quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Resenha de "Aldeias da solidão", de Justino Alves Lima



Em seu novo livro, Aldeias da Solidão, publicado pela editora Criação, o bibliotecário e amigo Justino Alves Lima analisa o problema relativo à falta de políticas de informação e, consequentemente, de aparelhos informacionais, mais notadamente as bibliotecas, em comunidades periféricas do entorno do campus São Cristóvão da Universidade Federal de Sergipe, traçando um paralelo do contraste entre os “vizinhos”, e também com o desenvolvimento da interação e explosão informacional em âmbito global. Afinal, não há melhor forma de observar e analisar o todo do que pela nossa parte, especialmente no caso dele, que atuou por décadas na UFS. Como dizia Fernando Pessoa, na obra de Alberto Caeiro: “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”. Ainda que, no caso de Justino, não seja bem o caso de apontar as virtudes, mas de lutar para construí-las.

Após um hiato entre a publicação de Bibliotecas & bibliotecários: situações insólitas, em co-autoria com Oswaldo Francisco de Almeida, Justino publicou duas novas obras nos últimos dois anos. Aldeias da solidão sucede Catedrais do silêncio, publicado em 2023. É perceptível a coerência do autor na escolha dos títulos de suas obras recentes. O ponto em comum são os espaços que pressupõe algum tipo específico de sociabilidade, seguidos por adjuntos que os problematizam: da vivência pública e coletiva nas aldeias, que define uma comunidade enquanto grupo, ao tempo em que a diferencia de outras; à transcendental e privada, interiorizada nas catedrais. Em ambos os casos, estabelece-se uma relação comparativa com as bibliotecas públicas e suas comunidades usuárias, e por isso temos o contraponto, especialmente no que se refere à cultura, que deveria pressupor a socialização e a agitação, e não solidão e silêncio. Essa é uma tônica das obras, a contestação e a reflexão sobre questões normalmente estagnadas, que passam a figurar como letra morta, casos perdidos, e assim as aceitamos, como se a normalidade nos impusesse a derrota. Ele não aceita. Demonstra as falhas de um sistema viciado, tanto em termos de concepção de Estado, da questão pública, até a categoria profissional dos bibliotecários, compondo um mosaico complexo dessa estrutura que engloba cultura, leitura e informação.

Os pontos em comum não são por acaso, há uma relação entre as obras, embora não de forma direta, tampouco uma é continuação da outra. A ligação se dá na defesa das bibliotecas públicas como agentes de integração e desenvolvimento humanos, sobretudo para as classes populares, constantemente ignoradas no cada vez mais explícito projeto de manutenção de riquezas e privilégios para poucos, em detrimento da maioria que apenas sustenta com seu trabalho o abismo social. Nesse sentido, as obras também revelam o lento e cruel processo de, em um primeiro momento, elitização da informação e, em um segundo, de esvaziamento. Em Catedrais, o autor discute a ineficácia das políticas públicas que priorizam a arquitetura e o acervo, em detrimento da localização e adequação da estrutura ao público. Agora, em Aldeias, ele faz o caminho contrário: vai até as comunidades sem unidades informacionais para discutir suas necessidades informacionais que não são atendidas, sequer consideradas. 

Aldeias da solidão parte do ponto de vista da teoria das aldeias globais, do teórico da comunicação canadense, Marshall Mcluhan, para analisar comunidades periféricas no entorno do maior campus da UFS. A utilização da teoria, que pretende explicar categorias que atravessam o fenômeno da globalização, transformando hábitos e unificando a humanidade em certa medida, para o bem e para o mal, se contrapõe à falta de acesso às informações nas periferias brasileiras, que as deixam à margem dos processos históricos. Isto ocorre na mesma sociedade que dispõem de lugares hiper informacionais, os não-lugares, de Marc Augé, conceito apresentado por Justino na obra, onde o cidadão pode imergir em sua solidão de forma plena, pois está contemplado e abastecido por recursos informacionais necessários à sua completude, como em aeroportos e centros comerciais, opondo-se às comunidades citadas, onde a solidão coletiva se dá pela falta de acesso ao básico de informação cidadã. Assim, fica evidente que o bonde da história está, na contemporaneidade, mais para uma estação em que uns embarcam primeiro que outros, se é que alguns têm o direito de embarcar.

A era da informação, que se anunciava como uma alternativa democrática, por supostamente diminuir a distância entre usuário e informação, onde a socialização do conhecimento seria facilitada pela difusão tecnológica, acabou, ao manter a concentração de poder, sendo mais um motivo para a manutenção da era da desigualdade, que se estende em seu método desde os primórdios da modernidade. Mais uma vez, aquilo que deveria ser um bem essencial de melhoria da qualidade de vida, de consciência e identidade, torna-se um produto, valorizado apenas enquanto meio de consumo.

Ao demonstrar o que ocorreu no entorno da UFS, Justino nos faz enxergar esse panorama na prática. O autor esmiuçou o aspecto em diversas formas, demonstrando como a percepção de informação é colocada em via de mão única, por exemplo, sem alternativas práticas e institucionais por meio do Estado. Justino ressalta a atrofia do termo no imaginário social, quando informação, inclusive pela via legal, é fortemente associada apenas às mídias tradicionais de difusão, como rádio e a televisão, e ligadas ao jornalismo. Atualmente, podemos inclusive discutir como as redes sociais, que parecem alterar essa lógica, mantêm em essência os princípios da inclusão e exclusão social.

A cidadania está alienada de uma informação popular, cultural, alternativa, entre as descritas pelo autor como caminhos e possibilidades que perdemos ao longo das décadas, por culpa inclusive nossa, os profissionais da área, muitas vezes alheios aos desafios de seu campo, mas, sobretudo, à política institucional, incapaz de enxergar em formação cidadã uma alternativa viável para investimento (não apenas financeiro, mas também humano), como se vê descrito em Aldeias da solidão, ao diagnosticar a falta de estrutura e profissionais qualificados de informação nas comunidades analisadas.

Para alguns, ou para muitos, pode parecer um pouco fora de lugar discutir o investimento público em bibliotecas públicas na era da superinformação, em que qualquer um, e qualquer um mesmo, é bombardeado diariamente com um volume de informação maior do que pode dar conta, e em todos os níveis. De informações pessoais dos amigos, “seguidores” e influencers nas redes sociais até informação política, comunitária (infelizmente dominada apenas pela violência) e jornalística, agora filtradas de acordo com o crivo do algoritmo e de quem paga mais para impulsioná-las. Não que o modelo tradicional da imprensa também não tivesse seus problemas, mas havia muito o que melhorar, e não piorar. Aqui vem justamente um dos importantes tópicos abordados pelo livro, a informação tratada como monopólio dos meios de comunicação e redes sociais, além da distinção essencial entre a informação para entretenimento e a informação para exercer o direito à cidadania, voltada para ressignificar materialmente as condições de vida, especialmente aquelas comunitárias. Aí entram os fatores como mediação, acervos e estruturas.

Nesse sentido, Justino detectou que as comunidades às margens do desenvolvimento econômico se tornaram lugares de não informação. Sua conclusão nos ajuda a entender, por exemplo, o terreno fértil que se formou para as crescentes quadrilhas de falsas notícias, como as que proliferam atualmente a internet, geralmente movidas por interesses políticos específicos e com um exército de robôs por trás, para impulsionar e fazer seu conteúdo chegar ao maior público possível que, sem alternativas, consome muitas dessas como se fosse a única verdade possível.

Ainda sobre a prática cotidiana, que é a tônica do livro, embora muito ancorado na teoria, o que Justino nos demonstra, a partir da premissa inicial de oposição entre aldeias globais e não-lugares, é: uma universidade federal, local em que a informação não só circula, como também é produzida, cercada por uma formação urbana que não tem acesso mínimo à informação para a cidadania básica. Esse contraponto demonstra diversas questões, como a de que fatores geográficos, por si só, não são suficientes, e de que o abismo entre teoria e prática ainda é quase intransponível no modelo de sociedade em que vivemos. Cada vez mais isolados, como pessoas ou comunidades, distantes do que João Cabral de Melo Neto realizou no poema “Tecendo a manhã”, para que algo novo se crie: “Um galo sozinho não tece uma manhã: / ele precisará sempre de outros galos. / De um que apanhe esse grito que ele / e o lance a outro; [...] e de outros galos / que com muitos outros galos se cruzem / os fios de sol de seus gritos de galo, / para que a manhã, desde uma teia tênue, / se vá tecendo, entre todos os galos.”

