A leitura da obra de Gonzalo Unamuno traduzida ao português — tradução de Mauricio Tambonie e publicada no Brasil pela PontoEdita — foi uma experiência de avessos e extremos em uma viagem literária complexa e muito pesada.
As duas obras trazem o mesmo personagem, Germán Baraja, em um intervalo de cinco anos entre ambos, nos quais os personagens tem aproximadamente entre 34 e 39 anos. Li primeiramente “Lila” (o original é de 2018), e depois “Para acabar com tudo” (de 2015), ou seja, ao contrário. No fim, essa inversão acabou se revelando interessante, sobretudo quando percebi que os capítulos de “Para acabar com tudo” são compostos de trás para frente, em três dias da semana: domingo, sábado e sexta. Desta forma, a leitura foi como se eu acompanhase todo o fio temporal do personagem, Germán Baraja, sempre do fim para o começo. Além disso, o personagem, que se revela muito mais em “Lila”, mas se constrói em “Para acabar com tudo”, resulta de uma sequência de reflexões que, no primeiro livro, podem nos levar ao engano, por uma narrativa mais sinuosa e com possíveis relativismos. Ao ter lido inicialmente o segundo, o antídoto contra essa sinuosidade, que pode pegar os distraídos de calça curta, está tomado. Vamos a eles.
“Lila” começa com a perturbadora cena de um feminicídio narrado pelo assassino, com tons de crueldade e uma estranha mescla de satisfação e desencanto. É chocante e quase faz qualquer pessoa abandonar o livro. Uma das cenas literária mais pesadas que já li na vida. Mas, aí vem o primeiro paradoxo: a narrativa é totalmente envolvente. Como se observássemos um lago límpido e transparente, que revela seu solo cheio de lodo e esgoto. Esse fluxo de primeira pessoa, tão honesto e direto, nos faz querer saber mais sobre o personagem, enquanto o repugnamos, nos faz querer entender ou encontrar um sentido naquele absurdo da violência sem limites de um ponto de vista tão pessoal. Um ponto de vista que, quando tratado tão de perto, costumeiramente é pelo lado da vítima. Mas, porquê não também ler outro lado? É justificável, mesmo que para odiá-lo e ter ainda mais motivos para extirpá-lo. Seguindo a narrativa, após cometer o crime o narrador/protagonista nos revela o motivo de ter cometido feminicídio: porque ele podia. Ao longo da história ele faz questão de demonstrar, por diversas vezes, o quanto qualquer coisa que Lila fizesse, como tentar se mostrar superior a ele, ou ciumenta, enfim, qualquer coisa, era Nada diante da possibilidade que ele tinha de acabar fisicamente com ela. Nem mesmo parentes homens poderiam defendê-la, pois ela sempre estaria sozinha em algum momento. Esse é, de certa forma, o paradoxo colocado pelo feminismo, ao cunhar a máxima, que tanto incomoda alguns homens, de que todos nós somos violentadores em potencial. Unamuno demonstra isso por meio de Baraja, que a mata e a estupra depois de morta, porque “pode”. E, “podendo”, ele leva a cabo um desejo surgido ainda na infância, quando passou a odiar as mulheres em um episódio infantil banal, quando se sentiu humilhado por duas meninas.
Talvez possam existir dois tipos de leitores, especialmente homens, para esse livro. Aquele que se convencionou chamar de red pill, muito provavelmente talvez até tenha uma tendência inicial a se identificar com Baraja. Mas, o autor é cruel com esses. Se lhes admiram a “macheza”, vão se deparar com impotência (em todos os sentidos) e uma sexualidade não tão convicta diante de outros homens mais poderosos. Destrói-lhes, portanto, as certezas. O outro tipo, a maioria, quero crer, é o leitor que pensa o quão miserável somos. Aquele que, como homem, se deprime por pensar que todos nós temos um pouco de Baraja pois fomos criados nesse mundo que nos ensina o mesmo que ensinou a ele, e isso nos faz ter convicção não de querermos ser nem sombra do que ele é. E não apenas ele, mas também outros personagens homens que o livro traz, com algumas cenas chocantes, incluindo pedofilia. Voltando aos leitores, em ambos os casos, o livro provoca, o tempo todo, um drama ético. Baraja é uma espécie de arquétipo às avessas, com o qual todos se identificam em algum ponto, e isso é o assustador. Ao mesmo tempo, ainda que centrado em Baraja, a obra não é só sobre o indivíduo, mas também é sobre a sociedade que gesta e cria esse tipo de indivíduo. Como dito, ele é o assassino que mata apenas por ter a capacidade e poder para tal. E é justamente a dissecação dessa estrutura de poder — que confere a um indivíduo doentio e problemático essa possibilidade — o pulo do gato da obra. Acredito que um livro que consiga causar uma inquietude tão reflexiva, para o bem ou para o mal, não passa em branco, não tem como não ser elogiado e considerado essencial nessa sociedade em que vivemos.
