terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Resenha: Água viva


Ganhei este livro no fim de 2010, em um amigo secreto. Clarice Lispector era uma das minhas grandes lacunas literárias, que ainda são muitas. Só conhecia alguns contos dela que saíram naquelas coletâneas escolares, e não havia lido nenhum romance. Conhecia um pouco dela pelo livro de cartas com o Fernando Sabino, "cartas perto do coração", e algumas entrevistas. E comecei quase por um anti-romance. Um livro sem linearidade, sem cronologia, sem capítulos. Eu adoro essas estruturas caóticas, desde que não sejam incompreensíveis, que possuam ao menos alguma ordem possível de se construir por trás de tudo, senão vira arte pela arte. Aqui a narrativa é muito espontânea, muito livre. E na verdade todo ele gira em torno disto, já que praticamente não há história, apenas um longo relato, uma carta da protagonista, uma pintora, para um homem que não se define bem quem é. 


"Sei o que estou fazendo aqui: estou improvisando. Mas que mal tem isto? improviso como no jazz improvisam música, jazz em fúria, improviso diante da platéia" p. 21.



"Isto não é história porque não conheço história assim, mas só sei ir dizendo e fazendo: é história de instantes que fogem como os trilhos fugitivos que se vêem da janela dos trens". p. 67



Me parece que ela tenta fazer a narrativa seguir a mesma lógica das reflexões que constrói. Parece óbvio, mas não é. É preciso ajustar o ritmo da escrito ao ritmo dos pensamentos, usando metáforas e histórias mais selvagens ou mais calmas, sincronizando sempre forma e conteúdo. Usando as metáforas não apenas como exemplos ilustrativos, mas em uma sucessão caótica, desordenada, e vai construindo pictoricamente - como uma pintora faria em uma tela - o momento, um estado psicológico quase "primitivo", atrás de sensações perdidas, ou não entendidas. 



"Estremeço de prazer por entre a novidade de usar palavras que formam intenso matagal. Luto por conquistar mais profundamente a minha liberdade de sensações e pensamentos, sem nenhum sentido utilitário: sou sozinha, eu e minha liberdade. (...) Esta minha capacidade de viver o que é redondo e amplo - cerco-me de plantas carnívoras e animais legendários, tudo banhado pela tosca e esquerda luz de um sexo místico. Vou adiante de modo intuitivo e sem procurar uma idéia: sou orgânica. E não me indago sobre os meus motivos. Mergulho na quase dor de uma intensa alegria - e para me enfeitar nascem entre os meus cabelos folhas e ramagens" p. 22.



Enfim, é um romance da espontaneidade, sem ensaio, algo como um desabafo organizado. Outra técnica interessante que ela usa às vezes é que os sentidos vão se ligando, o fim de uma frase traz um conceito que dá início a outra frase, parágrafo, tema, como em um jogo. Por exemplo: 

"O excesso de mim chega a doer e quando estou excessiva tenho que dar de mim como o leite que se não fluir rebenta o seio. Livro-me da pressão e volto ao tamanho natural. A elasticidade exata. Elasticidade de uma pantera macia. 
Uma pantera negra enjaulada. Uma vez olhei bem nos olhos de uma pantera e ela me olhou bem nos meus olhos. Trasmutamo-nos. Aquele medo."p. 73. E assim vai. 



Por não ter uma "história" clara, definida, parece que o livro poderia continuar sendo escrito e lido para sempre, sem ter um fim. Ela mesma deixa isso claro: 



"O que te escrevo é um 'isto'. Não vai parar: continua". p. 87



Além de tudo - me foquei basicamente nos aspectos narrativos - as reflexões dela-personagem são ótimas, vale bastante a leitura.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Resenha: Junta-Cadáveres


O uruguaio Juan Carlos Onetti parece estar sendo descoberto apenas agora no Brasil, inclusive por mim, em edições muito bem-feitas pela Planeta. Como destacado no prefácio, ele sempre seguiu uma tendência um pouco diferenciada da maioria dos autores latino-americanos, distanciando-se do realismo fantástico e do regionalismo, o que talvez explique um pouco o fato. Sobre as edições citadas destaco as capas de "Junta-Cadáveres" e "O Estaleiro", e o prefácio de Francisco Dantas, importantíssimo para introduzir e dimensionar a obra do uruguaio.

A estrutura da narrativa de Onetti é muito bem construída e inovadora. Em "O Estaleiro" quem conta a história é uma espécie de "voz coletiva", que narra e julga as atitudes de Larsen e dos outros personagens. Não se escondem intenções e preferências, e essa parcialidade explícita leva a voz narrativa a ser julgadora e julgada, bem como o personagem, em todos os seus atos. Em "Junta-Cadáveres" o narrador é Jorge Malabaia, garoto de dezesseis anos que vive em Santa Maria, cidade fictícia onde são ambientados todos os romances do autor, dividida em uma cruzada moral contra a instalação de um prostíbulo na cidade. O foco porém não é único, as passagens vão de primeira a terceira pessoa de acordo com o capítulo, e algumas vezes a introdução de uma primeira pessoa introspectiva em cada personagem transforma a narrativa em uma grande teia, cobrindo todas as possibilidades de se enxergar aquela sociedade, e as pessoas, por fora e por dentro.