Conhecido nos meios bibliotecários de todo o país, especialmente por sua atuação na representação da classe em Sergipe nas décadas de 1980 e 1990, bem como sua atuação ligada à área cultural nos anos 1990 e 2000, Justino mais uma vez nos brinda com uma obra densa que nos deixa reflexivos. É um pensador atrelado à prática. Que suas ações, como a escrita desse livro, nos levem de volta a uma possibilidade de futuro que um dia já foi imaginado, mas que soa cada vez mais distante.


quarta-feira, 2 de março de 2016

Resenha: Milton Hatoum - Dois Irmãos



"Dois irmãos" é a história dos gêmeos Omar e Yaqub, inimigos em um conflito constante que marca suas vidas e a de todos à sua volta. Porém não é apenas um livro sobre esta rivalidade, espécie de interpretação livre e contemporânea da história de Caim e Abel. Há de fato a intertextualidade com o relato bíblico: irmãos que recebem atenção diferenciada por parte da mãe desde o nascimento, tal como o deus que prefere Abel, deixando Caim enciumado e propenso à vingança. Neste paralelo Abel seria Omar, o filho preferido pela mãe, escolhido para ficar na casa quando começam os conflitos entre ambos na adolescência. Yaqub é Caim, o renegado, enviado para longe de casa como solução dos problemas, fechado para sempre em sua rejeição. Ao se tornarem adultos se mantém opostos, um escolhe a disciplina exagerada, o outro transforma a vida em uma festa onde todos pagam a conta. Mas Hatoum vai além, transformando lentamente os gêmeos, alternando qualidades e defeitos, distintos porém devastadores, nas personalidades que construiu completamente opostas, a ponto de não se reconhecerem em absolutamente nada além da aparência física que os une - esta também rompida por Omar ao deixar uma cicatriz no rosto de Yaqub. Assim como Caim, Yaqub se vinga, mas é Omar, tão ou mais responsável pela destruição da própria família, quem sofre a pena final de ser um fugitivo vagando sem rumo pelo mundo. Yaqub, apartado da casa e da vida que deveriam ter sido suas, refaz a vida distante, não sendo capaz de perdoar o irmão e atender o último pedido da mãe. Também Omar nunca pede perdão pelas vidas que destruiu.

Mas "Dois irmãos" não é apenas sobre estas vidas divididas que deixaram seu rastro de guerra sobre toda a família. É também um livro sobre imigrantes libaneses, Halim e Zana, pais dos gêmeos e de Rana. Sobre como chegaram e viveram, construindo do outro lado do mundo um pedaço da sua terra, ressignificando o mundo tropical com suas tradições, comendo peixe frito com Arak, mesclando o português com o árabe, se apegando a objetos que lembram o que ficou no Líbano, enfim, todas as pequenas e grandes coisas que não se localizam geograficamente senão pela ação dos deslocadas. Zana é a mãe superprotetora de Omar, que deixa a criação de Yaqub a cargo de Domingas, a índia que serve a família numa quase escravidão. A matriarca zela por três coisas em sua vida: sua casa, a memória do pai, e seu filho Omar. Sacrificará todo o resto para manter estas três coisas intocadas e próximas de si, mas acaba por abrir mão até das duas primeiras para satisfazer o filho. Halim é o pai que nunca quis ter filhos. Um imigrante simples que desejava ganhar apenas o suficiente para passar a vida em um amor erótico com a esposa, jogando e bebendo com os seus. Abriu um comércio onde recebia mais amigos que clientes, assim era feliz. Porém os filhos mudaram tudo, os gêmeos tiraram-lhe a paz com Zana, abalando para sempre o amor carnal que tanto os fazia feliz; Rana, a filha mais nova, acaba por tomar conta dos negócios do pai e transforma sua pequena venda de bugigangas em uma grande loja, saem os amigos e entram os clientes, uma apaixonada pelos negócios e astuta na arte de lucrar. Halim vai se retirando de cena na própria casa, virando um recluso na própria vida. Na loja fica apenas com uma salinha de onde olha a rua, lembrando e esquecendo de si, culpando os filhos pela vida que teve.

Domingas, inicialmente uma personagem secundária, vai crescendo na trama e se torna peça chave no enredo. É uma índia que ao se tornar órfã foi entregue a um orfanato católico, onde aprendeu a rezar e trabalhar. Seu sonho revoltado contra a instituição é o desejo de um novo destino, que acaba sendo a casa da família. Ali seu martírio continua, ainda sem liberdade, rezando e servindo dia e noite, acordando madrugadas seguidas para cuidar de Omar depois de suas bebedeiras. É também a mãe do narrador, Nael, filho de um estupro ou de um amor proibido tolerado em segredo na casa. Nael, o narrador, é outro caso à parte. Temos, em meio a tanta intensidade, uma narração que ao mesmo tempo pode observar tudo e ainda está imersa na história, tem seus próprios sentimentos e conclusões. Ele é um dos explorados, uma das vítimas da casa, e isso torna a narrativa ainda mais pessoal, repleta de inconformismo e dúvida.

Difícil ser conciso ao escrever sobre um livro com tantas reflexões possíveis, mas para terminar ressalto ainda dois pontos que circulam e constroem a história: Manaus, a cidade que ao longo da trama vai deixando de ser provinciana, simples e próxima, para se tornar uma metrópole capitalista, impessoal, com grandes obras, mudança no fluxo de trabalho, demolições, e esta é uma segunda perda para os imigrantes mais velhos, especialmente Halim, como se tivesse novamente se deslocado; o outro é o estabelecimento da ditadura militar na cidade, os saraus clandestinos, a prisão do professor de literatura, sua morte, a revolta e a impotência diante da opressão, o único aspecto capaz de aproximar alguns personagens.

Das muitas formas de se compreender o mundo através de uma história familiar, Hatoum criou uma das mais interessantes possíveis. 

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Resenha: William Faulkner - Luz em Agosto

                                            

Lena Grove é uma jovem que vai caminhando do Alabama ao Mississipi em busca de Lucas Burch. Solteira e grávida ela decide ir atrás do pai da criança para se casar antes do filho nascer. Burch a deixou prometendo avisar assim que se estabelecesse; nunca mais mandou notícias. Por quatro semanas ela segue a pé atrás de uma pista até ouvir dizer que havia um "Burch" trabalhando em uma serraria de Jefferson, Mississipi. Ao chegar até lá Lena encontra Byron Bunch e percebe que, provavelmente, houve uma confusão entre os nomes Bunch e Burch. Logo descobre, porém, que Lucas Burch está na cidade, mas agora usa o nome de Joe Brown. Naquele dia, no entanto, todas as atenções estão voltadas para um grande incêndio na casa de Joanna Burden, uma mulher solitária que é ignorada há décadas em Jefferson por ser descendente de uma família abolicionista que veio do norte

Byron Bunch é um homem pacato e com certa fobia social, trabalha incansavelmente e faz horas extras na serraria aos sábados. Nos domingos viaja 30 km para reger o coral de uma igreja. Seu único amigo é Gail Hightower, um pastor aposentado há décadas, expulso da igreja após o suicídio da mulher. Hightower vive sozinho e depois de anos de perseguições morais e físicas passou a ser quase um fantasma na cidade, mal saindo de casa. Ele chegou a Jefferson logo após o casamento, fez tudo para vir à cidade onde o avô morreu durante a guerra civil. Avô que lhe era quase uma obsessão: um soldado que morreu de forma prematura e estúpida (levou um tiro enquanto roubava galinhas). Mesmo depois dos escândalos pelos quais passou em Jefferson o ex-pastor não quis se mudar, continuou ali, resistindo, até ser esquecido e passar a ser apenas uma sobra do passado na cidade.

