segunda-feira, 6 de outubro de 2025

“Estações do conhecimento”, de Justino Alves Lima

 




O novo livro de Justino Alves Lima, “Estações do conhecimento”, fecha sua trilogia de obras ligadas às memórias e reflexões acerca da biblioteca enquanto ente político e social, em Sergipe e no Brasil. Justino foi o primeiro doutor em Ciência da Informação em Sergipe, tendo atuado profissionalmente na Biblioteca Central da UFS até 2013, quando se aposentou, e, durante décadas, na defesa das bibliotecas e da cultura enquanto agente transformadores, tendo tido atuação em diversos órgãos públicos, secretarias de governo, e privados (associações e sindicatos), além de suas inúmeras atividades de fomento ao cinema e à leitura.

“Estações do conhecimento” dialoga, de forma a concluir e expandir, seus dois livros anteriores, “Catedrais do silêncio” e “Aldeias da solidão”. Fechar uma trilogia é sempre uma situação complexa, situada no dilema de trazer novos elementos e amarrar os anteriores. E foi exatamente essa mescla que ele conseguiu realizar com êxito. Importante ressaltar que não é condição essencial para o entendimento deste livro ter lido os anteriores, mas, ajuda. Afirmo, sem receio, que com esta trilogia Justino passa a história da biblioteconomia e das bibliotecas em Sergipe a limpo em definitivo, o que não é pouco.

Tentando me ater, portanto, à obra como ente individual, para não fazer uma resenha tripla (uma vez que já publiquei uma resenha sobre “Aldeias da solidão”, neste link, e tive a honra de prefaciar “Catedrais do silêncio”), mas sem deixar de citar as demais, inicio com o fato de que me parece mais acertado dizer que este livro é mais sobre bibliotecas e menos sobre a biblioteconomia do que os anteriores, embora nas três obras tenhamos reflexões sobre ambas, sem contar a associação óbvia entre o ente e a área. Este texto abrange diretamente questões funcionais, como as consequências práticas da inoperância desta instituição em um país desigual e empobrecido, em que a miséria é um poderoso instrumento de manutenção de classes. É por isso que esse instrumento, biblioteca, é convenientemente esquecido e colocado no armário, saindo apenas em épocas eleitorais (e olhe lá!), devido a seu caráter transformador ou, no mínimo, criador de possibilidades.

Por meio de histórias pessoais, que ilustram de forma concreta uma realidade muito mais abrangente, o autor traz relatos sobre bibliotecas, ou salas de leitura, do interior e da capital sergipana, bem como questões administrativas. Traz, por exemplo, as idiossincrasias, burocracias e outras situações quando da criação de um sistema de bibliotecas mais amplo. Sua intenção não é teorizar sobre os princípios administrativos das bibliotecas no Estado ou na universidade, mas, de apontar as incoerências administrativas e políticas quando se tem um discurso de defesa da informação e do conhecimento que não se observa na prática, sobretudo no momento de aplicar recursos, humanos e financeiros, para implementar essas políticas culturais, como as de leitura e informação.

Justino retoma — pois o tema fora iniciado em “Catedrais do Silêncio” — o trajeto histórico e político da questão informacional como fator essencial para análise de seu desenvolvimento e de sua forma atual. Podemos inferir da leitura que há pelo menos três tipos comuns de bibliotecas, cada uma com particularidades de problemas: as que estão razoavelmente estáveis, com finalidades específicas, respaldadas por uma necessidade legal e subsidiadas por instituições robustas, como as universitárias, do judiciário, etc. Estas, por sua vez, sofrem uma dificuldade histórica na capacidade de estruturação e de sistematização, apesar de sua grandiosidade. Além disso, correm o risco de ficarem encasteladas, em uma solidão diferente, de “primo rico”, que não divide os brinquedos; aquelas que possuem um aparato estatal em relação à sua forma, mas que na prática estão esvaziadas, deixaram de ser interessantes, como as públicas, e nestas podemos verificar um escalonamento variável, mas que independente de seu tamanho, acervos e forma, igualmente abandonadas, de público e de recursos; e aquelas que não existem, mas mesmo assim são usadas como propaganda, como salas de leitura com amontoados de livros, sem profissionais e jogadas às traças.

Me atraem também os aspectos literários do texto, que deixam a obra com uma leitura muito agradável e leve, a despeito da complexidade e perplexidade que nos trazem o seu conteúdo e suas conclusões — ao mesmo tempo em que serve de estímulo à transformação. A comparação das áreas de classificação do conhecimento com estações é uma metáfora deliciosa, uma vez que cada classe teria a possibilidade de nos levar a um destino diferente, tão distante quanto todas as distâncias que compõem a humanidade e que foram representadas em acervos das bibliotecas. Ou seja, impedir o acesso às estações é como impedir o direito básico de ir e vir, e essa é a gravidade de não se ter acesso a um mundo informacional complexo.

Outro ponto central do livro é o traçado de uma história do pensamento intelectual da área no Brasil. Justino destaca três grandes marcos: Rubens Borba de Moraes, bibliotecário pioneiro tanto da profissionalização enquanto formação superior, bem como seu papel na Semana de Arte Moderna e na Divisão de Bibliotecas do Departamento de Cultura de São Paulo, modernizando e ampliando os aparelhos estatais bibliotecários, sendo por isso considerado o patrono da biblioteconomia brasileira; Mário de Andrade, que dispensa apresentações enquanto escritor e idealizador da Semana de Arte Moderna de 1922, abordado aqui pela sua atuação na criação do Departamento de Cultura do Município de São Paulo e precursor de um formato associado a um Sistema interligado de cultura e do que seriam, posteriormente, os centros culturais; e Luiz Milanesi, professor da USP, com grande atuação a partir da década de 1980 na modernização do pensamento sobre bibliotecas públicas, retomando conceitos da prática “andradiana”, expandido-os e adaptando a um mundo que vivia (e vive!) uma revolução tecnológica pujante, que leva ao esvaziamento das bibliotecas. Justino atribui, corretamente, um caráter revolucionário a essa nova forma de pensar a biblioteca, de forma democrática, trazendo a comunidade para pensar os rumos dos instrumentos de cultura, e da ampliação dos serviços para muito além da simples disponibilização de acervos. “Milanesi teoriza uma revolução no fazer das instituições participantes do Sistema de Bibliotecas Públicas do Estado. Era preciso um choque de ideias, como fizeram os modernistas nos anos 1920. Pensa em uma nova versão de biblioteca que incorpora as tendências de cultura e lazer somadas às já presentes, as da informação e da educação”. (Lima, 2025, p. 46) . É interessante notarmos que, apesar de escasso, porém denso, os marcos do pensamento “cultural-bibliotecário” sempre estiveram ligados à prática, demonstrando que não existe pensamento intelectual abstrato ou puramente “teórico” na biblioteconomia.