De toda forma o que mais me atraiu na narrativa de Onetti foi o seu modo peculiar de descrição. É muito comum percebermos e entendermos uma cena apenas pelos gestos de seus personagens, o corpo refletindo pensamentos, sensações, através de movimentos, como na parte a seguir, onde Jorge caminha pela noite depois de se encontrar com Julita, confuso e insatisfeito com poemas que escreveu:

"Empurro o portão e pego a estrada; mas não tenho realmente vontade de ir, de repetir hoje a comédia noturna com o velho Lanza. Vou indo com as mãos nos bolsos da capa de chuva, cuidando para que os ombros fiquem soltos, abandonados, tentando fazer com que os braços não participem do esforço da marcha, evitando às vezes com trabalho e alarme os buracos cheios de água, pisoteando-os outras vezes com raiva. O nariz aberto para tentar descobrir a origem (a forma da árvore, o monte de lixo, da cova ou esconderijo sombrio) de cada cheiro de fim de verão que a noite úmida apodrece e adocica; a cabeça erguida naquele ângulo que indica o desespero e a vontade de assimilá-lo, aquele ângulo exagerado, viril e doloroso que determina a queda da boca e das pálpebras. Vou indo - a passos largos pelo caminho que sobe e desce e que parece virar continuamente para a direita, em espiral - porque tenho muita vontade de fazer a outra coisa; subir para comer e inclinar-me, mastigando, consciente do brilho da gordura nos lábios, sobre a estupidez desolada dos quatro versos sem destino, que não deviam ter-se formado, de cuja inútil introdução no mundo sou responsável e que não posso tirar da memória" (p. 75)

Jorge, o narrador, é um jovem que vive na cidade e observa os acontecimentos: a criação e a luta contra o prostíbulo de Junta-Cadáveres. Enquanto isso vive encontros proibidos com Julita, viúva de seu irmão, que enlouqueceu e parece confundir o irmão morto com o vivo. Por influências familiares acaba sendo levado a participar da queda da casa da orla, como é chamado o lugar onde vivem Junta e as três mulheres. Marcos, irmão de Julita, e o padre Bergner, tio de Marcos, são os maiores inimigos da casa de prostituição, além das estudantes e quase todas as mulheres da cidade. Do outro lado temos Larsen, o Junta-Cadáveres, e o médico Díaz Grey. Larsen é um homem visto por toda a sociedade como de moral questionável, um aventureiro, que sempre sonhou em montar o prostíbulo perfeito, mas conseguiu recrutar apenas três prostitutas de idade avançada. Díaz Grey é um médico velho e decadente, que do alto dos anos passados em uma cidade pequena e sem saída, olha para o passado, para as pessoas que ajudou a nascer, com certo desgosto, amargo pelo que se tornou, e esperançoso no que poderia ter sido, como no trecho a seguir, em que se imagina vivendo outra vida:

"Em vez do perfume dos jasmins amarelos e pisoteados, daquele que o vento traz do rio, daquele que flutuará sempre, imóvel, na sombra da minha escada, um cheiro composto e respirado no meio da tarde num café, numa cidade populosa que nunca vi. O mais Díaz Grey dos Díaz Grey está sentado numa mesa, sozinho, sem esperar ninguém. Não é um café familiar, não muito luxuoso nem muito pobre, tem janelas que dão para uma avenida larga e mal-lavada.

Díaz Grey fuma, com o corpo em abandono, um pouco suado, fresco e cálido por essa leve umidade das caminhadas nos finais de primavera; apóia o cigarro na borda de uma xícara para soltar a cinza. Alguém varre e esparrama serragem atrás do balcão; deixaram abertos os mictórios e um cheiro de sexo e amoníaco, de caracóis mortos esfrega-se contra o piso, contra o cheiro de serragem molhada. Da janela chega o cheiro de nafta da rua e o de jornais recém-impressos; há também um perfume de mulher, intenso, suave, com uma intenção que não consegue se concretizar.

Sem dúvida, nada disso tem sentido nem importância; de qualquer modo, vou subindo com cautela a escada em sombras com uma tênue inveja do suposto Díaz Grey, com os olhos fechados e o nariz inquieto, tentando reunir e respirar os diferentes cheiros que formam o cheiro que lhe convém" (p. 127)

Enfim, um livro para ser lido por diversos motivos, o antagonismo social e moral, as certezas que se tornam perigosas e munição para guerra, o radicalismo de idéias, a vida dissecada de uma sociedade fechada, a variação de personalidades do público para o privado, e principalmente, a meu ver, as descrições e construções narrativas, únicas.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Resenha: homem comum


Em matéria de descobertas literárias o ano de 2010 tem sido esplêndido. Li neste ano alguns dos melhores livros de minha vida, e quatro em especial são de autores que até então eu não havia lido nada: Ernesto Sábato (O Túnel), Cormac McCarthy (Todos os belos cavalos), Juan Carlos Onetti (O Estaleiro), e Philip Roth, com "homem comum", livro sobre o qual escrevi abaixo algumas impressões.