Joe Brown, ou Lucas Burch, a quem Lena procura, vive em uma cabana nos fundos da casa que fora incendiada. Vendia uísque contrabandeado em sociedade com o misterioso Joe christmas, o protagonista da história. A história de Christmas começa ainda no orfanato onde descobre que apesar de sua pele branca ele tem sangue negro (fato que não fica claro se verdadeiro ou não, mas é uma verdade que Christmas assume). Logo na infância começa a ser perseguido por uma professora que pensa ter sido descoberta por ele enquanto dormia com um funcionário, ela faz de tudo para que ele seja enviado para um orfanato de negros. Depois é adotado pelo fanático religioso McEachern e sua esposa, passando a infância e adolescência em uma fazenda com o aprendizado da dor e da punição. O ódio e o completo desprezo a qualquer tipo de compaixão, inclusive própria, são o resultado disso. Alguns dos momentos mais raivosos da juventude de Christmas são exatamente contra a mãe adotiva que tenta ser carinhosa e cúmplice dele. O que mais lhe assusta é a possibilidade de que ela o faça se comover. Christmas então se apaixona por uma prostituta que vive na cidade, e por causa dela acaba dando uma cadeirada na cabeça do pai adotivo e fugindo. Passa anos vivendo com negros em comunidades até que chega a Jefferson e conhece Joanna Burden. Ela é mais velha e eles têm um caso completamente doentio marcado por violência e mistérios de ambas as partes. No dia do incêndio em sua casa ela é assassinada, aparentemente por Christmas.

Seu assassinato não havia causado nenhuma comoção em Jefferson, principalmente por ser uma abolicionista (chamavam-na de Yankee). Tudo muda quando descobrem que Christmas, o principal suspeito, possui sangue negro, o que torna sua punição uma questão de honra para a cidade. Quem traz a informação até o xerife é Brown (ou Burch), que está interessado na recompensa. A esta altura Lena ainda não o viu, mas está sendo amparada por Byron Bunch, que se apaixonou por ela mas mesmo assim  prometeu levá-la até o pai da criança para se casarem.

A perseguição policial a Christmas o leva em fuga até a cidade de Mottstown, onde é preso. Lá vive um casal de idosos, os Hines, que são os verdadeiros avós de Christmas. A filha deles (mãe de Christmas) morreu no parto quando seu pai, Doc Hines, se recusou a procurar um médico, por ela ter engravidado de um artista de circo, morto por Doc, um mexicano que, segundo o dono do circo, tinha sangue negro. O neto é odiado pelo avô antes mesmo de nascer e a morte da filha lhe parece justa pelo pecado que cometeu. A avó tenta cuidar do neto, mas ele o leva para um orfanato onde passa a trabalhar como porteiro para vigiar a criança. Assim que ficam sabendo que o neto está preso, trinta anos depois, cada um tem uma atitude distinta. O avô passa a fazer discursos públicos pelo linchamento, a avó tenta de alguma forma salvá-lo. Os dois vão então até Jefferson, onde seria realizado o julgamento.

Christmas é levado a Jefferson, mas consegue fugir para a casa de Hightower. A esta altura o ex-reverendo já fez o parto de Lena Grove e ouviu os apelos da avó para que fosse o álibe de Joe Christmas. Já havia então em Jefferson uma espécie de milícia liderada por Percy Grimm, da Guarda Nacional, que seguia o caso com sede de morte caso o tribunal não condenasse à pena máxima o provável assassino. Quando Christmas foge Grimm tem sua chance e não a desperdiça. Ao entrar na casa, mesmo com os apelos de Hightower de que Joe era inocente, Grimm o mata e o castra, para ele "deixar as mulheres brancas em paz, mesmo no inferno".

Enquanto isso Byron Bunch consegue levar Lucas Burch até Lena, sem que ele soubesse do que se tratava. Ao entrar e ver a mulher com o filho nos braços ele dá um jeito de fugir novamente, desta vez pela janela. Byron havia decidido deixar a cidade, mas quando percebe que Lena está novamente sozinha ele volta. No último capítulo ambos conseguem uma carona de caminhão até o Tennesse. Byron pede continuamente a mão de Lena em casamento, mas como ela recusa continua a ajudá-la a encontrar Lucas Burch. Como se os dois fossem passar a vida juntos, viajando atrás de algo inalcançável e inútil.

Joe Christmas é uma mistura de herói e anti-herói. Tudo nele tem certo exagero, um personagem absurdo, como sua vida, como o racismo e o conservadorismo da sociedade americana da época. Ao mesmo tempo em que assume sua condição de negro ele se mantém racista: era natural odiar os negros, mesmo que você fosse um deles, como neste diálogo imaginário com a mãe adotiva: "Escute. Ele diz que criou um blasfemo e um ingrato. Eu a desafio a lhe dizer o que ele criou. Que ele criou um crioulo embaixo do próprio teto, com sua própria comida em sua própria mesa".  Todos os personagens são solitários, exilados, abandonados, amargos ou com esperanças vazias. O fanatismo é o pano de fundo, é o que justifica praticamente tudo que acontece, como se fosse a única coisa certa e regente no mundo que recebe o bebê de Lena Grove. Um retrato amargo e realista do sul dos Estados Unidos à época, ainda abraçado ao cadáver quente da guerra civil. Todas as mazelas sociais recaem sobre os personagens de Luz em Agosto, todos são alguma face sombria de sua época. Os dramas pessoais são perfeitamente construídos, como os de Hightower. A imensidão épica que ele dava ao avô, soldado confederado, o faz ficar eternamente preso ao passado, delirando com histórias que lhe fazem criar um filtro psicológico para a realidade e o levam ao imobilismo. Assim como Christmas, todos são um pouco caricatos, e este exagero parece uma escolha, Faulkner cria com tanto detalhismo as vidas de seus personagens, dá-lhes uma forma de pensar tão particular que é como se os víssemos por dentro de uma forma em que não podemos julgá-los por conhecermos tanto seus pontos fracos. Entramos em suas misérias particulares, vemos seus medos, suas limitações, principalmente as limitações. Em resumo, é possível enxergar o porquê deles entenderem o mundo de determinada forma. Daí todos ficarem um pouco exagerados, porque olhamos de perto demais.

A narrativa em Luz de Agosto segue o fluxo de consciência dos personagens. Não há onisciência, mesmo o narrador em terceira pessoa só conhece a história até o ponto em que o personagem a conhece, deixando inclusive lacunas que outros personagens podem vir a cobrir. Christmas, por exemplo, nada sabe sobre sua primeira infância, e o leitor também não, o que só mudará quando aparecerem seus avós. Os personagens são a narrativa. O narrador, no entanto, a organiza e a constrói. Porém, diferentemente de James Joyce em Ulisses e do próprio Faulkner em Enquanto Agonizo, a consciência não domina a linguagem. Neste Faulkner a linguagem do narrador molda a vida dos personagens ao contar suas histórias. Ela explica e amplifica os sentimentos, dá-lhes uma forma artística sem deixar de ser prosaica. Faulkner parte da consciência de seus personagens e a lapida, diferentemente do que faz, como citado, em Enquanto Agonizo, onde ele deixa que os personagens construam a narrativa. Seguem abaixo alguns exemplos:

(Joe Christmas e a mãe adotiva)
Não era o trabalho duro que ele odiava, nem o castigo e a injustiça. Estava acostumado a isso antes mesmo de ter visto qualquer um deles. Não esperava menos, e por isso não se sentia ultrajado nem surpreso. Era a mulher: aquela bondade suave da qual se acreditava condenado a ser a vítima eterna e que odiava mais do que a dura e implacável justiça dos homens. "Ela está tentando me fazer chorar", pensava, deitado frio e rígido na cama, as mãos atrás da cabeça e o luar caindo sobre o corpo, ouvindo um murmúrio constante da voz do homem como se ela subisse a escada para o primeiro estágio a caminho do céu. "Estava tentando me fazer chorar. Aí ela acha que eles teriam me submetido".
p. 150

Percebe-se então que a narrativa e a voz de Christmas se completam, o personagem exemplifica o que o narrador explica. Já em outros trechos, como o descrito abaixo, o próprio personagem pode se explicar por completo:

(conversa entre Hightower e Byron Bunch)
"Por que você passa as tardes de sábado trabalhando na fábrica enquanto outros homens estão se divertindo na cidade?"(...).
"Não sei", disse Byron. "Acho que a minha vida é esta mesmo".
"E eu acho que a minha vida é esta mesmo, também", disse o outro. "Mas agora sei por quê", Byron pensa. "É porque um sujeito tem mais medo do problema que poderá vir a ter do que do problema que já tem. Ele se agarrará ao problema a que está acostumado em vez de arriscar-se a uma mudança. Sim. Um homem falará sobre como gostaria de escapar dos vivos. Mas são os mortos que lhe causam dano. É dos mortos que jazem quietos num lugar e não tentam agarrá-lo que ele não pode escapar".
p. 67

No trecho abaixo há apenas uma pequena interferência de Hightower em meio ao trabalho do narrador (e por sinal uma intervenção do narrador quando Hightower está falando/pensando), o modo como se organiza a memória, detalhista e precisa. O ex-pastor escuta de sua casa os sons da cerimônia e lembra como era em sua época, misturando passado e presente para formar uma coisa única, atemporal, onde sobrevive:

Esperando, observando a rua e o portão da janela do estúdio às escuras, Hightower ouve a música distante no momento em que ela começa. Ele não sabe que a espera, que todas as noites de quarta-feira e domingo, sentado à janela escura, ele espera que ela comece. Sabe quase o segundo em que deve começar a ouvi-la sem recorrer ao relógio de bolso ou o de parede. Ele não usa nenhum dos dois, já não precisa deles há vinte e cinco anos. Vive dissociado do tempo mecânico. Mas por essa razão ele nunca o perdeu. É como se no seu subconsciente ele produzisse, sem querer, as poucas cristalizações de instâncias estabelecidas pelas quais sua vida morta no mundo real fora governada e ordenada um dia. Sem recorrer a relógio ele poderia saber imediatamente, pelo pensamento, precisamente onde, em sua vida antiga, ele estaria e fazendo o quê entre dois momentos fixos que marcavam o começo e o fim do serviço dominical matinal e do serviço dominical noturno e do serviço de oração na quarta-feira à noite; precisamente quando estaria entrando na igreja, precisamente quando estaria trazendo para um desfecho calculado a oração ou o sermão. Assim, antes de o crepúsculo ter desvanecido por completo, ele está dizendo para si mesmo '
Agora eles estão se reunindo, se aproximando pela rua lentamente e virando para entrar, saudando-se uns aos outros: os grupos, os casais, os solteiros. Uma ou outra conversa informal na própria igreja, em voz baixa, as senhoras de sempre um pouco sibilantes com leques, acenando com a cabeça para as amigas que chegam enquanto passam pela nave. A srta. Carruthers (ela era sua organista e já morrera há quase vinte anos) está entre elas; logo ela se levantará e entrará no balcão do órgão' Reunião para orações no domingo à noite. Sempre lhe pareceu que naquela hora o homem chega mais perto de Deus, mais perto do que em qualquer outra hora de todos os sete dias. Só então, entre todas as reuniões religiosas, existe algo daquela paz que é a promessa e o fim da igreja. A mente e o coração se purgavam então, se assim devesse ser; a semana e seus desastres, quaisquer que eles fossem, terminados e somados e expiados pelo furor duro e formal do serviço matinal; a semana seguinte e seus possíveis desastres ainda não nascidos, o coração aquietado agora por algum tempo sob o fresco e suave sopro da fé e esperança".
p.319a

Em relação ao título, sempre me pareceu haver uma relação entre "luz" e o nascimento do filho de Lena. Há uma aparente releitura do nascimento de Cristo, até alguma semelhança, como entre a cabana onde ela dá a luz e a manjedoura, ou os três personagens que estavam com ela no momento (os Hines e Hightower) com os três reis magos, e além de tudo o nome de seu outro personagem, Christmas. Até mesmo a capa da edição brasileira mais recente, da Cosac Naify, mostra uma sombra sobre uma adolescente, mais especificamente a barriga de Lena Grove. De toda forma algumas pesquisas me indicaram que o próprio Faulkner refutava esta relação e dizia que em agosto, no Mississipi, em alguns dias a luz do sol lhe dava a impressão de que estava em outra época, uma época clássica, como a Grécia antiga.

Luz em Agosto é um clássico maiúsculo. Impossível não se sentir inserido na história americana, além da usual aula de técnicas literárias que Faulkner nos proporciona. 


FAULKNER, W. Luz em Agosto. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Resenha: João Cabral de Melo Neto - Auto do Frade

O poema dramático de João Cabral de Melo Neto sobre Frei Caneca relata o último dia do carmelita condenado à morte por sua atuação republicana, mais especificamente como um dos líderes da Confederação do Equador. Apesar do forte conteúdo histórico-político a narrativa é totalmente centrada na ação, na reconstrução dos momentos percorridos por Caneca da prisão até a execução da sentença. Como em um auto a poesia se desenvolve como estrutura teatral, cada personagem em seu espaço narrativo. Destacam-se então a voz do povo, as vozes oficiais, e a do próprio frei. A mistura de todas as impressões, - geralmente opostas já que a maioria nas ruas estava ao lado do condenado e a voz oficial era inquisitiva e protocolar, aliados ao lirismo lúcido e contestador de Caneca mesmo à beira da morte - constroem um quadro dolorido e belo daquela tarde que enquanto acontecia já parecia destinada à história. 

A interpretação dos atos mais simbólicos geralmente se dá pelos comentários dos populares que enchiam as ruas do Recife. Como na cena da excomunhão em um ritual público onde lhe vestem a batina e depois a arrancam, para assim entregar à justiça um homem comum, e não um padre. 

"- Quando tiravam alguma coisa, 
vinham o incenso e a água benta. 
- Não era o frade a quem benziam, 
estavam benzendo era a prenda.
- Queriam limpá-la do frade
e do diabo, se estava prenha.
- Queriam lavá-de tudo,
do frade, do diabo e suas lêndeas." 

Mais raras são as reflexões do próprio frei, porém oferecem uma perspectiva intimista, um ponto de vista pessoal dentro de quem se notava pelo pensamento público:

"O raso Fora-de-Portas
de minha infância menina, 
onde o mar era redondo, 
verde-azul, e se fundia
com um céu também redondo
de igual luz e geometria!
Girando sobre mim mesmo, 
girava em redor a vista
pelo imenso meio círculo 
de Guararapes a Olinda. 
Eu era um ponto qualquer
numa planície sem medida, 
em que as coisas recortadas
pareciam mais precisas,
mais lavadas, mais dispostas
segundo clara justiça.
Era tão clara a planície, 
tão justas as coisas via, 
que uma cidade solar
pensei que construiria."


O povo está nas ruas, e está ao lado do frei. Paira no ar uma espécie de consternação, indignação, e ao mesmo tempo esperança que chegue a qualquer momento, por água ou por terra, um indulto do imperador. Esperanças que vão morrendo aos poucos conforme passam as horas, ou quando se convencem que o imperador sequer sabe onde fica Pernambuco. O burburinho das ruas, que se avoluma cada vez mais enquanto o seguem como em uma procissão, incomoda muito os oficiais, como se pudesse haver uma revolta para libertá-lo. Ao chegarem à forca as ordens são de que o executem logo, mas com que carrasco? Todos se recusam a matá-lo, já rondava na cidade a lenda de que a Virgem Maria foi vista sobrevoando a cidade e pedindo que não lhe enforcassem o afilhado. Nem mesmo outros condenados à morte, para os quais é oferecido indulto em troca de realizar o serviço sujo, aceitam. Sentado ao pé da forca Caneca espera. Sem sucesso os oficiais são obrigados a chamar um pelotão de fuzilamento para cumprir a pena. Este é um fato muito simbólico. O frei foi condenado como um criminoso comum, por isso seria enforcado. A tentativa de desmoralizá-lo ruiu ao terem de recorrer ao fuzilamento. Morrer fuzilado era quase uma honra militar, uma redenção, um ato heróico. Fuzilá-lo era como ratificar sua posição de mártir. 

Por fim morre Caneca com doze tiros. A cena da morte é narrada através de seu pai, que está em um bairro onde não pode ver, apenas ouvir o que acontece no Forte. Ao som dos tiros da tropa ele volta para o quarto onde passou dias rezando e acendendo velas a todos os santos. Apaga todas, joga as flores no lixo, recolhe os santos e os joga ao mar. 

Ainda sobre o pai, foi por ele que Joaquim do Amor Divino Rabelo se tornou Caneca. 

- Por que o chamam sempre Caneca
se se chama mesmo é Rabelo?
- Frei Caneca é o filho maior
de um certo Rabelo tanoeiro;
ao pai, por sua profissão,
chama-o Caneca o povo inteiro. 
E o filho quando se ordenou
quis levar a alcunha do velho.

- Por que não deixou para um lado
esse apelido de Caneca?
Ser do Amor Divino era pouco
para dignificar quem ele era?
- Não quis esconder que seu pai
um simples operário era,
nem mentir parecendo vir
das grandes famílias da terra.  