Como toda boa obra, ela dialoga, e não apenas prega. E, como em todo bom diálogo, há aprendizado e também discordâncias eventuais. Aqui, não foi diferente, embora essas discordâncias me pareçam importantes como forma de pensar e amadurecer uma proposta social, que deve ser sempre discutida e atualizada. Neste caso, uma das divergências que tive ao longo da trilogia, e especificamente nesta obra, é a definição de “incúria governamental” de uma forma que me pareceu um pouco generalizada. Ao classificar sem distinguir, há, no meu ponto de vista, uma espécie de revelação apocalíptica, como se não houvesse forma de governo, de organização, de regime, que resolva o problema da informação pública e da falta de leitura no Brasil, o que, para um cético, poderia soar como não haver mais o que ser feito. Lembremos que o Brasil carrega um sistema educacional público programaticamente construído para manter o abismo social entre ricos e pobres, trabalhadores e a elite econômica, e é portanto a política associada a esta última a culpada pela incúria. O próprio autor, a despeito do que indico, aponta isso, ao se referir à formação da classe política brasileira com termos como: “as entidades de Estado são criadas na esteira do caudilhismo” (Lima, 2025, p. 77); “Administradores patrimonialistas” (Lima, 2025, p. 78); “primeiro eles, a elite, depois a sociedade, o povo” (Lima, 2025, p. 78). Mas, acho que essa relação poderia ter sido construída mais enfaticamente para não parecer que é tudo igual. Porém, também sei que ele tem autoridade para dizer “o quê” e “como” diz, pois viveu na pele experiências com dois polos políticos que, no fim das contas, não foram assim tão diferentes nesse quesito, como descreve na obra.

Outra discussão que pode ser feita a partir de afirmações da obra é sobre a liberdade irrestrita de divulgação de formas de pensamento, defendida pelo autor. Discussão essa que não é nova, mas sempre muito profícua, sobre os limites (ou não) a determinados discursos que podem trazer, do meu ponto de vista, consequências perigosas ou até trágicas à sociedade, como discursos de ódio, ou ligados a terrorismo sanitário, como nos casos mais recentes sobre as vacinas. E, por último, nesse inventário de poucas e importantes divergências, sobre o papel das redes sociais no processo cultural mais amplo. Justino, a meu ver, é um pouco cético demais sobre o papel destas, como neste trecho: “a não-informação, presente nos lugares, faz falta enquanto instrumento de pertencimento. A informação que circula em redes sociais é discutível e descartável” (Lima, 2025, p. 73). Não está errado, apenas me parece ignorar um outro lado, do enorme potencial mobilizador e contra-hegemônico das redes, apenas para citar alguns dos que acho os principais e não me demorar muito.

O livro traz nos anexos algumas correspondências e discursos, algo muito interessante, que complementa e ilustra tanto este quanto trechos de “Catedrais do silêncio”. É um brinde ao leitor poder ver a luta solitária do autor, tão bem descrita em “Catedrais…”, materializada, por exemplo, em seu discurso na Assembleia Legislativa de Sergipe, em 1988, que refletia de forma muito consciente e engajada a efervescência daquele momento tão particular da política brasileira, pós-ditadura e durante a constituinte de 1988, quando o país se reconstruía. Por fim, a obra — as obras — talvez tenham até me deixado com um pouco de sentimento de culpa. Parece-nos difícil replicar sua missão, descrita já como “quixotesca” — o que neste caso diz mais sobre o meio do que sobre o indivíduo que luta pela transformação da realidade — , com tamanha ênfase, competência e seriedade. Mas, não podemos deixar de ter essa perspectiva no horizonte, para não cairmos em silêncio, solidão, nem perdermos o acesso às estações.

(resenha originalmente publicada em: https://medium.com/@fabiofariasbtl/estacoes-do-conhecimento-de-justino-alves-lima-1c0547fd98ab)

terça-feira, 9 de setembro de 2025

Algumas impressões sobre a obra de Gonzalo Unamuno em português

 

A leitura da obra de Gonzalo Unamuno traduzida ao português — tradução de Mauricio Tambonie e publicada no Brasil pela PontoEdita — foi uma experiência de avessos e extremos em uma viagem literária complexa e muito pesada.

As duas obras trazem o mesmo personagem, Germán Baraja, em um intervalo de cinco anos entre ambos, nos quais os personagens tem aproximadamente entre 34 e 39 anos. Li primeiramente “Lila” (o original é de 2018), e depois “Para acabar com tudo” (de 2015), ou seja, ao contrário. No fim, essa inversão acabou se revelando interessante, sobretudo quando percebi que os capítulos de “Para acabar com tudo” são compostos de trás para frente, em três dias da semana: domingo, sábado e sexta. Desta forma, a leitura foi como se eu acompanhase todo o fio temporal do personagem, Germán Baraja, sempre do fim para o começo. Além disso, o personagem, que se revela muito mais em “Lila”, mas se constrói em “Para acabar com tudo”, resulta de uma sequência de reflexões que, no primeiro livro, podem nos levar ao engano, por uma narrativa mais sinuosa e com possíveis relativismos. Ao ter lido inicialmente o segundo, o antídoto contra essa sinuosidade, que pode pegar os distraídos de calça curta, está tomado. Vamos a eles.