"Homem comum" é um livro completamente arrasador. Daqueles que te fazem parar quase de página em página e pensar na própria vida. Não que te ensine algo, mas pela forma familiar de construir lembranças. A história começa no enterro do protagonista e termina com sua morte. Philip Roth se debruça sobre o que há de mais triste e inevitável na existência humana. O livro não é nada além disso: morte, pessoas unidas à espera da morte, decadência, espera, arrependimento. Aliás, a única parte viva deste romance, a única em que os personagens criam, vivem intensamente, e não se preocupam com o amanhã, é narrado em forma de memórias, portanto terreno fértil para arrependimentos e crises.

Roth constrói de maneira muito fluida e natural sua narrativa, e às vezes nem parece que trata de um tema tão áspero. Ao mesmo tempo em que segue uma prosa simplificada e sintética ele intercala considerações reflexivas fortes, porém, em nenhum momento, pedantes (como "Para quem provou a vida, a morte não parece nem sequer natural"). Consegue reunir as melhores reflexões de uma escrita clássica em uma narrativa contemporânea e passível de ser lida por qualquer um, misturado a uma dose de realismo.

Outro traço marcante é a relação com os pais. A variação de momentos mais fortes do livro é entre a velhice terminal do protagonista e a morte de seus pais. É interessante como ele constrói essa mudança de paradigma, primeiro:  "o que será deles", e depois, num amargo amadurecimento, "o que será de mim". Uma das coisas que mais me agradou foi justamente a perfeita descrição da decadência do corpo e da carne como justificativa para a decadência psicológica do ser humano.

Tenho a impressão de que este romance/novela é exatamente o que penso de arquétipo de um romance moderno (não no sentido de modernismo, mas de contemporaneidade).

Um trecho para exemplificar a leve narrativa do pesado tema da obra. Neste momento ele visita o túmulo dos pais:

"Eram apenas ossos, ossos dentro de uma caixa, mas os ossos deles eram dele, e ele aproximou-se dos ossos o máximo que pôde, como se a proximidade pudesse estabelecer um vínculo com eles e atenuar o isolamento causado pela perda do futuro e religá-lo a tudo o que havia ido embora. Durante uma hora e meia, aqueles ossos foram a coisa mais importante no mundo. Eram tudo o que importava, a despeito do ambiente de decadência daquele cemitério abandonado. Na presença daqueles ossos, ele não conseguia se afastar deles, não conseguia não falar com eles, não conseguia fazer outra coisa senão ouvir o que eles diziam. Entre ele e aqueles ossos muita coisa aconteceu, muitos mais do que agora entre ele e os que tinham carne em torno de seus ossos. A carne vai embora, porém os ossos permanecem. Os ossos eram o único consolo que restava para alguém que não acredita na vida após a morte e sabia, sem nenhuma dúvida, que deus era uma ficcão, e que aquela vida era a única que ele teria". (p. 123-124)

E um segundo trecho, onde ele pensa sobre como fora o suicídio de uma de suas amigas de velhice, Millicent Kramer. Espero não ser muito longo:

"Quando acordou, no meio da noite, acendeu todas as luzes, bebeu um copo d'água, escancarou uma janela e ficou andando de um lado para o outro para recuperar o equilíbrio, porém, por mais que tentasse pensar em outra coisa, só conseguia formular uma única pergunta: como fora seu suicídio? Num impulso, engolindo todas as pílulas antes que mudasse de idéia? E, depois que as engolira, teria gritado que não queria morrer, que só não queria continuar sofrendo aquela dor paralisante (...) teria gritado que só queria que Gerald estivesse ali para ajudá-la e lhe dizer para aguentar firme, para lhe garantir que ela conseguiria suportar e que estavam juntos para enfrentar tudo? (...) Ou teria agido com frieza, convencida, por fim, de que estava fazendo a coisa certa? Teria agido sem pressa, segurando o frasco com as duas mãos, pensativa, antes de esvaziá-lo na palma de uma das mãos e engolir os comprimidos um por um com seu último copo d'água, a última água de sua vida? (...) talvez sorrindo enquanto chorava e relembrava todos os prazeres, tudo o que a entusiasmava e agradara, evocando centenas de momentos comuns que não lhe pareceram importantes quando ela os vivera, mas que agora era como se tivessem existido com a intenção específica de inundar sua vida de uma felicidade cotidiana? Ou teria perdido o interesse nas coisas que estava deixando para trás? Teria ficado sem medo, pensando apenas: finalmente a dor passou, a dor finalmente foi embora, agora é só dormir e ir embora desta coisa extraordinária? (p. 118-119)

terça-feira, 12 de janeiro de 2010




"Grandes são os desertos e tudo é deserto,

Salvo erro, naturalmente.
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!"

(Álvaro de Campos)

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Day is done



When the day is done
Down to earth then sinks the sun
Along with everything that was lost and won
When the day is done.

When the day is done
Hope so much your race will be all run
Then you find you jumped the gun
Have to go back where you began
When the day is done.