Um personagem histórico vivido por um personagem literário. Uma reinterpretação, uma reconstrução pela poesia como se fosse a ciência da linguagem. 
O poeta escolhe o lado e recria esta faceta rígida e lírica, totalizante ao mesmo tempo que se baseia em vozes soltas. Uma espécie de monumento de representação dos vencidos.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Juan Rulfo - Pedro Páramo



Uma narrativa que mistura memórias e poesia como poucas. Pedro Páramo é uma saga em precisas 130 páginas. Histórias tristes se misturam a desejos de vingança, servidão, amores paranóicos, violência e busca. A história sofrida de Comala muito se assemelha com a de toda a América Latina longe das capitais e do poder constituído (geralmente ocupado pelo coronelismo). 

Juan Preciado é um filho de mãe solteira que após a morte dela vai em busca de seu pai, Pedro Páramo, no povoado de Comala, México. Lá encontra uma procissão de mortos que lhes contam todas as desventuras de seu pai, um coronel implacável, de formas que variam de acordo com cada narrador. Depara-se inclusive com as memórias do próprio pai. Este "recurso narrativo" de utilizar os mortos não nada tem de espírita ou sobrenatural. Na verdade a escolha pelos mortos parece precisamente o oposto disso: como se os mortos já não temessem a verdade, como sempre o fizeram em vida, sendo eles os únicos com autonomia para relatar com precisão. Por outro lado mostra que a condenação daquele povo é eterna, que mesmo depois de mortos estão presos àquele sistema, àquela terra quente e sem esperanças, interpelando os vivos que passam por ali para que rezem por eles. E, porque não, para contar como foram algumas das mortes sob o ponto de vista mais claro, o do morto.

O contra-ponto da história de opressão de Pedro Páramo é, de certa forma, Susana San Juan, mulher que ele amou no fim da vida e que, mesmo que minimamente, lhe fez ter consciência de suas fraquezas. 

A narração é completamente não-linear, mas é fácil perceber a mudança de personagens, ou de perspectiva. Um mesmo personagem pode contar a sua história, como num relato de infância com os verbos no tempo presente, ou contar suas memórias, no pretérito. As vozes vão do coronel Páramo até senhoras simples que viveram suas vidas enclausuradas à espera de dias melhores ou de amores impossíveis. 

É fácil perceber a influência desta obra em clássicos como Cem anos de solidão. Aliás, Comala, assim como Macondo, me lembraram muito o interior de Minas Gerais, afinal "América Latina" é isso aí. 

Pode ser um exercício interessante comparar as técnicas narrativas de escritores que tratam de realidades tão próximas abordando-as de maneira tão distinta (ou seguindo "escolas literárias" diferentes) como Garcia Marquez, Juan Rulfo, Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa, etc. 

Um trecho que exemplifica bem a narrativa poética de Juan Rulfo:
"Pedro Páramo viu como os homens iam embora. Sentiu desfilar na sua frente o trote de cavalos escuros, confundidos com a noite. O suor e o pó; o tremor da terra. Quando viu os pirilampos cruzando outra vez suas luzes, percebeu que todos os homens tinham ido. Só restava ele, como um tronco duro começando a se despedaçar por dentro" (p. 120).

terça-feira, 1 de março de 2011

A bola quadrada


Aos seis anos de idade ouvi minha primeira grande promessa e tive minha primeira desilusão. Aprendi nesta ocasião que quem espera nem sempre alcança. Não acredito que isto tenha me tornado uma pessoa melhor ou pior, era uma época de descobertas e não existia um grande sentido metafísico nas coisas, elas apenas aconteciam ou não e te deixavam tristes ou não. Mesmo hoje, sem ter esquecido, essa história não me surpreende, nem ecoa. É apenas memória, reflexo de um tempo que talvez não tenha mudado tanto. Talvez quem fui seja apenas um tipo de caricatura de quem sou. 

Tudo começou com um pedido atendido. Ia sempre à fazenda com meu pai, às vezes todo fim de semana, às vezes duas vezes por mês. Noutras o prazo era maior, passávamos cerca de um mês sem nos encontrarmos em direção a Campo Florido, o que me chateava muito. Gostava de muitas coisas naquela época, vídeo games, futebol, mas nada me era mais caro do que a relação com o campo: calçar botinas, um chapéu, atravessar estradas de terra e, principalmente, andar a cavalo. Minha relação com os equinos sempre foi fascinante. Admirava aqueles animais grandiosos e ao mesmo tempo obedientes, mansos e servis. Eram como símbolos de bondade em um mundo que já se desenhava claro em minha mente: os mais fortes mandavam, nem sempre gentilmente. Os cavalos eram como um novo paradigma. Preciso confessar que me arrependo muito do modo como os tratei algumas vezes. A sensação de dominar um ser daqueles, te deixam no topo do mundo, é algo difícil de se controlar, ainda mais para um garoto. Eu apelava, exigia um pouco mais do que deveria, fazia-os correr como loucos, subir serras sem se cansar, e as esporas eram a minha autoridade. Era deslumbre e logo parei com isso. Eles também se vingaram de mim, e apesar de nunca ter caído já passei por pelo menos três situações difíceis onde tive quase certeza que iria morrer. Um cavalo disparado é algo que te coloca no seu devido lugar. Sendo um apaixonado por esta vida, sem poder desfrutá-la diariamente, propus a meu pai que me realizasse um pequeno capricho. - Nessa época ele já tinha me dado uma égua. Hoje percebo que era fácil para ele dizer que ela era minha. Eu não exigia papéis assinados, nem contratos, nada. Simplesmente gostava muito de andar em uma égua malhada, muito mansa, e um dia pedi e ele disse que era minha. Provavelmente não era - . Mas imaginando que pudesse ser dono do que queria, e buscando soluções para os longos períodos afastado do campo, pedi a meu pai que me desse um cavalo para ficar na casa da cidade. Morava apenas com minha mãe e tínhamos um grande quintal ocupado por um vira-latas que não se incomodaria com a presença de outro amigo. Assim como me "deu" a égua, ele disse que sim. Que em breve arrumaria um cavalo para levar à cidade. 

Dos fatores determinantes para dar veracidade à história o principal foi o pedido de sigilo (mães sempre tentam impedir os planos dos garotos). Aquela cumplicidade entre nós dois, talvez o meu primeiro segredo, era fundamental para me fazer sentir parte de algo, de uma grande trama, um plano infalível que talvez demorasse, mas que surpreenderia a todos. No começo agi como qualquer criança chata, sempre que estávamos a sós perguntava insistentemente quando o cavalo viria, até que, muito seriamente, como os homens falam entre si, ele pediu paciência, e disse que as coisas aconteceriam na hora certa. Deixei de perguntar, mas não deixei de imaginar. Fiz tantos planos para minha vida na cidade com um cavalo que não pude esquecê-los. Era como se toda a minha vida dependesse daquilo. Eu o encaixava em todas minhas atividades. Geralmente, ao me deitar, pensava nele até adormecer. Antecipava como executaria cada uma das tarefas que me eram enfadonhas no dia-a-dia de uma nova forma. O cavalo dava uma nova perspectiva a tudo. Imaginava-me acordando pela manhã. A dureza de sair da cama, escovar os dentes e ir buscar o pão tomava contornos épicos. Ao invés da caminhada solitária até a padaria, da falta de dignidade de sair com o cabelo desarrumado e remelas nos olhos, teria que selar o cavalo, montar, abrir o portão montado nele - algo com um alto nível de dificuldade como abrir porteiras sem descer do cavalo - e sair triunfantemente pela rua. O barulho dos cascos contra os paralelepípedos da Rua Planura atraindo atenção e admiração. Ao chegar e amarrá-lo em alguma árvore todos me olhariam de outra forma: "um boiadeiro", pensariam. Depois voltar, alimentá-lo, e então me preparar para ir à escola. Aqui tínhamos uma grande mudança. Aos seis anos de idade provavelmente eu seria o primeiro dos caras a chegar sozinho, sem os pais. Passaria pelas árvores onde as crianças mais velhas prendiam suas bicicletas com todos me olhando lá debaixo. Pediria à diretora que deixasse meu cavalo pastar no gramado do pátio, e mesmo a idéia de falar com a diretora, até então pavorosa, me era tranquila, "estou falando com um boiadeiro", pensaria ela. A grande expectativa não era ainda em relação a nada disso, e sim quanto às brincadeiras com meus amigos do bairro. Era fácil imaginar a mudança de nível que eu teria com um cavalo. Minha performance seria melhor em tudo, além de poder criar novas situações. Quando brincássemos de "pic-pega" seria imbatível, poderia correr de todos, e se por acaso em um golpe de sorte alguém me pegasse eu chegaria facilmente até eles, num passe de mágica. Quando fossemos subir em árvores estaria já na altura da copa. Quando quiséssemos pular o muro para entrar em um terreno baldio estaria já acima dele. Até maneiras de jogar futebol sobre ele imaginei, particularmente como goleiro. Mais fascinante ainda seria brincar de cavaleiro. A possibilidade de transformar em algo real uma mera brincadeira era inquietante. Quantas vezes subíamos em cabos de vassoura velhos emulando cavalos em nossas batalhas épicas contra inimigos imaginários. Agora não, eu estaria realmente em um cavalo, como um guerreiro medieval. Seria o capitão da tropa, melhor que isso só se tivéssemos armas e inimigos de verdade. Era difícil dormir assim, com tanta expectativa, e quando conseguia era o melhor sono que poderia ter. 