“Lila” começa com a perturbadora cena de um feminicídio narrado pelo assassino, com tons de crueldade e uma estranha mescla de satisfação e desencanto. É chocante e quase faz qualquer pessoa abandonar o livro. Uma das cenas literária mais pesadas que já li na vida. Mas, aí vem o primeiro paradoxo: a narrativa é totalmente envolvente. Como se observássemos um lago límpido e transparente, que revela seu solo cheio de lodo e esgoto. Esse fluxo de primeira pessoa, tão honesto e direto, nos faz querer saber mais sobre o personagem, enquanto o repugnamos, nos faz querer entender ou encontrar um sentido naquele absurdo da violência sem limites de um ponto de vista tão pessoal. Um ponto de vista que, quando tratado tão de perto, costumeiramente é pelo lado da vítima. Mas, porquê não também ler outro lado? É justificável, mesmo que para odiá-lo e ter ainda mais motivos para extirpá-lo. Seguindo a narrativa, após cometer o crime o narrador/protagonista nos revela o motivo de ter cometido feminicídio: porque ele podia. Ao longo da história ele faz questão de demonstrar, por diversas vezes, o quanto qualquer coisa que Lila fizesse, como tentar se mostrar superior a ele, ou ciumenta, enfim, qualquer coisa, era Nada diante da possibilidade que ele tinha de acabar fisicamente com ela. Nem mesmo parentes homens poderiam defendê-la, pois ela sempre estaria sozinha em algum momento. Esse é, de certa forma, o paradoxo colocado pelo feminismo, ao cunhar a máxima, que tanto incomoda alguns homens, de que todos nós somos violentadores em potencial. Unamuno demonstra isso por meio de Baraja, que a mata e a estupra depois de morta, porque “pode”. E, “podendo”, ele leva a cabo um desejo surgido ainda na infância, quando passou a odiar as mulheres em um episódio infantil banal, quando se sentiu humilhado por duas meninas.

Talvez possam existir dois tipos de leitores, especialmente homens, para esse livro. Aquele que se convencionou chamar de red pill, muito provavelmente talvez até tenha uma tendência inicial a se identificar com Baraja. Mas, o autor é cruel com esses. Se lhes admiram a “macheza”, vão se deparar com impotência (em todos os sentidos) e uma sexualidade não tão convicta diante de outros homens mais poderosos. Destrói-lhes, portanto, as certezas. O outro tipo, a maioria, quero crer, é o leitor que pensa o quão miserável somos. Aquele que, como homem, se deprime por pensar que todos nós temos um pouco de Baraja pois fomos criados nesse mundo que nos ensina o mesmo que ensinou a ele, e isso nos faz ter convicção não de querermos ser nem sombra do que ele é. E não apenas ele, mas também outros personagens homens que o livro traz, com algumas cenas chocantes, incluindo pedofilia. Voltando aos leitores, em ambos os casos, o livro provoca, o tempo todo, um drama ético. Baraja é uma espécie de arquétipo às avessas, com o qual todos se identificam em algum ponto, e isso é o assustador. Ao mesmo tempo, ainda que centrado em Baraja, a obra não é só sobre o indivíduo, mas também é sobre a sociedade que gesta e cria esse tipo de indivíduo. Como dito, ele é o assassino que mata apenas por ter a capacidade e poder para tal. E é justamente a dissecação dessa estrutura de poder — que confere a um indivíduo doentio e problemático essa possibilidade — o pulo do gato da obra. Acredito que um livro que consiga causar uma inquietude tão reflexiva, para o bem ou para o mal, não passa em branco, não tem como não ser elogiado e considerado essencial nessa sociedade em que vivemos.

Já em “Para acabar com tudo”, Baraja é um ex-militante desiludido (isso descobriremos depois), quebrado, que vive um fim de semana de trás para frente, o que reflete sua vida do avesso. Aqui está a gênese do assassino feminicida, que desaguará em “Lila”. O combo é conhecido, um homem frustrado, que acha que o mundo lhe deve, que lhe castra, que corta suas asas e impede o desenvolvimento de toda sua suposta potencialidade, condenando-o a uma miséria que é ao mesmo tempo existencial e material. O pior, neste caso, é que ele estava aparentemente no caminho certo para entender isso na juventude, militante de uma organização política de esquerda na Argentina (peronista). Porém, a corrupção lhe causa a desilusão e ele deixa de lado a prática e também a teoria, passando a viver sua amargura em um apartamento velho e mofado, enfurnado e protelando seu trabalho de redator, para o qual até tem certo talento. É isso, e não é pouco. Um livro sobre decadência, auto-destruição, tédio: nada mais natural à geração adulta contemporânea, especialmente na Argentina, consumida por crises econômicas e políticas sucessivas, em que todas as vezes que parece prestes a se reerguer, corta-se novamente a corda do resgate e o país acorda novamente no fundo do poço, ainda mais machucado pela nova queda. Outro ponto muito interessante no livro é sua relação de Baraja com sua irmã e a não-relação com a mãe. Ainda que não queira soltar spoillers, me parece possível dizer que sua irmã é a única mulher pela qual ele demonstra algum afeto e respeito. Isso, provavelmente, pelo fato de que uma relação entre irmãos é um pouco mais horizontalizada do que outras nesta dicotomia homem-mulher, como de mães e filhos (por isso ele a evita até o fim), e em um relacionamento, como veremos depois com Lila.

Do ponto de vista do diálogo e contexto literário, as duas obras de Unamuno me pareceram familiares em um outro tempo e com um resultado distinto. Ele retoma uma tradição literária latinoamericana de personagens cínicos, que apareceu de forma muito acentuada, pelo que me recordo, sobretudo até a década de 80. Lembra, por exemplo, Onetti, com diversas figuras masculinas que perpassam essa vertente, e Roberto Arlt, como em “Noche Terrible”. Também não há como não lembrar de Sábado, em “O túnel”. No Brasil, também tivemos vários de Rubem Fonseca. Essa tradição literária, que parecia um pouco esquecida desde o começo dos anos 2000, toma uma outra vertente em Unamuno: o canalha, cruel, debochado, não é mais um anti-herói, nem arquétipo do antissistema. Ao invés de construir a personalidade de seu personagem, como nos autores citados anteriormente, ele a destrói. Ou, poderíamos dizer de forma mais precisa, constrói pela destruição, pela própria miséria humana desse homem degenerado. Se em algum momento alguém se ilude pelo personagem, aquele motivo desmorona logo em seguida. Se acha outro motivo, ele cai por terra rapidamente. Essa é a graça, esse é o jogo: um personagem que desperta nosso ódio violento e crescente.

A Argentina tem uma geração de escritoras que tem trazido ao mundo obras muito relevantes sobre a violência, notadamente de gênero e de Estado, com metáforas e alegorias, explorando linguagens e gêneros (literários) de forma muito particular e rica, como Mariana Enríquez, Samanta Schweblin, Camila Sosa Villada, e muitas outras (várias que ainda preciso ler, como Dolores Reyes e Selva Almada). Acredito que Unamuno complemente esse panorama pelo lado inverso. Pelo inverso, mas não do avesso. Me parece que o autor encontrou uma das melhores formas de tomar lado nessa arte que bebe na concretude da vida, talvez a única possível a um homem nessa equação da violência de gênero: mostrar a podridão por dentro.