When the night is cold
Some get by but some get old
Just to show life's not made of gold
When the night is cold.

When the bird has flown
Got no-one to call your own
Got no place to call your home
When the bird has flown.

When the game's been fought
You speed the ball across the court
Lost much sooner than you would have thought
Now the game's been fought.

When the party's through
Seems so very sad for you
Didn't do the things you meant to do
Now there's no time to start anew
Now the party's through.

When the day is done
Down to earth then sinks the sun
Along with everything that was lost and won
When the day is done.

(Nick Drake - Day is done. Album: Five Leaves Left)

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

A Brincadeira


Quatro trechos do livro "A brincadeira", de Milan Kundera. Todas as partes são de capítulos do personagem Ludvik.

Independente dos trechos descritos, que soltos não dizem nada da história, o mote do livro me lembrou um pouco "A piada mortal", do Batman. A teoria de que um dia ruim pode mudar toda a vida de um homem. (Aliás, o segundo lembrou o primeiro, já que este fora escrito mais de vinte anos antes). E quando muita gente fala a mesma coisa, pode ser que seja verdade. Mesmo que o Batman não concorde.



"Tomei um velho bonde de bitola estreita que percorria um caminho cheio de curvas, caminho esse que ligava entre si os distantes bairros de Ostrava, e deixei-me levar ao sabor do vento. (...) Toda essa periferia interminável de Ostrava, em que se misturaram estranhamente as fábricas e a natureza, os campos e os depósitos de lixo, os bosques de árvore e os entulhos, grandes prédios e casinhas campestres, me atraía e me perturbava de maneira extraodinária; tendo deixado definitivamente o bonde, comecei um longo caminho a pé: contemplava, quase com paixão, a estranha paisagem e esforçava-me por decifrar-lhe o sentido; procurava o nome daquilo que confere unidade e ordem a esse quadro tão disparatado; passando perto de uma casa idílica coberta de hera, percebi que ela estava em seu verdadeiro lugar aqui precisamente porque não combinava de maneira alguma com as altas fachadas repugnantes que se erguiam nas proximidades, nem tampouco com as silhuetas das escoras, das chaminés e dos altos fornos que lhe serviam de pano de fundo. (...) Essas incompatibilidades me perturbavam, não apenas porque elas me apareciam como o denominador da paisagem, mas, sobretudo, porque eu enxergava nelas a imagem de meu próprio destino, de meu exílio aqui; e, naturalmente, tal projeção de minha história pessoal na objetividade de uma cidade inteira me proporcionava uma espécie de consolação; eu compreendia que não pertencia a esse lugar, como a ele não pertenciam o chorão e a casinha coberta de hera, como a ele não pertenciam as ruas curtas que levavam a lugar nenhum, ruas compostas de construções disparatadas; eu também não pertencia a esse lugar, outrora alegremente rural, agora com essas horrendas quadras de barracos baixos, e me dava conta de que era porque eu não pertencia a esse lugar que meu verdadeiro lugar era aqui, nessa consternadora metrópole de incompatibilidades, nessa cidade cujo abraço implacável envolvia tudo o que era estranho em si." p. 71-72

"É, agora eu via isso com clareza: a maioria das pessoas se entrega à miragem de uma dupla crença: acredita na perenidade da memória (dos homens, das coisas, dos atos, das nações) e na possibilidade de reparar (os atos, os erros, os pecados, as injustiças). Uma é tão falsa quanto a outra. A verdade se situa justamente no oposto: tudo será esquecido e nada será reparado. O papel da reparação (tanto pela vingança quanto pelo perdão) será representado pelo esquecimento. Ninguém ira reparar as injustiças cometidas, mas todas as injustiças serão esquecidas." p. 304

"'Se as montanhas fossem de papel,
se a água se transformasse em tinta
e as estrelas em escribas,
se todo o vasto mundo quisesse escrever,
ninguém chegaria ao fim
do testamento do meu amor'
cantava Jaroslav, sem desgrudar o violino do peito, e eu estava feliz com essas canções (na cabine de vidro das canções), em que a tristeza não é superficial, o riso não é um rito, o amor não é risível, o ódio não é tímido, em que as pessoas amam de corpo e alma (sim, Lucie, de corpo e alma), em que a felicidade as faz dançar e o desespero faz com que se atirem no Danúbio (...). Parecia-me que no interior dessas canções se encontrava minha saída, minha marca original, o lar que eu traíra, mas que era mais ainda meu lar (já que o lamento mais pungente vem do lar traído); mas eu compreendia ao mesmo tempo que esse lar não era deste mundo (mas que lar é esse, se não é desse mundo?), que tudo o que cantávamos era apenas uma lembrança, um monumento, a conversa imaginária daquilo que não existe mais, e sentia que o chão desse lar fugia dos meus pés e que eu escorregava, com a clarineta nos lábios, na profundeza dos anos, dos séculos, numa profundeza sem fundo (onde amor é amor e dor é dor), e pensava com espanto que meu único lar era justamente essa descida, essa queda, indagadora e ávida, e abandonava-me a ela e à volúpia de minha vertigem." p. 324-325

"Compreendi que me era impossível anular minha própria brincadeira, quando eu mesmo e toda minha vida estamos incluídos numa brincadeira muito maior (que me suplanta) e totalmente irrevogável". p. 298-299

KUNDERA, Milan. A brincadeira. São Paulo: Círculo do Livro, [1988].

