cold
Some get by but some get old
Just to show life's not made of gold
When the night is cold.

When the bird has flown
Got no-one to call your own
Got no place to call your home
When the bird has flown.

When the game's been fought
You speed the ball across the court
Lost much sooner than you would have thought
Now the game's been fought.

When the party's through
Seems so very sad for you
Didn't do the things you meant to do
Now there's no time to start anew
Now the party's through.

When the day is done
Down to earth then sinks the sun
Along with everything that was lost and won
When the day is done.

(Nick Drake - Day is done. Album: Five Leaves Left)

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

A Brincadeira


Quatro trechos do livro "A brincadeira", de Milan Kundera. Todas as partes são de capítulos do personagem Ludvik.

Independente dos trechos descritos, que soltos não dizem nada da história, o mote do livro me lembrou um pouco "A piada mortal", do Batman. A teoria de que um dia ruim pode mudar toda a vida de um homem. (Aliás, o segundo lembrou o primeiro, já que este fora escrito mais de vinte anos antes). E quando muita gente fala a mesma coisa, pode ser que seja verdade. Mesmo que o Batman não concorde.



"Tomei um velho bonde de bitola estreita que percorria um caminho cheio de curvas, caminho esse que ligava entre si os distantes bairros de Ostrava, e deixei-me levar ao sabor do vento. (...) Toda essa periferia interminável de Ostrava, em que se misturaram estranhamente as fábricas e a natureza, os campos e os depósitos de lixo, os bosques de árvore e os entulhos, grandes prédios e casinhas campestres, me atraía e me perturbava de maneira extraodinária; tendo deixado definitivamente o bonde, comecei um longo caminho a pé: contemplava, quase com paixão, a estranha paisagem e esforçava-me por decifrar-lhe o sentido; procurava o nome daquilo que confere unidade e ordem a esse quadro tão disparatado; passando perto de uma casa idílica coberta de hera, percebi que ela estava em seu verdadeiro lugar aqui precisamente porque não combinava de maneira alguma com as altas fachadas repugnantes que se erguiam nas proximidades, nem tampouco com as silhuetas das escoras, das chaminés e dos altos fornos que lhe serviam de pano de fundo. (...) Essas incompatibilidades me perturbavam, não apenas porque elas me apareciam como o denominador da paisagem, mas, sobretudo, porque eu enxergava nelas a imagem de meu próprio destino, de meu exílio aqui; e, naturalmente, tal projeção de minha história pessoal na objetividade de uma cidade inteira me proporcionava uma espécie de consolação; eu compreendia que não pertencia a esse lugar, como a ele não pertenciam o chorão e a casinha coberta de hera, como a ele não pertenciam as ruas curtas que levavam a lugar nenhum, ruas compostas de construções disparatadas; eu também não pertencia a esse lugar, outrora alegremente rural, agora com essas horrendas quadras de barracos baixos, e me dava conta de que era porque eu não pertencia a esse lugar que meu verdadeiro lugar era aqui, nessa consternadora metrópole de incompatibilidades, nessa cidade cujo abraço implacável envolvia tudo o que era estranho em si." p. 71-72

"É, agora eu via isso com clareza: a maioria das pessoas se entrega à miragem de uma dupla crença: acredita na perenidade da memória (dos homens, das coisas, dos atos, das nações) e na possibilidade de reparar (os atos, os erros, os pecados, as injustiças). Uma é tão falsa quanto a outra. A verdade se situa justamente no oposto: tudo será esquecido e nada será reparado. O papel da reparação (tanto pela vingança quanto pelo perdão) será representado pelo esquecimento. Ninguém ira reparar as injustiças cometidas, mas todas as injustiças serão esquecidas." p. 304

"'Se as montanhas fossem de papel,
se a água se transformasse em tinta
e as estrelas em escribas,
se todo o vasto mundo quisesse escrever,
ninguém chegaria ao fim
do testamento do meu amor'
cantava Jaroslav, sem desgrudar o violino do peito, e eu estava feliz com essas canções (na cabine de vidro das canções), em que a tristeza não é superficial, o riso não é um rito, o amor não é risível, o ódio não é tímido, em que as pessoas amam de corpo e alma (sim, Lucie, de corpo e alma), em que a felicidade as faz dançar e o desespero faz com que se atirem no Danúbio (...). Parecia-me que no interior dessas canções se encontrava minha saída, minha marca original, o lar que eu traíra, mas que era mais ainda meu lar (já que o lamento mais pungente vem do lar traído); mas eu compreendia ao mesmo tempo que esse lar não era deste mundo (mas que lar é esse, se não é desse mundo?), que tudo o que cantávamos era apenas uma lembrança, um monumento, a conversa imaginária daquilo que não existe mais, e sentia que o chão desse lar fugia dos meus pés e que eu escorregava, com a clarineta nos lábios, na profundeza dos anos, dos séculos, numa profundeza sem fundo (onde amor é amor e dor é dor), e pensava com espanto que meu único lar era justamente essa descida, essa queda, indagadora e ávida, e abandonava-me a ela e à volúpia de minha vertigem." p. 324-325

"Compreendi que me era impossível anular minha própria brincadeira, quando eu mesmo e toda minha vida estamos incluídos numa brincadeira muito maior (que me suplanta) e totalmente irrevogável". p. 298-299

KUNDERA, Milan. A brincadeira. São Paulo: Círculo do Livro, [1988].