Recomendo muito, ao mesmo tempo em que não sei se teria coragem de recomendar para quase ninguém. Mas, sim, leiam.

(resenha publicada originalmente em: https://medium.com/@fabiofariasbtl/algumas-impress%C3%B5es-sobre-a-obra-de-gonzalo-unamuno-em-portugu%C3%AAs-bb9bb8bdff44) 

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Resenha de "Aldeias da solidão", de Justino Alves Lima



Em seu novo livro, Aldeias da Solidão, publicado pela editora Criação, o bibliotecário e amigo Justino Alves Lima analisa o problema relativo à falta de políticas de informação e, consequentemente, de aparelhos informacionais, mais notadamente as bibliotecas, em comunidades periféricas do entorno do campus São Cristóvão da Universidade Federal de Sergipe, traçando um paralelo do contraste entre os “vizinhos”, e também com o desenvolvimento da interação e explosão informacional em âmbito global. Afinal, não há melhor forma de observar e analisar o todo do que pela nossa parte, especialmente no caso dele, que atuou por décadas na UFS. Como dizia Fernando Pessoa, na obra de Alberto Caeiro: “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”. Ainda que, no caso de Justino, não seja bem o caso de apontar as virtudes, mas de lutar para construí-las.

Após um hiato entre a publicação de Bibliotecas & bibliotecários: situações insólitas, em co-autoria com Oswaldo Francisco de Almeida, Justino publicou duas novas obras nos últimos dois anos. Aldeias da solidão sucede Catedrais do silêncio, publicado em 2023. É perceptível a coerência do autor na escolha dos títulos de suas obras recentes. O ponto em comum são os espaços que pressupõe algum tipo específico de sociabilidade, seguidos por adjuntos que os problematizam: da vivência pública e coletiva nas aldeias, que define uma comunidade enquanto grupo, ao tempo em que a diferencia de outras; à transcendental e privada, interiorizada nas catedrais. Em ambos os casos, estabelece-se uma relação comparativa com as bibliotecas públicas e suas comunidades usuárias, e por isso temos o contraponto, especialmente no que se refere à cultura, que deveria pressupor a socialização e a agitação, e não solidão e silêncio. Essa é uma tônica das obras, a contestação e a reflexão sobre questões normalmente estagnadas, que passam a figurar como letra morta, casos perdidos, e assim as aceitamos, como se a normalidade nos impusesse a derrota. Ele não aceita. Demonstra as falhas de um sistema viciado, tanto em termos de concepção de Estado, da questão pública, até a categoria profissional dos bibliotecários, compondo um mosaico complexo dessa estrutura que engloba cultura, leitura e informação.

Os pontos em comum não são por acaso, há uma relação entre as obras, embora não de forma direta, tampouco uma é continuação da outra. A ligação se dá na defesa das bibliotecas públicas como agentes de integração e desenvolvimento humanos, sobretudo para as classes populares, constantemente ignoradas no cada vez mais explícito projeto de manutenção de riquezas e privilégios para poucos, em detrimento da maioria que apenas sustenta com seu trabalho o abismo social. Nesse sentido, as obras também revelam o lento e cruel processo de, em um primeiro momento, elitização da informação e, em um segundo, de esvaziamento. Em Catedrais, o autor discute a ineficácia das políticas públicas que priorizam a arquitetura e o acervo, em detrimento da localização e adequação da estrutura ao público. Agora, em Aldeias, ele faz o caminho contrário: vai até as comunidades sem unidades informacionais para discutir suas necessidades informacionais que não são atendidas, sequer consideradas. 

Aldeias da solidão parte do ponto de vista da teoria das aldeias globais, do teórico da comunicação canadense, Marshall Mcluhan, para analisar comunidades periféricas no entorno do maior campus da UFS. A utilização da teoria, que pretende explicar categorias que atravessam o fenômeno da globalização, transformando hábitos e unificando a humanidade em certa medida, para o bem e para o mal, se contrapõe à falta de acesso às informações nas periferias brasileiras, que as deixam à margem dos processos históricos. Isto ocorre na mesma sociedade que dispõem de lugares hiper informacionais, os não-lugares, de Marc Augé, conceito apresentado por Justino na obra, onde o cidadão pode imergir em sua solidão de forma plena, pois está contemplado e abastecido por recursos informacionais necessários à sua completude, como em aeroportos e centros comerciais, opondo-se às comunidades citadas, onde a solidão coletiva se dá pela falta de acesso ao básico de informação cidadã. Assim, fica evidente que o bonde da história está, na contemporaneidade, mais para uma estação em que uns embarcam primeiro que outros, se é que alguns têm o direito de embarcar.

A era da informação, que se anunciava como uma alternativa democrática, por supostamente diminuir a distância entre usuário e informação, onde a socialização do conhecimento seria facilitada pela difusão tecnológica, acabou, ao manter a concentração de poder, sendo mais um motivo para a manutenção da era da desigualdade, que se estende em seu método desde os primórdios da modernidade. Mais uma vez, aquilo que deveria ser um bem essencial de melhoria da qualidade de vida, de consciência e identidade, torna-se um produto, valorizado apenas enquanto meio de consumo.

Ao demonstrar o que ocorreu no entorno da UFS, Justino nos faz enxergar esse panorama na prática. O autor esmiuçou o aspecto em diversas formas, demonstrando como a percepção de informação é colocada em via de mão única, por exemplo, sem alternativas práticas e institucionais por meio do Estado. Justino ressalta a atrofia do termo no imaginário social, quando informação, inclusive pela via legal, é fortemente associada apenas às mídias tradicionais de difusão, como rádio e a televisão, e ligadas ao jornalismo. Atualmente, podemos inclusive discutir como as redes sociais, que parecem alterar essa lógica, mantêm em essência os princípios da inclusão e exclusão social.

A cidadania está alienada de uma informação popular, cultural, alternativa, entre as descritas pelo autor como caminhos e possibilidades que perdemos ao longo das décadas, por culpa inclusive nossa, os profissionais da área, muitas vezes alheios aos desafios de seu campo, mas, sobretudo, à política institucional, incapaz de enxergar em formação cidadã uma alternativa viável para investimento (não apenas financeiro, mas também humano), como se vê descrito em Aldeias da solidão, ao diagnosticar a falta de estrutura e profissionais qualificados de informação nas comunidades analisadas.