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Orange Colored Sky


O que eu mais gostava em São Paulo? Os bares. A profusão deles, os azuleijos, o fato de serem quase todos iguais - porque não há nada pior do que entrar em um bar sem saber muito bem como ele funciona, se o garçom vem na mesa, se você pede no balcão, que horário tem comida, etc. Sendo todos iguais não tinha erro, você sempre estava em casa em qualquer um.

O que não gostava? Principalmente de fatores ligados a locomoção. Os motoristas que não dão seta nunca, o trânsito dos pedrestres vagarosos no centro, a impossibilidade de se ir a pé a muitos lugares - o que eu geralmente ignorava. Mas na boa, nada tão sério.

Bom, valeu a todo mundo. Vocês me ajudaram a construir nesses sete anos uma vida, no mínimo, mais eclética do que eu poderia imaginar quando cheguei aqui. E foi foda pra caralho.
Boa sorte pra todos vocês.
Ah, e dêem notícias, seus putos.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Revolução Francesa


OS OLHOS DOS POBRES

Quer saber por que a odeio hoje? Sem dúvida lhe será menos fácil compreendê-lo do que a mim explicá-lo; pois acho que você é o mais belo exemplo da impermeabilidade feminina que se possa encontrar. Tínhamos passado juntos um longo dia, que a mim me pareceu curto. Tínhamos nos prometido que todos os nossos pensamentos seriam comuns, que nossas almas, daqui por diante, seriam uma só; sonho que nada tem de original, no fim das contas, salvo o fato de que, se os homens o sonharam, nenhum o realizou. De noite, um pouco cansada, você quis se sentar num café novo na esquina de um bulevar novo, todo sujo ainda de entulho e já mostrando gloriosamente seus esplendores inacabados. O café resplandecia. O próprio gás disseminava ali todo o ardor de uma estréia e iluminava com todas as suas forças as paredes ofuscantes de brancura, as superfícies faiscantes dos espelhos, os ouros das madeiras e cornijas, os pajens de caras rechonchudas puxados por coleiras de cães, as damas rindo para o falcão em suas mãos, as ninfas e deusas portando frutos na cabeça, os patês e a caça, as Hebes e os Ganimedes estendendo a pequena ânfora de bavarezas, o obelisco bicolor dos sorvetes matizados; toda a história e toda a mitologia a serviço da comilança. Plantado diante de nós, na calçada, um bravo homem dos seus quarenta anos, de rosto cansado, barba grisalha, trazia pela mão um menino e no outro braço um pequeno ser ainda muito frágil para andar. Ele desempenhava o ofício de empregada e levava as crianças para tomarem o ar da tarde. Todos em farrapos. Estes três rostos eram extraordinariamente sérios e os seis olhos contemplavam fixamente o novo café com idêntica admiração, mas diversamente nuançada pela idade. Os olhos do pai diziam: "Como é bonito! Como é bonito! Parece que todo o ouro do pobre mundo veio parar nessas paredes." Os olhos do menino: "Como é bonito, como é bonito, mas é uma casa onde só entra gente que não é como nós." Quanto aos olhos do menor, estavam fascinados demais para exprimir outra coisa que não uma alegria estúpida e profunda. Dizem os cancionistas que o prazer torna a alma boa e amolece o coração. Não somente essa família de olhos me enternecia, mas ainda me sentia um tanto envergonhado de nossas garrafas e copos, maiores que nossa sede. Voltei os olhos para os seus, querido amor, para ler neles meu pensamento; mergulhava em seus olhos tão belos e tão estranhamente doces, nos seus olhos verdes habitados pelo Capricho e inspirados pela Lua, quando você me disse: "Essa gente é insuportável, com seus olhos abertos como portas de cocheira! Não poderia pedir ao maître para os tirar daqui?" Como é difícil nos entendermos, querido anjo, e o quanto o pensamento é incomunicável, mesmo entre pessoas que se amam!

(Nesse frio, só Baudelaire)

domingo, 27 de janeiro de 2008

O punhal




Numa gaveta há um punhal.

Foi forjado em Toledo, em fins do século passado; Luis Melián Lafinur deu-o a meu pai, que o trouxe do Uruguai; Evaristo Carriego teve-o uma vez na mão.
Os que o vêem tem de brincar um pouco com ele; percebe-se que há muito o buscavam; a mão se apressa em apertar o punho que a espera; a lâmina obediente e poderosa folga com precisão na bainha.

O punhal outra coisa quer.

É mais que uma estrutura feita de metais. Os homens o pensaram e o formaram para um fim muito preciso; é, de algum modo, eterno, o punhal que na noite passada matou um homem em Tacuarembó, e os punhais que mataram César. Quer matar, quer derramar brusco sangue.

Numa gaveta da secretária, entre borradores e cartas, interminavelmente sonha o punhal seu singelo sonho de tigre, e a mão se anima quando o dirige porque o metal se anima, o metal que em cada contato pressente o homicida para quem os homens o criaram.

