segunda-feira, 6 de outubro de 2025

“Estações do conhecimento”, de Justino Alves Lima

 




O novo livro de Justino Alves Lima, “Estações do conhecimento”, fecha sua trilogia de obras ligadas às memórias e reflexões acerca da biblioteca enquanto ente político e social, em Sergipe e no Brasil. Justino foi o primeiro doutor em Ciência da Informação em Sergipe, tendo atuado profissionalmente na Biblioteca Central da UFS até 2013, quando se aposentou, e, durante décadas, na defesa das bibliotecas e da cultura enquanto agente transformadores, tendo tido atuação em diversos órgãos públicos, secretarias de governo, e privados (associações e sindicatos), além de suas inúmeras atividades de fomento ao cinema e à leitura.

“Estações do conhecimento” dialoga, de forma a concluir e expandir, seus dois livros anteriores, “Catedrais do silêncio” e “Aldeias da solidão”. Fechar uma trilogia é sempre uma situação complexa, situada no dilema de trazer novos elementos e amarrar os anteriores. E foi exatamente essa mescla que ele conseguiu realizar com êxito. Importante ressaltar que não é condição essencial para o entendimento deste livro ter lido os anteriores, mas, ajuda. Afirmo, sem receio, que com esta trilogia Justino passa a história da biblioteconomia e das bibliotecas em Sergipe a limpo em definitivo, o que não é pouco.

Tentando me ater, portanto, à obra como ente individual, para não fazer uma resenha tripla (uma vez que já publiquei uma resenha sobre “Aldeias da solidão”, neste link, e tive a honra de prefaciar “Catedrais do silêncio”), mas sem deixar de citar as demais, inicio com o fato de que me parece mais acertado dizer que este livro é mais sobre bibliotecas e menos sobre a biblioteconomia do que os anteriores, embora nas três obras tenhamos reflexões sobre ambas, sem contar a associação óbvia entre o ente e a área. Este texto abrange diretamente questões funcionais, como as consequências práticas da inoperância desta instituição em um país desigual e empobrecido, em que a miséria é um poderoso instrumento de manutenção de classes. É por isso que esse instrumento, biblioteca, é convenientemente esquecido e colocado no armário, saindo apenas em épocas eleitorais (e olhe lá!), devido a seu caráter transformador ou, no mínimo, criador de possibilidades.

Por meio de histórias pessoais, que ilustram de forma concreta uma realidade muito mais abrangente, o autor traz relatos sobre bibliotecas, ou salas de leitura, do interior e da capital sergipana, bem como questões administrativas. Traz, por exemplo, as idiossincrasias, burocracias e outras situações quando da criação de um sistema de bibliotecas mais amplo. Sua intenção não é teorizar sobre os princípios administrativos das bibliotecas no Estado ou na universidade, mas, de apontar as incoerências administrativas e políticas quando se tem um discurso de defesa da informação e do conhecimento que não se observa na prática, sobretudo no momento de aplicar recursos, humanos e financeiros, para implementar essas políticas culturais, como as de leitura e informação.

Justino retoma — pois o tema fora iniciado em “Catedrais do Silêncio” — o trajeto histórico e político da questão informacional como fator essencial para análise de seu desenvolvimento e de sua forma atual. Podemos inferir da leitura que há pelo menos três tipos comuns de bibliotecas, cada uma com particularidades de problemas: as que estão razoavelmente estáveis, com finalidades específicas, respaldadas por uma necessidade legal e subsidiadas por instituições robustas, como as universitárias, do judiciário, etc. Estas, por sua vez, sofrem uma dificuldade histórica na capacidade de estruturação e de sistematização, apesar de sua grandiosidade. Além disso, correm o risco de ficarem encasteladas, em uma solidão diferente, de “primo rico”, que não divide os brinquedos; aquelas que possuem um aparato estatal em relação à sua forma, mas que na prática estão esvaziadas, deixaram de ser interessantes, como as públicas, e nestas podemos verificar um escalonamento variável, mas que independente de seu tamanho, acervos e forma, igualmente abandonadas, de público e de recursos; e aquelas que não existem, mas mesmo assim são usadas como propaganda, como salas de leitura com amontoados de livros, sem profissionais e jogadas às traças.

Me atraem também os aspectos literários do texto, que deixam a obra com uma leitura muito agradável e leve, a despeito da complexidade e perplexidade que nos trazem o seu conteúdo e suas conclusões — ao mesmo tempo em que serve de estímulo à transformação. A comparação das áreas de classificação do conhecimento com estações é uma metáfora deliciosa, uma vez que cada classe teria a possibilidade de nos levar a um destino diferente, tão distante quanto todas as distâncias que compõem a humanidade e que foram representadas em acervos das bibliotecas. Ou seja, impedir o acesso às estações é como impedir o direito básico de ir e vir, e essa é a gravidade de não se ter acesso a um mundo informacional complexo.