Estava prestes a dizer que todo sonho pode se transformar em pesadelo, mas acho que é um pouco de exagero. O tempo passava, eu guardando o segredo como um nobre acordo entre cavalheiros, e o cavalo não aparecia. Voltei a incomodá-lo, esperava que entendesse minha insistência, aquilo de fato era muito importante. Acho que meu pai sempre foi um homem esperto, daqueles que se livram de um problema com uma frase, mesmo que ela apenas transfira o problema, e ele me disse: "vocês estão de mudança, precisamos ver se a casa nova vai ter um bom quintal". Não esqueci e depois que nos mudamos fui dizer a ele que sim, o quintal era suficiente. Foi então que comecei a desconfiar, quando ele descumpriu um de nossos tratos, e disse: "bom, agora você precisa perguntar a sua mãe se ela deixa". Senti-me traído, tivemos parte de nosso acordo quebrado. Guardei durante um ano, ou até mais que isso, aquele segredo. Resignei-me e fui obedientemente até ela pedir para ter um cavalo no quintal. Aquilo era loucura, mas eu queria tanto o cavalo que resolvi engolir seco e perguntar. A resposta foi o esperado: "você está louco? Aliás, seu pai que está louco. É impossível criar um cavalo aqui". Apesar de tanto tempo passado, de ter mudado de amigos e vizinhança, era como se aquilo não fosse apenas mais uma esperança e sim um fato. E muito pior que perder as esperanças é se despedir de um fato. Ainda tentei argumentar com ele que tínhamos um trato, que ela não poderia fazer nada se chegássemos com o cavalo, mas sabia de antemão que sem seu consentimento seria impossível. Agora percebo que a culpei por ter caído em uma armadilha que não foi criada por ela. Fui vítima do truque de meu pai de que as pessoas se esquecem de tudo, de que precisavam apenas de uma ilusão para acreditar, e assim viveriam felizes por algum tempo, depois se esqueceriam e então tudo ficaria bem. Bom, não posso afirmar que ele seja assim, talvez só tenha procurado uma saída diante de um pedido que hoje concordo em classificar como bizarro. Fiquei por alguns meses com o coração partido, pensando em como teria sido, em como a vida poderia ser um mundo novo com aquele cavalo ao meu lado. Mas tudo bem, de um modo estranho é como se ele tivesse mesmo chegado, e fizemos tantas coisas, vivemos tantas aventuras que, mesmo sem existir de fato, ele me ensinou que o mundo também gira dentro da nossa cabeça. Lamento apenas não lembrar como era seu nome, e mesmo sem isso afirmo que sempre foi meu cavalo favorito.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Resenha: Água viva


Ganhei este livro no fim de 2010, em um amigo secreto. Clarice Lispector era uma das minhas grandes lacunas literárias, que ainda são muitas. Só conhecia alguns contos dela que saíram naquelas coletâneas escolares, e não havia lido nenhum romance. Conhecia um pouco dela pelo livro de cartas com o Fernando Sabino, "cartas perto do coração", e algumas entrevistas. E comecei quase por um anti-romance. Um livro sem linearidade, sem cronologia, sem capítulos. Eu adoro essas estruturas caóticas, desde que não sejam incompreensíveis, que possuam ao menos alguma ordem possível de se construir por trás de tudo, senão vira arte pela arte. Aqui a narrativa é muito espontânea, muito livre. E na verdade todo ele gira em torno disto, já que praticamente não há história, apenas um longo relato, uma carta da protagonista, uma pintora, para um homem que não se define bem quem é. 


"Sei o que estou fazendo aqui: estou improvisando. Mas que mal tem isto? improviso como no jazz improvisam música, jazz em fúria, improviso diante da platéia" p. 21.



"Isto não é história porque não conheço história assim, mas só sei ir dizendo e fazendo: é história de instantes que fogem como os trilhos fugitivos que se vêem da janela dos trens". p. 67



Me parece que ela tenta fazer a narrativa seguir a mesma lógica das reflexões que constrói. Parece óbvio, mas não é. É preciso ajustar o ritmo da escrito ao ritmo dos pensamentos, usando metáforas e histórias mais selvagens ou mais calmas, sincronizando sempre forma e conteúdo. Usando as metáforas não apenas como exemplos ilustrativos, mas em uma sucessão caótica, desordenada, e vai construindo pictoricamente - como uma pintora faria em uma tela - o momento, um estado psicológico quase "primitivo", atrás de sensações perdidas, ou não entendidas. 



"Estremeço de prazer por entre a novidade de usar palavras que formam intenso matagal. Luto por conquistar mais profundamente a minha liberdade de sensações e pensamentos, sem nenhum sentido utilitário: sou sozinha, eu e minha liberdade. (...) Esta minha capacidade de viver o que é redondo e amplo - cerco-me de plantas carnívoras e animais legendários, tudo banhado pela tosca e esquerda luz de um sexo místico. Vou adiante de modo intuitivo e sem procurar uma idéia: sou orgânica. E não me indago sobre os meus motivos. Mergulho na quase dor de uma intensa alegria - e para me enfeitar nascem entre os meus cabelos folhas e ramagens" p. 22.



Enfim, é um romance da espontaneidade, sem ensaio, algo como um desabafo organizado. Outra técnica interessante que ela usa às vezes é que os sentidos vão se ligando, o fim de uma frase traz um conceito que dá início a outra frase, parágrafo, tema, como em um jogo. Por exemplo: 

"O excesso de mim chega a doer e quando estou excessiva tenho que dar de mim como o leite que se não fluir rebenta o seio. Livro-me da pressão e volto ao tamanho natural. A elasticidade exata. Elasticidade de uma pantera macia. 
Uma pantera negra enjaulada. Uma vez olhei bem nos olhos de uma pantera e ela me olhou bem nos meus olhos. Trasmutamo-nos. Aquele medo."p. 73. E assim vai. 



Por não ter uma "história" clara, definida, parece que o livro poderia continuar sendo escrito e lido para sempre, sem ter um fim. Ela mesma deixa isso claro: 



"O que te escrevo é um 'isto'. Não vai parar: continua". p. 87



Além de tudo - me foquei basicamente nos aspectos narrativos - as reflexões dela-personagem são ótimas, vale bastante a leitura.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Resenha: Junta-Cadáveres


O uruguaio Juan Carlos Onetti parece estar sendo descoberto apenas agora no Brasil, inclusive por mim, em edições muito bem-feitas pela Planeta. Como destacado no prefácio, ele sempre seguiu uma tendência um pouco diferenciada da maioria dos autores latino-americanos, distanciando-se do realismo fantástico e do regionalismo, o que talvez explique um pouco o fato. Sobre as edições citadas destaco as capas de "Junta-Cadáveres" e "O Estaleiro", e o prefácio de Francisco Dantas, importantíssimo para introduzir e dimensionar a obra do uruguaio.

A estrutura da narrativa de Onetti é muito bem construída e inovadora. Em "O Estaleiro" quem conta a história é uma espécie de "voz coletiva", que narra e julga as atitudes de Larsen e dos outros personagens. Não se escondem intenções e preferências, e essa parcialidade explícita leva a voz narrativa a ser julgadora e julgada, bem como o personagem, em todos os seus atos. Em "Junta-Cadáveres" o narrador é Jorge Malabaia, garoto de dezesseis anos que vive em Santa Maria, cidade fictícia onde são ambientados todos os romances do autor, dividida em uma cruzada moral contra a instalação de um prostíbulo na cidade. O foco porém não é único, as passagens vão de primeira a terceira pessoa de acordo com o capítulo, e algumas vezes a introdução de uma primeira pessoa introspectiva em cada personagem transforma a narrativa em uma grande teia, cobrindo todas as possibilidades de se enxergar aquela sociedade, e as pessoas, por fora e por dentro.