Já em “Para acabar com tudo”, Baraja é um ex-militante desiludido (isso descobriremos depois), quebrado, que vive um fim de semana de trás para frente, o que reflete sua vida do avesso. Aqui está a gênese do assassino feminicida, que desaguará em “Lila”. O combo é conhecido, um homem frustrado, que acha que o mundo lhe deve, que lhe castra, que corta suas asas e impede o desenvolvimento de toda sua suposta potencialidade, condenando-o a uma miséria que é ao mesmo tempo existencial e material. O pior, neste caso, é que ele estava aparentemente no caminho certo para entender isso na juventude, militante de uma organização política de esquerda na Argentina (peronista). Porém, a corrupção lhe causa a desilusão e ele deixa de lado a prática e também a teoria, passando a viver sua amargura em um apartamento velho e mofado, enfurnado e protelando seu trabalho de redator, para o qual até tem certo talento. É isso, e não é pouco. Um livro sobre decadência, auto-destruição, tédio: nada mais natural à geração adulta contemporânea, especialmente na Argentina, consumida por crises econômicas e políticas sucessivas, em que todas as vezes que parece prestes a se reerguer, corta-se novamente a corda do resgate e o país acorda novamente no fundo do poço, ainda mais machucado pela nova queda. Outro ponto muito interessante no livro é sua relação de Baraja com sua irmã e a não-relação com a mãe. Ainda que não queira soltar spoillers, me parece possível dizer que sua irmã é a única mulher pela qual ele demonstra algum afeto e respeito. Isso, provavelmente, pelo fato de que uma relação entre irmãos é um pouco mais horizontalizada do que outras nesta dicotomia homem-mulher, como de mães e filhos (por isso ele a evita até o fim), e em um relacionamento, como veremos depois com Lila.
Do ponto de vista do diálogo e contexto literário, as duas obras de Unamuno me pareceram familiares em um outro tempo e com um resultado distinto. Ele retoma uma tradição literária latinoamericana de personagens cínicos, que apareceu de forma muito acentuada, pelo que me recordo, sobretudo até a década de 80. Lembra, por exemplo, Onetti, com diversas figuras masculinas que perpassam essa vertente, e Roberto Arlt, como em “Noche Terrible”. Também não há como não lembrar de Sábado, em “O túnel”. No Brasil, também tivemos vários de Rubem Fonseca. Essa tradição literária, que parecia um pouco esquecida desde o começo dos anos 2000, toma uma outra vertente em Unamuno: o canalha, cruel, debochado, não é mais um anti-herói, nem arquétipo do antissistema. Ao invés de construir a personalidade de seu personagem, como nos autores citados anteriormente, ele a destrói. Ou, poderíamos dizer de forma mais precisa, constrói pela destruição, pela própria miséria humana desse homem degenerado. Se em algum momento alguém se ilude pelo personagem, aquele motivo desmorona logo em seguida. Se acha outro motivo, ele cai por terra rapidamente. Essa é a graça, esse é o jogo: um personagem que desperta nosso ódio violento e crescente.
A Argentina tem uma geração de escritoras que tem trazido ao mundo obras muito relevantes sobre a violência, notadamente de gênero e de Estado, com metáforas e alegorias, explorando linguagens e gêneros (literários) de forma muito particular e rica, como Mariana Enríquez, Samanta Schweblin, Camila Sosa Villada, e muitas outras (várias que ainda preciso ler, como Dolores Reyes e Selva Almada). Acredito que Unamuno complemente esse panorama pelo lado inverso. Pelo inverso, mas não do avesso. Me parece que o autor encontrou uma das melhores formas de tomar lado nessa arte que bebe na concretude da vida, talvez a única possível a um homem nessa equação da violência de gênero: mostrar a podridão por dentro.
Recomendo muito, ao mesmo tempo em que não sei se teria coragem de recomendar para quase ninguém. Mas, sim, leiam.
(resenha publicada originalmente em: https://medium.com/@fabiofariasbtl/algumas-impress%C3%B5es-sobre-a-obra-de-gonzalo-unamuno-em-portugu%C3%AAs-bb9bb8bdff44)