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sexta-feira, 5 de julho de 2013

Resenha: João Cabral de Melo Neto - Auto do Frade

O poema dramático de João Cabral de Melo Neto sobre Frei Caneca relata o último dia do carmelita condenado à morte por sua atuação republicana, mais especificamente como um dos líderes da Confederação do Equador. Apesar do forte conteúdo histórico-político a narrativa é totalmente centrada na ação, na reconstrução dos momentos percorridos por Caneca da prisão até a execução da sentença. Como é um auto, a poesia se desenvolve como estrutura teatral, cada personagem em seu espaço narrativo. Destacam-se então a voz do povo, as vozes oficiais, e a do próprio frei. A mistura de todas as impressões, — geralmente opostasm já que a maioria nas ruas estava ao lado do condenado e a voz oficial, inquisitiva e protocolar, aliados ao lirismo lúcido e contestador de Caneca mesmo à beira da morte — constroem um quadro belo e doloroso daquela tarde que enquanto acontecia já parecia destinada à história.

A interpretação dos atos mais simbólicos geralmente se dá pelos comentários dos populares, que enchiam as ruas do Recife. Como na cena da excomunhão em um ritual público onde lhe vestem a batina e depois a arrancam, para assim entregar à justiça um homem comum, e não um padre.

“ —  Quando tiravam alguma coisa,

vinham o incenso e a água benta.

— Não era o frade a quem benziam,

estavam benzendo era a prenda.

 — Queriam limpá-la do frade

e do diabo, se estava prenha.

— Queriam lavá-de tudo,

do frade, do diabo e suas lêndeas.”

Mais raras são as reflexões do próprio frei, porém oferecem uma perspectiva intimista, um ponto de vista pessoal de quem se notava pelo pensamento público:

“O raso Fora-de-Portas

de minha infância menina,

onde o mar era redondo,

verde-azul, e se fundia

com um céu também redondo

de igual luz e geometria!

Girando sobre mim mesmo,

girava em redor a vista

pelo imenso meio círculo

de Guararapes a Olinda.

Eu era um ponto qualquer

numa planície sem medida,

em que as coisas recortadas

pareciam mais precisas,

mais lavadas, mais dispostas

segundo clara justiça.

Era tão clara a planície,

tão justas as coisas via,

que uma cidade solar

pensei que construiria.”

O povo está nas ruas, e está ao lado do frei. Paira no ar uma consternação indignada, ao mesmo tempo em que há uma esperança de que chegue a qualquer momento, por água ou por terra, um indulto do imperador. Esperanças que vão morrendo aos poucos conforme passam as horas, ou quando se convencem que o imperador sequer sabe onde fica Pernambuco. O burburinho das ruas, que se avoluma cada vez mais enquanto o seguem como em uma procissão, incomoda muito os oficiais, como se prestes a haver uma revolta para libertá-lo. Ao chegarem à forca as ordens são de que o executem logo, mas com que carrasco? Todos se recusam a matá-lo, pois rondava na cidade a lenda de que a Virgem Maria foi vista sobrevoando a cidade e pedindo que não lhe enforcassem o afilhado. Nem mesmo outros condenados à morte, para os quais é oferecido indulto em troca de realizar o serviço sujo, aceitam. Sentado ao pé da forca Caneca espera. Sem sucesso os oficiais são obrigados a chamar um pelotão de fuzilamento para cumprir a pena. Este é um fato muito simbólico. O frei foi condenado como um criminoso comum, por isso seria enforcado. A tentativa de desmoralizá-lo ruiu ao terem de recorrer ao fuzilamento. Morrer fuzilado era quase uma honra militar, uma redenção, um ato heróico. Fuzilá-lo era como ratificar sua posição de mártir.

Por fim morre Caneca, com doze tiros. A cena da morte é narrada através de seu pai, que está em um bairro onde não pode ver, apenas ouvir o que acontece no Forte. Ao som dos tiros da tropa ele volta para o quarto onde passou dias rezando e acendendo velas a todos os santos. Apaga todas, joga as flores no lixo, recolhe os santos e os joga ao mar.

Ainda sobre o pai, foi por ele que Joaquim do Amor Divino Rabelo se tornou Caneca.

“ — Por que o chamam sempre Caneca

se se chama mesmo é Rabelo?

— Frei Caneca é o filho maior

de um certo Rabelo tanoeiro;

ao pai, por sua profissão,

chama-o Caneca o povo inteiro.

E o filho quando se ordenou

quis levar a alcunha do velho.

— Por que não deixou para um lado

esse apelido de Caneca?

Ser do Amor Divino era pouco

para dignificar quem ele era?

— Não quis esconder que seu pai

um simples operário era,

nem mentir parecendo vir

das grandes famílias da terra.”

Um personagem histórico vivido por um personagem literário. Uma reinterpretação, uma reconstrução pela poesia como se fosse a ciência da linguagem, típica de João Cabral.

O poeta escolhe o lado e recria esta faceta rígida e lírica, totalizante ao mesmo tempo que se baseia em vozes soltas. Uma espécie de monumento de representação dos vencidos, este é o admirável paradoxo.