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Orange Colored Sky


O que eu mais gostava em São Paulo? Os bares. A profusão deles, os azuleijos, o fato de serem quase todos iguais - porque não há nada pior do que entrar em um bar sem saber muito bem como ele funciona, se o garçom vem na mesa, se você pede no balcão, que horário tem comida, etc. Sendo todos iguais não tinha erro, você sempre estava em casa em qualquer um.

O que não gostava? Principalmente de fatores ligados a locomoção. Os motoristas que não dão seta nunca, o trânsito dos pedrestres vagarosos no centro, a impossibilidade de se ir a pé a muitos lugares - o que eu geralmente ignorava. Mas na boa, nada tão sério.

Bom, valeu a todo mundo. Vocês me ajudaram a construir nesses sete anos uma vida, no mínimo, mais eclética do que eu poderia imaginar quando cheguei aqui. E foi foda pra caralho.
Boa sorte pra todos vocês.
Ah, e dêem notícias, seus putos.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Revolução Francesa


OS OLHOS DOS POBRES

Quer saber por que a odeio hoje? Sem dúvida lhe será menos fácil compreendê-lo do que a mim explicá-lo; pois acho que você é o mais belo exemplo da impermeabilidade feminina que se possa encontrar. Tínhamos passado juntos um longo dia, que a mim me pareceu curto. Tínhamos nos prometido que todos os nossos pensamentos seriam comuns, que nossas almas, daqui por diante, seriam uma só; sonho que nada tem de original, no fim das contas, salvo o fato de que, se os homens o sonharam, nenhum o realizou. De noite, um pouco cansada, você quis se sentar num café novo na esquina de um bulevar novo, todo sujo ainda de entulho e já mostrando gloriosamente seus esplendores inacabados. O café resplandecia. O próprio gás disseminava ali todo o ardor de uma estréia e iluminava com todas as suas forças as paredes ofuscantes de brancura, as superfícies faiscantes dos espelhos, os ouros das madeiras e cornijas, os pajens de caras rechonchudas puxados por coleiras de cães, as damas rindo para o falcão em suas mãos, as ninfas e deusas portando frutos na cabeça, os patês e a caça, as Hebes e os Ganimedes estendendo a pequena ânfora de bavarezas, o obelisco bicolor dos sorvetes matizados; toda a história e toda a mitologia a serviço da comilança. Plantado diante de nós, na calçada, um bravo homem dos seus quarenta anos, de rosto cansado, barba grisalha, trazia pela mão um menino e no outro braço um pequeno ser ainda muito frágil para andar. Ele desempenhava o ofício de empregada e levava as crianças para tomarem o ar da tarde. Todos em farrapos. Estes três rostos eram extraordinariamente sérios e os seis olhos contemplavam fixamente o novo café com idêntica admiração, mas diversamente nuançada pela idade. Os olhos do pai diziam: "Como é bonito! Como é bonito! Parece que todo o ouro do pobre mundo veio parar nessas paredes." Os olhos do menino: "Como é bonito, como é bonito, mas é uma casa onde só entra gente que não é como nós." Quanto aos olhos do menor, estavam fascinados demais para exprimir outra coisa que não uma alegria estúpida e profunda. Dizem os cancionistas que o prazer torna a alma boa e amolece o coração. Não somente essa família de olhos me enternecia, mas ainda me sentia um tanto envergonhado de nossas garrafas e copos, maiores que nossa sede. Voltei os olhos para os seus, querido amor, para ler neles meu pensamento; mergulhava em seus olhos tão belos e tão estranhamente doces, nos seus olhos verdes habitados pelo Capricho e inspirados pela Lua, quando você me disse: "Essa gente é insuportável, com seus olhos abertos como portas de cocheira! Não poderia pedir ao maître para os tirar daqui?" Como é difícil nos entendermos, querido anjo, e o quanto o pensamento é incomunicável, mesmo entre pessoas que se amam!

(Nesse frio, só Baudelaire)

domingo, 27 de janeiro de 2008

O punhal




Numa gaveta há um punhal.

Foi forjado em Toledo, em fins do século passado; Luis Melián Lafinur deu-o a meu pai, que o trouxe do Uruguai; Evaristo Carriego teve-o uma vez na mão.
Os que o vêem tem de brincar um pouco com ele; percebe-se que há muito o buscavam; a mão se apressa em apertar o punho que a espera; a lâmina obediente e poderosa folga com precisão na bainha.

O punhal outra coisa quer.

É mais que uma estrutura feita de metais. Os homens o pensaram e o formaram para um fim muito preciso; é, de algum modo, eterno, o punhal que na noite passada matou um homem em Tacuarembó, e os punhais que mataram César. Quer matar, quer derramar brusco sangue.