Outro ponto central do livro é o traçado de uma história do pensamento intelectual da área no Brasil. Justino destaca três grandes marcos: Rubens Borba de Moraes, bibliotecário pioneiro tanto da profissionalização enquanto formação superior, bem como seu papel na Semana de Arte Moderna e na Divisão de Bibliotecas do Departamento de Cultura de São Paulo, modernizando e ampliando os aparelhos estatais bibliotecários, sendo por isso considerado o patrono da biblioteconomia brasileira; Mário de Andrade, que dispensa apresentações enquanto escritor e idealizador da Semana de Arte Moderna de 1922, abordado aqui pela sua atuação na criação do Departamento de Cultura do Município de São Paulo e precursor de um formato associado a um Sistema interligado de cultura e do que seriam, posteriormente, os centros culturais; e Luiz Milanesi, professor da USP, com grande atuação a partir da década de 1980 na modernização do pensamento sobre bibliotecas públicas, retomando conceitos da prática “andradiana”, expandido-os e adaptando a um mundo que vivia (e vive!) uma revolução tecnológica pujante, que leva ao esvaziamento das bibliotecas. Justino atribui, corretamente, um caráter revolucionário a essa nova forma de pensar a biblioteca, de forma democrática, trazendo a comunidade para pensar os rumos dos instrumentos de cultura, e da ampliação dos serviços para muito além da simples disponibilização de acervos. “Milanesi teoriza uma revolução no fazer das instituições participantes do Sistema de Bibliotecas Públicas do Estado. Era preciso um choque de ideias, como fizeram os modernistas nos anos 1920. Pensa em uma nova versão de biblioteca que incorpora as tendências de cultura e lazer somadas às já presentes, as da informação e da educação”. (Lima, 2025, p. 46) . É interessante notarmos que, apesar de escasso, porém denso, os marcos do pensamento “cultural-bibliotecário” sempre estiveram ligados à prática, demonstrando que não existe pensamento intelectual abstrato ou puramente “teórico” na biblioteconomia.

Como toda boa obra, ela dialoga, e não apenas prega. E, como em todo bom diálogo, há aprendizado e também discordâncias eventuais. Aqui, não foi diferente, embora essas discordâncias me pareçam importantes como forma de pensar e amadurecer uma proposta social, que deve ser sempre discutida e atualizada. Neste caso, uma das divergências que tive ao longo da trilogia, e especificamente nesta obra, é a definição de “incúria governamental” de uma forma que me pareceu um pouco generalizada. Ao classificar sem distinguir, há, no meu ponto de vista, uma espécie de revelação apocalíptica, como se não houvesse forma de governo, de organização, de regime, que resolva o problema da informação pública e da falta de leitura no Brasil, o que, para um cético, poderia soar como não haver mais o que ser feito. Lembremos que o Brasil carrega um sistema educacional público programaticamente construído para manter o abismo social entre ricos e pobres, trabalhadores e a elite econômica, e é portanto a política associada a esta última a culpada pela incúria. O próprio autor, a despeito do que indico, aponta isso, ao se referir à formação da classe política brasileira com termos como: “as entidades de Estado são criadas na esteira do caudilhismo” (Lima, 2025, p. 77); “Administradores patrimonialistas” (Lima, 2025, p. 78); “primeiro eles, a elite, depois a sociedade, o povo” (Lima, 2025, p. 78). Mas, acho que essa relação poderia ter sido construída mais enfaticamente para não parecer que é tudo igual. Porém, também sei que ele tem autoridade para dizer “o quê” e “como” diz, pois viveu na pele experiências com dois polos políticos que, no fim das contas, não foram assim tão diferentes nesse quesito, como descreve na obra.

Outra discussão que pode ser feita a partir de afirmações da obra é sobre a liberdade irrestrita de divulgação de formas de pensamento, defendida pelo autor. Discussão essa que não é nova, mas sempre muito profícua, sobre os limites (ou não) a determinados discursos que podem trazer, do meu ponto de vista, consequências perigosas ou até trágicas à sociedade, como discursos de ódio, ou ligados a terrorismo sanitário, como nos casos mais recentes sobre as vacinas. E, por último, nesse inventário de poucas e importantes divergências, sobre o papel das redes sociais no processo cultural mais amplo. Justino, a meu ver, é um pouco cético demais sobre o papel destas, como neste trecho: “a não-informação, presente nos lugares, faz falta enquanto instrumento de pertencimento. A informação que circula em redes sociais é discutível e descartável” (Lima, 2025, p. 73). Não está errado, apenas me parece ignorar um outro lado, do enorme potencial mobilizador e contra-hegemônico das redes, apenas para citar alguns dos que acho os principais e não me demorar muito.

O livro traz nos anexos algumas correspondências e discursos, algo muito interessante, que complementa e ilustra tanto este quanto trechos de “Catedrais do silêncio”. É um brinde ao leitor poder ver a luta solitária do autor, tão bem descrita em “Catedrais…”, materializada, por exemplo, em seu discurso na Assembleia Legislativa de Sergipe, em 1988, que refletia de forma muito consciente e engajada a efervescência daquele momento tão particular da política brasileira, pós-ditadura e durante a constituinte de 1988, quando o país se reconstruía. Por fim, a obra — as obras — talvez tenham até me deixado com um pouco de sentimento de culpa. Parece-nos difícil replicar sua missão, descrita já como “quixotesca” — o que neste caso diz mais sobre o meio do que sobre o indivíduo que luta pela transformação da realidade — , com tamanha ênfase, competência e seriedade. Mas, não podemos deixar de ter essa perspectiva no horizonte, para não cairmos em silêncio, solidão, nem perdermos o acesso às estações.

(resenha originalmente publicada em: https://medium.com/@fabiofariasbtl/estacoes-do-conhecimento-de-justino-alves-lima-1c0547fd98ab)

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