Às vezes, dá-me pena. Tanta dureza, tanta fé, tanta impassível ou inocente soberba, e os anos passam, inúteis.


(Jorge Luís Borges).

sexta-feira, 13 de abril de 2007

O Jogo da Amarelinha - Cap. 7



Toco a sua boca, com um dedo toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a sua boca se entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e desenha no seu rosto, e que por um acaso que não procuro compreender coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que a minha mão desenha em você.

Você me olha, de perto me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de cíclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõem-se, e os cíclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do seu cabelo, enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água.

(Júlio Cortazar. O jogo da Amarelinha)

quarta-feira, 4 de abril de 2007

Buenos Aires: um domingo antigo



Buenos Aires, 03 de setembro de 2006

Não há nada como saborear a derrota do inimigo estando próximo a ele. Quando se vence em meio aos seus pares, todos são tomados por uma fraternidade, que nos traz a acomodação fácil de quem não pode ser mais atingido. O confronto acaba e você está seguro. Quando se está em meio ao inimigo, e é o vencedor há, sobretudo, um desejo secreto de anunciar aos quatro cantos uma suposta supremacia. Contenta-se, entretanto, com uma silenciosa admiração da dor alheia, e uma discreta contenção de explosão em cada trunfo. Apesar disso, me parece uma alegria mais equilibrada, e, ao mesmo tempo, extremamente sádica. Brasil 3, Argentina 0. O churrasco e a Quilmes descendo lentamente pela garganta dos que dividiam o restaurante conosco, enquanto resmungavam e movimentavam os braços. Alguns iam embora, outros chegavam. O que não mudava era a feição de velório ao olharem para os números mágicos no canto da tela. E nós dois ali, falando o bom português sem nenhum pudor, tomando docemente quilmes com fogazzas e sorrisos. 

Depois disso a cidade se calou, e tomada por uma nostalgia (talvez dos tempos em que tinham Maradona) foi toda para a feira de antiguidades de San Telmo. Havia muita coisa, mas confesso que nao me prendi a quase nada. Só me chamaram a atenção alguns casacos. Havia neles qualquer coisa de rústico com o toque nostálgico de Buenos Aires. Não, não caberia na mala, melhor sair logo daqui. Minhas pretensões, afinal, eram outras naquele domingo de sol. As ladeiras, com seus paralelepídos - cravados há 100 anos por homens que vieram do norte, e chegaram pelo que hoje é o Puerto Madeiro - , ajudavam consideravelmente a amenizar a temperatura. As barracas, a quantidade de pessoas, a subida. Quase me sentia incomodado. Mas de fato tudo isso não passava de desculpa. A verdade é que depois de tomar uma Quilmes, tudo que eu queria era tomar outra. E rumamos em busca de um lugar qualquer. Encontramos, por sorte, um bar vazio e agradável. Apoiavam os cotovelos no balcão dois senhores de idade um pouco avançada, bastante corteses. Serviram-nos sanduiches e algumas cervejas. Era um lugar escuro, numa esquina da Avenida Independência. Talvez pela quantidade de pessoas de alta idade, pela decoração, não sei ao certo, mas algo de antigo pairava no ar que respirávamos naquele ambiente, o que me fez imaginar que neste domingo não poderia fugir do saudosismo e das antiguidades. Entretanto não havia o sol, e sim as Quilmes.

Domingo, em qualquer lugar do planeta, é o dia sagrado do futebol, e apesar do providencial clássico da manhã, ainda havia Estudiantes contra alguém e River contra outro alguém. O bar logo se encheu para assistir os jogos. A atmosfera era tão simpática que nem mesmo as crianças me incomodavam. Cheguei até a achar um ou outro engraçado. Perdi levemente a noção de que a Quilmes tem um litro, e tomei aproximadamente o número de garrafas que tomaria se ela fosse do tamanho das cervejas que estou acostumado. Então, entre um copo vazio e um cheio, descobri o segredo daquele bar. Ali as horas passavam mais rápido. O tempo fluía por uma fenda própria no tempo, e nos levava com ele. Os assuntos, os gestos, os copos, certeiros e voadores, como uma bala. Tudo escorregava com agilidade entre as mesas apertadas e a meia luz. Aquela calma era justamente isso: o referencial da velocidade, a rápida leveza contra o peso que tanto dificultava a caminhada do mundo. Tão rápido que quando estava prestes a pedir talvez minha nona Quilmes, vimos o senhor levantando as cadeiras e limpando o chão. O pior, ainda era cedo. Cedo no meu relógio, e no tempo dos mortais, ali dentro já era tarde, embora eu quisesse permanecer naquela mesa por talvez uma parte da eternidade.