Para alguns, ou para muitos, pode parecer um pouco fora de lugar discutir o investimento público em bibliotecas públicas na era da superinformação, em que qualquer um, e qualquer um mesmo, é bombardeado diariamente com um volume de informação maior do que pode dar conta, e em todos os níveis. De informações pessoais dos amigos, “seguidores” e influencers nas redes sociais até informação política, comunitária (infelizmente dominada apenas pela violência) e jornalística, agora filtradas de acordo com o crivo do algoritmo e de quem paga mais para impulsioná-las. Não que o modelo tradicional da imprensa também não tivesse seus problemas, mas havia muito o que melhorar, e não piorar. Aqui vem justamente um dos importantes tópicos abordados pelo livro, a informação tratada como monopólio dos meios de comunicação e redes sociais, além da distinção essencial entre a informação para entretenimento e a informação para exercer o direito à cidadania, voltada para ressignificar materialmente as condições de vida, especialmente aquelas comunitárias. Aí entram os fatores como mediação, acervos e estruturas.

Nesse sentido, Justino detectou que as comunidades às margens do desenvolvimento econômico se tornaram lugares de não informação. Sua conclusão nos ajuda a entender, por exemplo, o terreno fértil que se formou para as crescentes quadrilhas de falsas notícias, como as que proliferam atualmente a internet, geralmente movidas por interesses políticos específicos e com um exército de robôs por trás, para impulsionar e fazer seu conteúdo chegar ao maior público possível que, sem alternativas, consome muitas dessas como se fosse a única verdade possível.

Ainda sobre a prática cotidiana, que é a tônica do livro, embora muito ancorado na teoria, o que Justino nos demonstra, a partir da premissa inicial de oposição entre aldeias globais e não-lugares, é: uma universidade federal, local em que a informação não só circula, como também é produzida, cercada por uma formação urbana que não tem acesso mínimo à informação para a cidadania básica. Esse contraponto demonstra diversas questões, como a de que fatores geográficos, por si só, não são suficientes, e de que o abismo entre teoria e prática ainda é quase intransponível no modelo de sociedade em que vivemos. Cada vez mais isolados, como pessoas ou comunidades, distantes do que João Cabral de Melo Neto realizou no poema “Tecendo a manhã”, para que algo novo se crie: “Um galo sozinho não tece uma manhã: / ele precisará sempre de outros galos. / De um que apanhe esse grito que ele / e o lance a outro; [...] e de outros galos / que com muitos outros galos se cruzem / os fios de sol de seus gritos de galo, / para que a manhã, desde uma teia tênue, / se vá tecendo, entre todos os galos.”

Conhecido nos meios bibliotecários de todo o país, especialmente por sua atuação na representação da classe em Sergipe nas décadas de 1980 e 1990, bem como sua atuação ligada à área cultural nos anos 1990 e 2000, Justino mais uma vez nos brinda com uma obra densa que nos deixa reflexivos. É um pensador atrelado à prática. Que suas ações, como a escrita desse livro, nos levem de volta a uma possibilidade de futuro que um dia já foi imaginado, mas que soa cada vez mais distante.


quarta-feira, 2 de março de 2016

Resenha: Milton Hatoum - Dois Irmãos



"Dois irmãos" é a história dos gêmeos Omar e Yaqub, inimigos em um conflito constante que marca suas vidas e a de todos à sua volta. Porém não é apenas um livro sobre esta rivalidade, espécie de interpretação livre e contemporânea da história de Caim e Abel. Há de fato a intertextualidade com o relato bíblico: irmãos que recebem atenção diferenciada por parte da mãe desde o nascimento, tal como o deus que prefere Abel, deixando Caim enciumado e propenso à vingança. Neste paralelo Abel seria Omar, o filho preferido pela mãe, escolhido para ficar na casa quando começam os conflitos entre ambos na adolescência. Yaqub é Caim, o renegado, enviado para longe de casa como solução dos problemas, fechado para sempre em sua rejeição. Ao se tornarem adultos se mantém opostos, um escolhe a disciplina exagerada, o outro transforma a vida em uma festa onde todos pagam a conta. Mas Hatoum vai além, transformando lentamente os gêmeos, alternando qualidades e defeitos, distintos porém devastadores, nas personalidades que construiu completamente opostas, a ponto de não se reconhecerem em absolutamente nada além da aparência física que os une - esta também rompida por Omar ao deixar uma cicatriz no rosto de Yaqub. Assim como Caim, Yaqub se vinga, mas é Omar, tão ou mais responsável pela destruição da própria família, quem sofre a pena final de ser um fugitivo vagando sem rumo pelo mundo. Yaqub, apartado da casa e da vida que deveriam ter sido suas, refaz a vida distante, não sendo capaz de perdoar o irmão e atender o último pedido da mãe. Também Omar nunca pede perdão pelas vidas que destruiu.

Mas "Dois irmãos" não é apenas sobre estas vidas divididas que deixaram seu rastro de guerra sobre toda a família. É também um livro sobre imigrantes libaneses, Halim e Zana, pais dos gêmeos e de Rana. Sobre como chegaram e viveram, construindo do outro lado do mundo um pedaço da sua terra, ressignificando o mundo tropical com suas tradições, comendo peixe frito com Arak, mesclando o português com o árabe, se apegando a objetos que lembram o que ficou no Líbano, enfim, todas as pequenas e grandes coisas que não se localizam geograficamente senão pela ação dos deslocadas. Zana é a mãe superprotetora de Omar, que deixa a criação de Yaqub a cargo de Domingas, a índia que serve a família numa quase escravidão. A matriarca zela por três coisas em sua vida: sua casa, a memória do pai, e seu filho Omar. Sacrificará todo o resto para manter estas três coisas intocadas e próximas de si, mas acaba por abrir mão até das duas primeiras para satisfazer o filho. Halim é o pai que nunca quis ter filhos. Um imigrante simples que desejava ganhar apenas o suficiente para passar a vida em um amor erótico com a esposa, jogando e bebendo com os seus. Abriu um comércio onde recebia mais amigos que clientes, assim era feliz. Porém os filhos mudaram tudo, os gêmeos tiraram-lhe a paz com Zana, abalando para sempre o amor carnal que tanto os fazia feliz; Rana, a filha mais nova, acaba por tomar conta dos negócios do pai e transforma sua pequena venda de bugigangas em uma grande loja, saem os amigos e entram os clientes, uma apaixonada pelos negócios e astuta na arte de lucrar. Halim vai se retirando de cena na própria casa, virando um recluso na própria vida. Na loja fica apenas com uma salinha de onde olha a rua, lembrando e esquecendo de si, culpando os filhos pela vida que teve.