Numa gaveta da secretária, entre borradores e cartas, interminavelmente sonha o punhal seu singelo sonho de tigre, e a mão se anima quando o dirige porque o metal se anima, o metal que em cada contato pressente o homicida para quem os homens o criaram.

Às vezes, dá-me pena. Tanta dureza, tanta fé, tanta impassível ou inocente soberba, e os anos passam, inúteis.


(Jorge Luís Borges).

sexta-feira, 13 de abril de 2007

O Jogo da Amarelinha - Cap. 7



Toco a sua boca, com um dedo toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a sua boca se entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e desenha no seu rosto, e que por um acaso que não procuro compreender coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que a minha mão desenha em você.

Você me olha, de perto me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de cíclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõem-se, e os cíclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do seu cabelo, enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água.

(Júlio Cortazar. O jogo da Amarelinha)

quarta-feira, 4 de abril de 2007

Buenos Aires: um domingo antigo



Buenos Aires, 03 de setembro de 2006

Não há nada como saborear a derrota do inimigo estando próximo a ele. Quando se vence em meio aos seus pares, todos são tomados por uma fraternidade, que nos traz a acomodação fácil de quem não pode ser mais atingido. O confronto acaba e você está seguro. Quando se está em meio ao inimigo, e é o vencedor há, sobretudo, um desejo secreto de anunciar aos quatro cantos uma suposta supremacia. Contenta-se, entretanto, com uma silenciosa admiração da dor alheia, e uma discreta contenção de explosão em cada trunfo. Apesar disso, me parece uma alegria mais equilibrada, e, ao mesmo tempo, extremamente sádica. Brasil 3, Argentina 0. O churrasco e a Quilmes descendo lentamente pela garganta dos que dividiam o restaurante conosco, enquanto resmungavam e movimentavam os braços. Alguns iam embora, outros chegavam. O que não mudava era a feição de velório ao olharem para os números mágicos no canto da tela. E nós dois ali, falando o bom português sem nenhum pudor, tomando docemente quilmes com fogazzas e sorrisos. 

Depois disso a cidade se calou, e tomada por uma nostalgia (talvez dos tempos em que tinham Maradona) foi toda para a feira de antiguidades de San Telmo. Havia muita coisa, mas confesso que nao me prendi a quase nada. Só me chamaram a atenção alguns casacos. Havia neles qualquer coisa de rústico com o toque nostálgico de Buenos Aires. Não, não caberia na mala, melhor sair logo daqui. Minhas pretensões, afinal, eram outras naquele domingo de sol. As ladeiras, com seus paralelepídos - cravados há 100 anos por homens que vieram do norte, e chegaram pelo que hoje é o Puerto Madeiro - , ajudavam consideravelmente a amenizar a temperatura. As barracas, a quantidade de pessoas, a subida. Quase me sentia incomodado. Mas de fato tudo isso não passava de desculpa. A verdade é que depois de tomar uma Quilmes, tudo que eu queria era tomar outra. E rumamos em busca de um lugar qualquer. Encontramos, por sorte, um bar vazio e agradável. Apoiavam os cotovelos no balcão dois senhores de idade um pouco avançada, bastante corteses. Serviram-nos sanduiches e algumas cervejas. Era um lugar escuro, numa esquina da Avenida Independência. Talvez pela quantidade de pessoas de alta idade, pela decoração, não sei ao certo, mas algo de antigo pairava no ar que respirávamos naquele ambiente, o que me fez imaginar que neste domingo não poderia fugir do saudosismo e das antiguidades. Entretanto não havia o sol, e sim as Quilmes.

Domingo, em qualquer lugar do planeta, é o dia sagrado do futebol, e apesar do providencial clássico da manhã, ainda havia Estudiantes contra alguém e River contra outro alguém. O bar logo se encheu para assistir os jogos. A atmosfera era tão simpática que nem mesmo as crianças me incomodavam. Cheguei até a achar um ou outro engraçado. Perdi levemente a noção de que a Quilmes tem um litro, e tomei aproximadamente o número de garrafas que tomaria se ela fosse do tamanho das cervejas que estou acostumado. Então, entre um copo vazio e um cheio, descobri o segredo daquele bar. Ali as horas passavam mais rápido. O tempo fluía por uma fenda própria no tempo, e nos levava com ele. Os assuntos, os gestos, os copos, certeiros e voadores, como uma bala. Tudo escorregava com agilidade entre as mesas apertadas e a meia luz. Aquela calma era justamente isso: o referencial da velocidade, a rápida leveza contra o peso que tanto dificultava a caminhada do mundo. Tão rápido que quando estava prestes a pedir talvez minha nona Quilmes, vimos o senhor levantando as cadeiras e limpando o chão. O pior, ainda era cedo. Cedo no meu relógio, e no tempo dos mortais, ali dentro já era tarde, embora eu quisesse permanecer naquela mesa por talvez uma parte da eternidade.

Talvez pela grande quantidade de cerveja, não me lembro de mais nada desta noite.