De toda forma o que mais me atraiu na narrativa de Onetti foi o seu modo peculiar de descrição. É muito comum percebermos e entendermos uma cena apenas pelos gestos de seus personagens, o corpo refletindo pensamentos, sensações, através de movimentos, como na parte a seguir, onde Jorge caminha pela noite depois de se encontrar com Julita, confuso e insatisfeito com poemas que escreveu:

"Empurro o portão e pego a estrada; mas não tenho realmente vontade de ir, de repetir hoje a comédia noturna com o velho Lanza. Vou indo com as mãos nos bolsos da capa de chuva, cuidando para que os ombros fiquem soltos, abandonados, tentando fazer com que os braços não participem do esforço da marcha, evitando às vezes com trabalho e alarme os buracos cheios de água, pisoteando-os outras vezes com raiva. O nariz aberto para tentar descobrir a origem (a forma da árvore, o monte de lixo, da cova ou esconderijo sombrio) de cada cheiro de fim de verão que a noite úmida apodrece e adocica; a cabeça erguida naquele ângulo que indica o desespero e a vontade de assimilá-lo, aquele ângulo exagerado, viril e doloroso que determina a queda da boca e das pálpebras. Vou indo - a passos largos pelo caminho que sobe e desce e que parece virar continuamente para a direita, em espiral - porque tenho muita vontade de fazer a outra coisa; subir para comer e inclinar-me, mastigando, consciente do brilho da gordura nos lábios, sobre a estupidez desolada dos quatro versos sem destino, que não deviam ter-se formado, de cuja inútil introdução no mundo sou responsável e que não posso tirar da memória" (p. 75)

Jorge, o narrador, é um jovem que vive na cidade e observa os acontecimentos: a criação e a luta contra o prostíbulo de Junta-Cadáveres. Enquanto isso vive encontros proibidos com Julita, viúva de seu irmão, que enlouqueceu e parece confundir o irmão morto com o vivo. Por influências familiares acaba sendo levado a participar da queda da casa da orla, como é chamado o lugar onde vivem Junta e as três mulheres. Marcos, irmão de Julita, e o padre Bergner, tio de Marcos, são os maiores inimigos da casa de prostituição, além das estudantes e quase todas as mulheres da cidade. Do outro lado temos Larsen, o Junta-Cadáveres, e o médico Díaz Grey. Larsen é um homem visto por toda a sociedade como de moral questionável, um aventureiro, que sempre sonhou em montar o prostíbulo perfeito, mas conseguiu recrutar apenas três prostitutas de idade avançada. Díaz Grey é um médico velho e decadente, que do alto dos anos passados em uma cidade pequena e sem saída, olha para o passado, para as pessoas que ajudou a nascer, com certo desgosto, amargo pelo que se tornou, e esperançoso no que poderia ter sido, como no trecho a seguir, em que se imagina vivendo outra vida:

"Em vez do perfume dos jasmins amarelos e pisoteados, daquele que o vento traz do rio, daquele que flutuará sempre, imóvel, na sombra da minha escada, um cheiro composto e respirado no meio da tarde num café, numa cidade populosa que nunca vi. O mais Díaz Grey dos Díaz Grey está sentado numa mesa, sozinho, sem esperar ninguém. Não é um café familiar, não muito luxuoso nem muito pobre, tem janelas que dão para uma avenida larga e mal-lavada.

Díaz Grey fuma, com o corpo em abandono, um pouco suado, fresco e cálido por essa leve umidade das caminhadas nos finais de primavera; apóia o cigarro na borda de uma xícara para soltar a cinza. Alguém varre e esparrama serragem atrás do balcão; deixaram abertos os mictórios e um cheiro de sexo e amoníaco, de caracóis mortos esfrega-se contra o piso, contra o cheiro de serragem molhada. Da janela chega o cheiro de nafta da rua e o de jornais recém-impressos; há também um perfume de mulher, intenso, suave, com uma intenção que não consegue se concretizar.

Sem dúvida, nada disso tem sentido nem importância; de qualquer modo, vou subindo com cautela a escada em sombras com uma tênue inveja do suposto Díaz Grey, com os olhos fechados e o nariz inquieto, tentando reunir e respirar os diferentes cheiros que formam o cheiro que lhe convém" (p. 127)

Enfim, um livro para ser lido por diversos motivos, o antagonismo social e moral, as certezas que se tornam perigosas e munição para guerra, o radicalismo de idéias, a vida dissecada de uma sociedade fechada, a variação de personalidades do público para o privado, e principalmente, a meu ver, as descrições e construções narrativas, únicas.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Resenha: homem comum


Em matéria de descobertas literárias o ano de 2010 tem sido esplêndido. Li neste ano alguns dos melhores livros de minha vida, e quatro em especial são de autores que até então eu não havia lido nada: Ernesto Sábato (O Túnel), Cormac McCarthy (Todos os belos cavalos), Juan Carlos Onetti (O Estaleiro), e Philip Roth, com "homem comum", livro sobre o qual escrevi abaixo algumas impressões.

"Homem comum" é um livro completamente arrasador. Daqueles que te fazem parar quase de página em página e pensar na própria vida. Não que te ensine algo, mas pela forma familiar de construir lembranças. A história começa no enterro do protagonista e termina com sua morte. Philip Roth se debruça sobre o que há de mais triste e inevitável na existência humana. O livro não é nada além disso: morte, pessoas unidas à espera da morte, decadência, espera, arrependimento. Aliás, a única parte viva deste romance, a única em que os personagens criam, vivem intensamente, e não se preocupam com o amanhã, é narrado em forma de memórias, portanto terreno fértil para arrependimentos e crises.

Roth constrói de maneira muito fluida e natural sua narrativa, e às vezes nem parece que trata de um tema tão áspero. Ao mesmo tempo em que segue uma prosa simplificada e sintética ele intercala considerações reflexivas fortes, porém, em nenhum momento, pedantes (como "Para quem provou a vida, a morte não parece nem sequer natural"). Consegue reunir as melhores reflexões de uma escrita clássica em uma narrativa contemporânea e passível de ser lida por qualquer um, misturado a uma dose de realismo.

Outro traço marcante é a relação com os pais. A variação de momentos mais fortes do livro é entre a velhice terminal do protagonista e a morte de seus pais. É interessante como ele constrói essa mudança de paradigma, primeiro:  "o que será deles", e depois, num amargo amadurecimento, "o que será de mim". Uma das coisas que mais me agradou foi justamente a perfeita descrição da decadência do corpo e da carne como justificativa para a decadência psicológica do ser humano.

Tenho a impressão de que este romance/novela é exatamente o que penso de arquétipo de um romance moderno (não no sentido de modernismo, mas de contemporaneidade).

Um trecho para exemplificar a leve narrativa do pesado tema da obra. Neste momento ele visita o túmulo dos pais:

"Eram apenas ossos, ossos dentro de uma caixa, mas os ossos deles eram dele, e ele aproximou-se dos ossos o máximo que pôde, como se a proximidade pudesse estabelecer um vínculo com eles e atenuar o isolamento causado pela perda do futuro e religá-lo a tudo o que havia ido embora. Durante uma hora e meia, aqueles ossos foram a coisa mais importante no mundo. Eram tudo o que importava, a despeito do ambiente de decadência daquele cemitério abandonado. Na presença daqueles ossos, ele não conseguia se afastar deles, não conseguia não falar com eles, não conseguia fazer outra coisa senão ouvir o que eles diziam. Entre ele e aqueles ossos muita coisa aconteceu, muitos mais do que agora entre ele e os que tinham carne em torno de seus ossos. A carne vai embora, porém os ossos permanecem. Os ossos eram o único consolo que restava para alguém que não acredita na vida após a morte e sabia, sem nenhuma dúvida, que deus era uma ficcão, e que aquela vida era a única que ele teria". (p. 123-124)

E um segundo trecho, onde ele pensa sobre como fora o suicídio de uma de suas amigas de velhice, Millicent Kramer. Espero não ser muito longo:

"Quando acordou, no meio da noite, acendeu todas as luzes, bebeu um copo d'água, escancarou uma janela e ficou andando de um lado para o outro para recuperar o equilíbrio, porém, por mais que tentasse pensar em outra coisa, só conseguia formular uma única pergunta: como fora seu suicídio? Num impulso, engolindo todas as pílulas antes que mudasse de idéia? E, depois que as engolira, teria gritado que não queria morrer, que só não queria continuar sofrendo aquela dor paralisante (...) teria gritado que só queria que Gerald estivesse ali para ajudá-la e lhe dizer para aguentar firme, para lhe garantir que ela conseguiria suportar e que estavam juntos para enfrentar tudo? (...) Ou teria agido com frieza, convencida, por fim, de que estava fazendo a coisa certa? Teria agido sem pressa, segurando o frasco com as duas mãos, pensativa, antes de esvaziá-lo na palma de uma das mãos e engolir os comprimidos um por um com seu último copo d'água, a última água de sua vida? (...) talvez sorrindo enquanto chorava e relembrava todos os prazeres, tudo o que a entusiasmava e agradara, evocando centenas de momentos comuns que não lhe pareceram importantes quando ela os vivera, mas que agora era como se tivessem existido com a intenção específica de inundar sua vida de uma felicidade cotidiana? Ou teria perdido o interesse nas coisas que estava deixando para trás? Teria ficado sem medo, pensando apenas: finalmente a dor passou, a dor finalmente foi embora, agora é só dormir e ir embora desta coisa extraordinária? (p. 118-119)

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Dias longos, noites curtas


Senti que se pudesse alcançar tua mão tudo estaria resolvido. Sorrir ao te beijar e receber outro sorriso em troca, depois do beijo. Seus dedos passeando pelos meus braços, cansados de um dia inteiro. Assim dia-a-dia, passo a passo, respirando o ar carregado da metrópole. E que nos dias de ausência tua falta não doesse ainda como eu esperava. Pois o cheiro de seus cabelos, os fios de seus cabelos espalhados nos cantos, tudo estaria inundado de presença e do rosto e da voz em minha mente. Uma lembrança breve de ontem, uma esperança quase corriqueira do amanhã tão certo.

Abrir minhas gavetas e me deparar com coisas só suas. Seguir seus rastros pela casa e encontrar o tesouro no fim do arco-íris. Adormecida, sozinha, num sofá-cama meio manco. Te levar para se deitar na cama, mesmo eu sem sono algum. A respiração leve do sono recém inaugurado. Um leve sobressalto de quem sonha sem ainda estar no estágio devido do sono. O que estaria sonhando? O quanto imagino de seus sonhos que você esquecerá pela manhã ao tentar me descrever, ainda com a voz meio rouca e embargada por uma tosse de ontem.

Esquecer exatamente tudo ao exato momento em que se fecha a porta da rua. Experimentar esta barreira instransponível entre o mundo dos outros e o nosso. Da porta pra dentro há uma desatenção perceptiva do todo que converge para você. Um ritual tribalista de imaginação coletiva que permeia a realidade com mitos embaraçantes e prazerosos. Uma racionalidade às avessar, um be-a-bá sensorial que não se explica fora dos coloridos de uma mente que não poderia nos pertencer normalmente. Habituar-nos ao déjà vu constante de uma época que não parece envelhecer.

Fujo da imensidão do redemoinho que gira e me consome o dia todo. Que de manhã me parece inevitável, pela tarde inaceitável e pela noite insaciável. Quando prestes a me entregar ao fado de um nocaute diário sinto ao longe tua voz a me chamar. Imagino exatamente a cena da minha redenção. O gosto de nossas comidas, o som de nossas músicas, a imagem de tuas formas. Às vezes demoro ainda para me situar e continuo a agir como se em meio à ventania e à multidão, quiças sozinho, terminantemente fustigado e maltratado abaixo a cabeça e os olhos já em nosso reino. Não demoro a deitar fora tudo de ruim que o mundo me reserva quando seu hálito se aproxima do meu com uma pergunta ou uma resposta sentida.

Senti que se pudesse alcançar tua mão tudo estaria resolvido. E que assim seríamos felizes.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010




"Grandes são os desertos e tudo é deserto,

Salvo erro, naturalmente.
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!"

(Álvaro de Campos)

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Os mortos


Ao colocar a chave sobre a mesa, ouvindo o barulho alto do vidro, lembrou-se que ele pediria que não fizesse aquilo. Era uma mesa grande para o cômodo. Muito bem cuidada, apesar da idade. "O vidro arranha, do jeito que você joga essa chave, qualquer hora ele quebra". Um vidro dessa espessura não quebra, pensava ela. Retirou a chave, e pendurou-a no porta-chaves. O tamanho da mesa tornava quase um reflexo colocar qualquer coisa sobre ela. Quantas e tantas discussões por não estar vazia: apenas o forro, o jarro, e a própria mesa. Ao pendurar a chave resmungava contra aquilo. "Você era tão chato que mesmo não estando aqui me assombra com suas manias". Sentiria remorso ao contrariá-las. Mais remorso do que quando fazia algo sabendo que ele chegaria em casa e brigaria. Como é estranha essa sensação de não ter de te esperar. Parece que o ar e tudo fica tão cheio de você, como se antes você anulasse tudo isso com sua presença. Ah, mas como eu sou boba, o ar é o mesmo, é tudo a mesma coisa. Até o silêncio é o mesmo. Sim, você imóvel daquela forma nunca quebrava o silêncio. Ruíam cascas da parede, formigas, mosquitos, a brisa, mas isso tudo era silêncio e continua sendo o mesmo. É estranho o fato de que antes a esperança era quanto ao dia em que o silêncio seria mais profundo. Que viria o estopim, as portas batendo, o carro arrancando, e de repente, tudo tornaria a ser um silêncio calmo e sem peso, sem você. Quando você voltou, pela última vez, eu já havia me despedido. Acredito que você também. A última vez que sonhei com nós dois, estávamos em um trem. Era estranho, parece que íamos para alguma faculdade, em meio a muitos jovens que usavam roupas de formatura, mas era outono e não estavam em clima de festa. De um banco olhávamos, depois você quis entrar em uma das cabines e eu te impedi. Não entendi nada desse sonho, só me lembro dele por ser o último. Quem sabe agora eu não volte a sonhar contigo? Mas sim, como eu dizia, antes a esperança era de que o silêncio se tornasse mais profundo. Agora, quando esta sala lembra um entardecer na memória, tudo parece abstrato e esfumaçado, a esperança é de que um dia possa se ouvir, aqui neste mesmo ambiente escuro e calado, um som espontâneo cortando o ar e surpreendendo estas velhas paredes. Esperança, ou talvez apenas curiosidade. Se um dia tudo vai parecer sólido e firme novamente. Se vão ranger as madeiras. Ou se passou mesmo esse tempo, sem migalhas do passado, e o que se reserva a tudo isso é um fim que provavelmente desconhecerei, como velhos soldados aposentados e inválidos em asilos. Só me resta esperar e continuar com essa esperança, ou talvez curiosidade. Não que eu tenha tempo para esperar, só não resta muito além disso.

sábado, 19 de setembro de 2009

Má reputação




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Má reputação
Preguiçoso ou inconstante
Preciso mesmo me envergonhar
De ser eu a cada instante?

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Fugiu-me agora
depois de uma cerveja
Se queria te esquecer
ou então já era

Na garupa da moto
premonição sombria
pode custar a vida
uma decisão tardia

Se queria ser feliz
errei na medida
fechou o bar antes da hora
agora: não sei

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Quero voltar, quero voltar
sem tantos
verbos no infinitivo do pensamento

Penso em gerúndio ou particípio
desde que seja válido
justificar o precipício

Nenhuma rima porém traria
aquela cor de primavera
velha, fria
como uma foto de outrora.

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Não tomarei esta cerveja
pois já bebi demais.
É uma pena que não esteja
em Montevidéo
(como estive um dia)
ao lado do cais


quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Day is done



When the day is done
Down to earth then sinks the sun
Along with everything that was lost and won
When the day is done.

When the day is done
Hope so much your race will be all run
Then you find you jumped the gun
Have to go back where you began
When the day is done.

When the night is cold
Some get by but some get old
Just to show life's not made of gold
When the night is cold.

When the bird has flown
Got no-one to call your own
Got no place to call your home
When the bird has flown.

When the game's been fought
You speed the ball across the court
Lost much sooner than you would have thought
Now the game's been fought.

When the party's through
Seems so very sad for you
Didn't do the things you meant to do
Now there's no time to start anew
Now the party's through.

When the day is done
Down to earth then sinks the sun
Along with everything that was lost and won
When the day is done.

(Nick Drake - Day is done. Album: Five Leaves Left)