Domingas, inicialmente uma personagem secundária, vai crescendo na trama e se torna peça chave no enredo. É uma índia que ao se tornar órfã foi entregue a um orfanato católico, onde aprendeu a rezar e trabalhar. Seu sonho revoltado contra a instituição é o desejo de um novo destino, que acaba sendo a casa da família. Ali seu martírio continua, ainda sem liberdade, rezando e servindo dia e noite, acordando madrugadas seguidas para cuidar de Omar depois de suas bebedeiras. É também a mãe do narrador, Nael, filho de um estupro ou de um amor proibido tolerado em segredo na casa. Nael, o narrador, é outro caso à parte. Temos, em meio a tanta intensidade, uma narração que ao mesmo tempo pode observar tudo e ainda está imersa na história, tem seus próprios sentimentos e conclusões. Ele é um dos explorados, uma das vítimas da casa, e isso torna a narrativa ainda mais pessoal, repleta de inconformismo e dúvida.

Difícil ser conciso ao escrever sobre um livro com tantas reflexões possíveis, mas para terminar ressalto ainda dois pontos que circulam e constroem a história: Manaus, a cidade que ao longo da trama vai deixando de ser provinciana, simples e próxima, para se tornar uma metrópole capitalista, impessoal, com grandes obras, mudança no fluxo de trabalho, demolições, e esta é uma segunda perda para os imigrantes mais velhos, especialmente Halim, como se tivesse novamente se deslocado; o outro é o estabelecimento da ditadura militar na cidade, os saraus clandestinos, a prisão do professor de literatura, sua morte, a revolta e a impotência diante da opressão, o único aspecto capaz de aproximar alguns personagens.

Das muitas formas de se compreender o mundo através de uma história familiar, Hatoum criou uma das mais interessantes possíveis. 

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Resenha: William Faulkner - Luz em Agosto

                                            

Lena Grove é uma jovem que vai caminhando do Alabama ao Mississipi em busca de Lucas Burch. Solteira e grávida ela decide ir atrás do pai da criança para se casar antes do filho nascer. Burch a deixou prometendo avisar assim que se estabelecesse; nunca mais mandou notícias. Por quatro semanas ela segue a pé atrás de uma pista até ouvir dizer que havia um "Burch" trabalhando em uma serraria de Jefferson, Mississipi. Ao chegar até lá Lena encontra Byron Bunch e percebe que, provavelmente, houve uma confusão entre os nomes Bunch e Burch. Logo descobre, porém, que Lucas Burch está na cidade, mas agora usa o nome de Joe Brown. Naquele dia, no entanto, todas as atenções estão voltadas para um grande incêndio na casa de Joanna Burden, uma mulher solitária que é ignorada há décadas em Jefferson por ser descendente de uma família abolicionista que veio do norte

Byron Bunch é um homem pacato e com certa fobia social, trabalha incansavelmente e faz horas extras na serraria aos sábados. Nos domingos viaja 30 km para reger o coral de uma igreja. Seu único amigo é Gail Hightower, um pastor aposentado há décadas, expulso da igreja após o suicídio da mulher. Hightower vive sozinho e depois de anos de perseguições morais e físicas passou a ser quase um fantasma na cidade, mal saindo de casa. Ele chegou a Jefferson logo após o casamento, fez tudo para vir à cidade onde o avô morreu durante a guerra civil. Avô que lhe era quase uma obsessão: um soldado que morreu de forma prematura e estúpida (levou um tiro enquanto roubava galinhas). Mesmo depois dos escândalos pelos quais passou em Jefferson o ex-pastor não quis se mudar, continuou ali, resistindo, até ser esquecido e passar a ser apenas uma sobra do passado na cidade.

Joe Brown, ou Lucas Burch, a quem Lena procura, vive em uma cabana nos fundos da casa que fora incendiada. Vendia uísque contrabandeado em sociedade com o misterioso Joe christmas, o protagonista da história. A história de Christmas começa ainda no orfanato onde descobre que apesar de sua pele branca ele tem sangue negro (fato que não fica claro se verdadeiro ou não, mas é uma verdade que Christmas assume). Logo na infância começa a ser perseguido por uma professora que pensa ter sido descoberta por ele enquanto dormia com um funcionário, ela faz de tudo para que ele seja enviado para um orfanato de negros. Depois é adotado pelo fanático religioso McEachern e sua esposa, passando a infância e adolescência em uma fazenda com o aprendizado da dor e da punição. O ódio e o completo desprezo a qualquer tipo de compaixão, inclusive própria, são o resultado disso. Alguns dos momentos mais raivosos da juventude de Christmas são exatamente contra a mãe adotiva que tenta ser carinhosa e cúmplice dele. O que mais lhe assusta é a possibilidade de que ela o faça se comover. Christmas então se apaixona por uma prostituta que vive na cidade, e por causa dela acaba dando uma cadeirada na cabeça do pai adotivo e fugindo. Passa anos vivendo com negros em comunidades até que chega a Jefferson e conhece Joanna Burden. Ela é mais velha e eles têm um caso completamente doentio marcado por violência e mistérios de ambas as partes. No dia do incêndio em sua casa ela é assassinada, aparentemente por Christmas.

Seu assassinato não havia causado nenhuma comoção em Jefferson, principalmente por ser uma abolicionista (chamavam-na de Yankee). Tudo muda quando descobrem que Christmas, o principal suspeito, possui sangue negro, o que torna sua punição uma questão de honra para a cidade. Quem traz a informação até o xerife é Brown (ou Burch), que está interessado na recompensa. A esta altura Lena ainda não o viu, mas está sendo amparada por Byron Bunch, que se apaixonou por ela mas mesmo assim  prometeu levá-la até o pai da criança para se casarem.

A perseguição policial a Christmas o leva em fuga até a cidade de Mottstown, onde é preso. Lá vive um casal de idosos, os Hines, que são os verdadeiros avós de Christmas. A filha deles (mãe de Christmas) morreu no parto quando seu pai, Doc Hines, se recusou a procurar um médico, por ela ter engravidado de um artista de circo, morto por Doc, um mexicano que, segundo o dono do circo, tinha sangue negro. O neto é odiado pelo avô antes mesmo de nascer e a morte da filha lhe parece justa pelo pecado que cometeu. A avó tenta cuidar do neto, mas ele o leva para um orfanato onde passa a trabalhar como porteiro para vigiar a criança. Assim que ficam sabendo que o neto está preso, trinta anos depois, cada um tem uma atitude distinta. O avô passa a fazer discursos públicos pelo linchamento, a avó tenta de alguma forma salvá-lo. Os dois vão então até Jefferson, onde seria realizado o julgamento.