Talvez pela grande quantidade de cerveja, não me lembro de mais nada desta noite.

sábado, 31 de março de 2007

Buenos Aires: jazz portenho


Buenos Aires, 02 de setembro de 2006

Uma leve diferença arquitetônica, toques pitorescos de antiguidade. Cafés que mesmo ao sol do meio dia pareciam escuros e sombrios. O vento frio que balançava o cachecol, peça que nunca havia usado. Um ambiente propício para cigarros tão fortes e fumados incessantemente. A fumaça no rosto, o calor no céu da boca. Talvez eu pudesse me perder, e não conseguir me fazer entender. Talvez chegasse a algum lugar de onde não saísse, tomado por uma força magnética. Talvez odiasse tudo, ou ficasse entediado. Essa era a sensação ao me aproximar de cada esquina no primeiro passeio a pé por esta cidade. Embora no fundo eu soubesse o máximo e o mínimo que poderia encontrar. Me entregava ao que estivesse entre isto. Em geral, as simples calçadas e esquinas de um sábado frio. Era o que eu precisava.

Existem aproximadamente cinco pessoas que eu traria a Buenos Aires. Ao menos uma estava comigo. E dividir a experiência de chegar à Praça de Maio era necessário. Subia daquela praça, como de uma ilha avistada ao longe, um cheiro de esperança, misturado com uma sensação de sofrimento. As placas, as pixações, abraçavam-nos ao mesmo tempo que nos olhavam com os olhos transtornados de ódio. Uma sedução arriscada. Como uma vontade quase incontrolável de se jogar de uma ponte, um sorriso macabro perante a idéia da morte rápida e inesperada. Pombas, mendingos, bancos. Uma praça cravada no sul da América do Sul, me trazendo memórias que não vivi. Relembrando fatos que não conheço. Tensionando meus músculos ao ponto de me fazer aqui, nesta praça, numa vigília incessante. Depor quem for contra meus irmãos, quem quiser tomar minha terra. Senti-me parte de algo que sabia não ser. Repugnavam-me os turistas tirando fotos, os grupos de pessoas sorrindo e falando português ou ingles. Incitava-me uma força interna e violenta a algum atentado. A Casa Rosada, exibindo seus guardas emplumados e estáticos. Sentei-me. Olhei com indiferença para os imponentes prédios ao redor. Vi bandeiras tremulando, e senti o orgulho de quem trabalhava ou vivia com janelas virada para ali. Senti-me então traído por nacionalismos que não existem em mim. Monumentalizaram a pátria. Juntaram num mesmo saco todas as bandeiras, todos os interesses, todas as angústias, e disseram "esta é Argentina". O país parecia de fato estar acima de todos. Ou melhor, o país era todos. A maneira de falar o espanhol. As propagandas tão hipócritas quanto as do resto do mundo (a una amiga nunca se deja sola - cigarrillos philip morris).
Levantamo-nos e pegamos o metrô. Havia o silêncio, e o apito do guarda. O silêncio, reprimido. As portas então, fecham-se. O silêncio, o apito do guarda, as portas fechadas. Rumamos para Palermo Viejo.

Espaço. É tudo que posso dizer sobre esse bairro. Também tem verde, zoologico, praças, mas tudo se insere de maneira quase milimétrica na exatidão dos grandes espaços. Os grandes espaços onde é impossível se perder, mas é muito fácil errar. Erramos, não era a Palermo Viejo que tinhamos que ter vindo. A rua que procuramos fica no centro. Impressionou-me como os argentinos (selecionados) de Palermo pareciam sentir-se bem nessa imensidão vasta de Argentina. Eram simpáticos e prestativos. Os cavalos enfeitados que levavam crianças também felizes a um passeio por 25 pesos. Tudo aqui sorria. Vamos ao centro.

Centros são, quase sempre, efusivos e radiantes. Fábricas de extâse coletivo, materializados pelas luzes e vitrines aglutinadas, atiradas ferozmente em retinas sem aviso. Corpos andando num ritmo como o dos peixes, milhares, sem se tocar. Todos olhando aos pontos fixos, e o mundo se diminui, ou aumenta. Entramos nessa, já que o centro de Buenos Aires não fugia à regra. Eu querendo toda a coleção dos livros de Cortazar (baratíssimos), e minha amiga selecionando um ou outro filme nos cartazes (e querendo os livros do Cortazar). A rua Corrientes, um mar de água doce e quente. Infelizmente um pequeno contratempo nos aconteceu, e precisamos deixá-la. Desfrutamos dos serviços públicos, e para amenizar, fomos a um bar onde acontecia um show de jazz. À noite em San Telmo, todos os bares sao pardos. O unico critério para entrar ou não seria cara ou coroa. Por mais que andássemos, víamos sempre os mesmos rostos, nas mesmas mesas, etc. Esse etc. tornava a simples busca um enorme cansaço. Até que a sorte nos trouxe o jazz, e uma pizza de mussarela.

segunda-feira, 26 de março de 2007

Buenos Aires: a chegada




Buenos Aires, 02 de setembro de 2006

Chegar até aqui nao foi nada fácil. Nao me refiro unicamente às 33h preso na condução. Não. Apesar da distância e da demora, havia sempre a janela, e algo novo. Paisagens, nada excepcional, mas em todo caso, paisagens que ainda não havia visto, possibilidades de surpresa a cada quilômetro rodado. Esse instinto de curiosidade sempre me repele qualquer sensação de tédio ou de insegurança. Refiro-me, mais que tudo, ao longo caminho entre a vontade de estar em Buenos Aires e de fato estar em Buenos Aires. Muitos de meus planos apenas nascem e morrem, nunca crescem ou frutificam. Este não. Circunstancias foram me levando a cada vez mais quere-lo, e mesmo quando não pensava necessariamente nesta cidade, ela se encaixava perfeitamente ao desejo de uma fuga planejada.

Lembro-me de uns três anos atrás, quando Fernando, Gil, e eu, programamos ir a Buenos Aires. A vontade maior era estar com meus amigos, mas Buenos Aires me pareceu, além de tudo, um destino agradável e pitoresco para este feito. Não fomos, mas a vontade não morreu. A literatura ajudou: primeiro Borges, e depois Horácio Oliveira, quando Bons Ares se tornou quase obrigação. A conversa no porto, os arredores caóticos. Eu sentia que de alguma forma tinha de viver aquilo. E, mais recentemente, dissertando numa tediosa noite de domingo, rascunhei em algum canto: "eu ando precisando mudar de ares, de música nova, de uma língua nova.", e juro que nesse dia nao pensava nessa viagem específica. Como eu disse, Buenos Aires era a fuga perfeita.

Bom, como cheguei agora a pouco, posso falar apenas de minhas primeiras impressões. Viadutos... chegamos por uma parte da cidade com muitos viadutos. Apesar de achá-los belas construções, me incomodam, principalmente quando estou a pé. Me deixam um pouco perdido... mas logo passamos por eles, e a primeira claridade do dia apareceu. Veio a melhor parte: as árvores secas por causa do inverno.. todas, sem folhas, sem vida. Tudo opaco, acinzentando as fachadas dos prédios, os cachecóis, o rosto dos que acordam cedo, um cinza que não era triste, era apenas sóbrio. Esse cinza, que de vez em quando também acontece no Brasil, sempre me afugenta instantaneamente a felicidade e a tristeza. Sentimentos que talvez não sejam tão ajustados a minha personalidade.

Quando desci do ônibus o vento era cortante e implacável, e a minha primeira lembrança foi a Loveless. Sim, acho uma boa relação: corte, frio, sobriedade. Se você é muito emocional, nao controla uma Loveless.. se é muito racional, calcula melhor a temperatura da chegada e se precave. Mas era um frio que me dizia: vá em frente, isso não é um obstaculo, é um presente meu para você, que tanto quis me conhecer.

Agora vou deixar minhas bagagens no quarto, tomar banho, e ver o que mais essa mítica cidade me preparará.


"Son para el solitario una promesa
porque millares de almas singulares las pueblan
únicas ante Dios y en el tiempo
sin duda preciosas.
Hacia el Oeste, el Norte y el Sur
se han desplegado – y son también la patria – las calles" (Borges, Las calles)

sexta-feira, 23 de março de 2007

Nocautes Históricos: Marciano x Louis


Alguns nocautes são lembrados por serem plasticamente intocáveis. Outros, por terem acontecido em lutas envoltas por diversos fatores que as tornam especiais. O nocaute de Rocky Marciano em Joe Louis tem isso tudo em doses cavalares. A primeira frase que me ocorre ao lembrar dele é: "o fim de uma era inicia outra". Alguma coisa como se o sol, ao morrer, gerasse uma outra estrela, tão poderosa quanto. Se Joe Louis, com a carreira que teve, precisava ter se exposto a isso, é a pergunta que não cala. Lutar boxe deve ser difícil. Dedicar seu tempo e sua vida a isso. Deixar de lutar boxe é ainda pior. Joe Louis tentou parar. Ezzrard teria sido o último, mas o boxe tem lá suas nuances. Se Louis vencesse, a sua carreira, tão gloriosa, seria encerrada do modo mais nobre que qualquer pugilista poderia sonhar. Acho que, mesmo tendo perdido, não foi desonroso. Louis passou o bastão, e o fez em cima do ringue. Sucumbiu de um modo e tanto... Sim, foi um nocaute fortíssimo e que talvez Louis não merecesse. É um pouco confuso associar aquele garoto rápido como uma bala e preciso como nunca havia se visto até então, ao homem perturbado de alguns anos depois dessa luta. E ver Louis caindo fora do ringue... Não, Louis não merecia um nocaute desse. Mas Marciano merecia conseguir esse nocaute. O rapaz mostrava naquele momento o surgimento de um dos socos mais poderosos do boxe. Marciano nunca perdeu uma luta, e nocateou quase todos que o enfrentaram. Joe Louis foi não só a catapulta física para essa carreira irretocável, mas acredito que tenha sido a psicológica também. Não foi atoa que Marciano disse a Louis depois da luta "eu sou seu fã", e nunca escondeu a ninguém que Louis havia sido o grande inspirador de sua carreira. Porque se você nocauteia Louis, você pode nocautear qualquer um, como ele o fez. Imagino a cabeça do jovem Marciano ao ter em seu campo de visão, num determinado segundo, Joe Louis em queda livre e o seu braço esticado, ainda tocando o rosto do ídolo.