Christmas é levado a Jefferson, mas consegue fugir para a casa de Hightower. A esta altura o ex-reverendo já fez o parto de Lena Grove e ouviu os apelos da avó para que fosse o álibe de Joe Christmas. Já havia então em Jefferson uma espécie de milícia liderada por Percy Grimm, da Guarda Nacional, que seguia o caso com sede de morte caso o tribunal não condenasse à pena máxima o provável assassino. Quando Christmas foge Grimm tem sua chance e não a desperdiça. Ao entrar na casa, mesmo com os apelos de Hightower de que Joe era inocente, Grimm o mata e o castra, para ele "deixar as mulheres brancas em paz, mesmo no inferno".

Enquanto isso Byron Bunch consegue levar Lucas Burch até Lena, sem que ele soubesse do que se tratava. Ao entrar e ver a mulher com o filho nos braços ele dá um jeito de fugir novamente, desta vez pela janela. Byron havia decidido deixar a cidade, mas quando percebe que Lena está novamente sozinha ele volta. No último capítulo ambos conseguem uma carona de caminhão até o Tennesse. Byron pede continuamente a mão de Lena em casamento, mas como ela recusa continua a ajudá-la a encontrar Lucas Burch. Como se os dois fossem passar a vida juntos, viajando atrás de algo inalcançável e inútil.

Joe Christmas é uma mistura de herói e anti-herói. Tudo nele tem certo exagero, um personagem absurdo, como sua vida, como o racismo e o conservadorismo da sociedade americana da época. Ao mesmo tempo em que assume sua condição de negro ele se mantém racista: era natural odiar os negros, mesmo que você fosse um deles, como neste diálogo imaginário com a mãe adotiva: "Escute. Ele diz que criou um blasfemo e um ingrato. Eu a desafio a lhe dizer o que ele criou. Que ele criou um crioulo embaixo do próprio teto, com sua própria comida em sua própria mesa".  Todos os personagens são solitários, exilados, abandonados, amargos ou com esperanças vazias. O fanatismo é o pano de fundo, é o que justifica praticamente tudo que acontece, como se fosse a única coisa certa e regente no mundo que recebe o bebê de Lena Grove. Um retrato amargo e realista do sul dos Estados Unidos à época, ainda abraçado ao cadáver quente da guerra civil. Todas as mazelas sociais recaem sobre os personagens de Luz em Agosto, todos são alguma face sombria de sua época. Os dramas pessoais são perfeitamente construídos, como os de Hightower. A imensidão épica que ele dava ao avô, soldado confederado, o faz ficar eternamente preso ao passado, delirando com histórias que lhe fazem criar um filtro psicológico para a realidade e o levam ao imobilismo. Assim como Christmas, todos são um pouco caricatos, e este exagero parece uma escolha, Faulkner cria com tanto detalhismo as vidas de seus personagens, dá-lhes uma forma de pensar tão particular que é como se os víssemos por dentro de uma forma em que não podemos julgá-los por conhecermos tanto seus pontos fracos. Entramos em suas misérias particulares, vemos seus medos, suas limitações, principalmente as limitações. Em resumo, é possível enxergar o porquê deles entenderem o mundo de determinada forma. Daí todos ficarem um pouco exagerados, porque olhamos de perto demais.

A narrativa em Luz de Agosto segue o fluxo de consciência dos personagens. Não há onisciência, mesmo o narrador em terceira pessoa só conhece a história até o ponto em que o personagem a conhece, deixando inclusive lacunas que outros personagens podem vir a cobrir. Christmas, por exemplo, nada sabe sobre sua primeira infância, e o leitor também não, o que só mudará quando aparecerem seus avós. Os personagens são a narrativa. O narrador, no entanto, a organiza e a constrói. Porém, diferentemente de James Joyce em Ulisses e do próprio Faulkner em Enquanto Agonizo, a consciência não domina a linguagem. Neste Faulkner a linguagem do narrador molda a vida dos personagens ao contar suas histórias. Ela explica e amplifica os sentimentos, dá-lhes uma forma artística sem deixar de ser prosaica. Faulkner parte da consciência de seus personagens e a lapida, diferentemente do que faz, como citado, em Enquanto Agonizo, onde ele deixa que os personagens construam a narrativa. Seguem abaixo alguns exemplos:

(Joe Christmas e a mãe adotiva)
Não era o trabalho duro que ele odiava, nem o castigo e a injustiça. Estava acostumado a isso antes mesmo de ter visto qualquer um deles. Não esperava menos, e por isso não se sentia ultrajado nem surpreso. Era a mulher: aquela bondade suave da qual se acreditava condenado a ser a vítima eterna e que odiava mais do que a dura e implacável justiça dos homens. "Ela está tentando me fazer chorar", pensava, deitado frio e rígido na cama, as mãos atrás da cabeça e o luar caindo sobre o corpo, ouvindo um murmúrio constante da voz do homem como se ela subisse a escada para o primeiro estágio a caminho do céu. "Estava tentando me fazer chorar. Aí ela acha que eles teriam me submetido".
p. 150

Percebe-se então que a narrativa e a voz de Christmas se completam, o personagem exemplifica o que o narrador explica. Já em outros trechos, como o descrito abaixo, o próprio personagem pode se explicar por completo:

(conversa entre Hightower e Byron Bunch)
"Por que você passa as tardes de sábado trabalhando na fábrica enquanto outros homens estão se divertindo na cidade?"(...).
"Não sei", disse Byron. "Acho que a minha vida é esta mesmo".
"E eu acho que a minha vida é esta mesmo, também", disse o outro. "Mas agora sei por quê", Byron pensa. "É porque um sujeito tem mais medo do problema que poderá vir a ter do que do problema que já tem. Ele se agarrará ao problema a que está acostumado em vez de arriscar-se a uma mudança. Sim. Um homem falará sobre como gostaria de escapar dos vivos. Mas são os mortos que lhe causam dano. É dos mortos que jazem quietos num lugar e não tentam agarrá-lo que ele não pode escapar".
p. 67

No trecho abaixo há apenas uma pequena interferência de Hightower em meio ao trabalho do narrador (e por sinal uma intervenção do narrador quando Hightower está falando/pensando), o modo como se organiza a memória, detalhista e precisa. O ex-pastor escuta de sua casa os sons da cerimônia e lembra como era em sua época, misturando passado e presente para formar uma coisa única, atemporal, onde sobrevive:

Esperando, observando a rua e o portão da janela do estúdio às escuras, Hightower ouve a música distante no momento em que ela começa. Ele não sabe que a espera, que todas as noites de quarta-feira e domingo, sentado à janela escura, ele espera que ela comece. Sabe quase o segundo em que deve começar a ouvi-la sem recorrer ao relógio de bolso ou o de parede. Ele não usa nenhum dos dois, já não precisa deles há vinte e cinco anos. Vive dissociado do tempo mecânico. Mas por essa razão ele nunca o perdeu. É como se no seu subconsciente ele produzisse, sem querer, as poucas cristalizações de instâncias estabelecidas pelas quais sua vida morta no mundo real fora governada e ordenada um dia. Sem recorrer a relógio ele poderia saber imediatamente, pelo pensamento, precisamente onde, em sua vida antiga, ele estaria e fazendo o quê entre dois momentos fixos que marcavam o começo e o fim do serviço dominical matinal e do serviço dominical noturno e do serviço de oração na quarta-feira à noite; precisamente quando estaria entrando na igreja, precisamente quando estaria trazendo para um desfecho calculado a oração ou o sermão. Assim, antes de o crepúsculo ter desvanecido por completo, ele está dizendo para si mesmo '
Agora eles estão se reunindo, se aproximando pela rua lentamente e virando para entrar, saudando-se uns aos outros: os grupos, os casais, os solteiros. Uma ou outra conversa informal na própria igreja, em voz baixa, as senhoras de sempre um pouco sibilantes com leques, acenando com a cabeça para as amigas que chegam enquanto passam pela nave. A srta. Carruthers (ela era sua organista e já morrera há quase vinte anos) está entre elas; logo ela se levantará e entrará no balcão do órgão' Reunião para orações no domingo à noite. Sempre lhe pareceu que naquela hora o homem chega mais perto de Deus, mais perto do que em qualquer outra hora de todos os sete dias. Só então, entre todas as reuniões religiosas, existe algo daquela paz que é a promessa e o fim da igreja. A mente e o coração se purgavam então, se assim devesse ser; a semana e seus desastres, quaisquer que eles fossem, terminados e somados e expiados pelo furor duro e formal do serviço matinal; a semana seguinte e seus possíveis desastres ainda não nascidos, o coração aquietado agora por algum tempo sob o fresco e suave sopro da fé e esperança".
p.319a

Em relação ao título, sempre me pareceu haver uma relação entre "luz" e o nascimento do filho de Lena. Há uma aparente releitura do nascimento de Cristo, até alguma semelhança, como entre a cabana onde ela dá a luz e a manjedoura, ou os três personagens que estavam com ela no momento (os Hines e Hightower) com os três reis magos, e além de tudo o nome de seu outro personagem, Christmas. Até mesmo a capa da edição brasileira mais recente, da Cosac Naify, mostra uma sombra sobre uma adolescente, mais especificamente a barriga de Lena Grove. De toda forma algumas pesquisas me indicaram que o próprio Faulkner refutava esta relação e dizia que em agosto, no Mississipi, em alguns dias a luz do sol lhe dava a impressão de que estava em outra época, uma época clássica, como a Grécia antiga.

Luz em Agosto é um clássico maiúsculo. Impossível não se sentir inserido na história americana, além da usual aula de técnicas literárias que Faulkner nos proporciona. 


FAULKNER, W. Luz em Agosto. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Resenha: João Cabral de Melo Neto - Auto do Frade

O poema dramático de João Cabral de Melo Neto sobre Frei Caneca relata o último dia do carmelita condenado à morte por sua atuação republicana, mais especificamente como um dos líderes da Confederação do Equador. Apesar do forte conteúdo histórico-político a narrativa é totalmente centrada na ação, na reconstrução dos momentos percorridos por Caneca da prisão até a execução da sentença. Como é um auto, a poesia se desenvolve como estrutura teatral, cada personagem em seu espaço narrativo. Destacam-se então a voz do povo, as vozes oficiais, e a do próprio frei. A mistura de todas as impressões, — geralmente opostasm já que a maioria nas ruas estava ao lado do condenado e a voz oficial, inquisitiva e protocolar, aliados ao lirismo lúcido e contestador de Caneca mesmo à beira da morte — constroem um quadro belo e doloroso daquela tarde que enquanto acontecia já parecia destinada à história.

A interpretação dos atos mais simbólicos geralmente se dá pelos comentários dos populares, que enchiam as ruas do Recife. Como na cena da excomunhão em um ritual público onde lhe vestem a batina e depois a arrancam, para assim entregar à justiça um homem comum, e não um padre.

“ —  Quando tiravam alguma coisa,

vinham o incenso e a água benta.

— Não era o frade a quem benziam,

estavam benzendo era a prenda.

 — Queriam limpá-la do frade

e do diabo, se estava prenha.

— Queriam lavá-de tudo,

do frade, do diabo e suas lêndeas.”

Mais raras são as reflexões do próprio frei, porém oferecem uma perspectiva intimista, um ponto de vista pessoal de quem se notava pelo pensamento público:

“O raso Fora-de-Portas

de minha infância menina,

onde o mar era redondo,

verde-azul, e se fundia

com um céu também redondo

de igual luz e geometria!

Girando sobre mim mesmo,

girava em redor a vista

pelo imenso meio círculo

de Guararapes a Olinda.

Eu era um ponto qualquer

numa planície sem medida,

em que as coisas recortadas

pareciam mais precisas,

mais lavadas, mais dispostas

segundo clara justiça.

Era tão clara a planície,

tão justas as coisas via,

que uma cidade solar

pensei que construiria.”

O povo está nas ruas, e está ao lado do frei. Paira no ar uma consternação indignada, ao mesmo tempo em que há uma esperança de que chegue a qualquer momento, por água ou por terra, um indulto do imperador. Esperanças que vão morrendo aos poucos conforme passam as horas, ou quando se convencem que o imperador sequer sabe onde fica Pernambuco. O burburinho das ruas, que se avoluma cada vez mais enquanto o seguem como em uma procissão, incomoda muito os oficiais, como se prestes a haver uma revolta para libertá-lo. Ao chegarem à forca as ordens são de que o executem logo, mas com que carrasco? Todos se recusam a matá-lo, pois rondava na cidade a lenda de que a Virgem Maria foi vista sobrevoando a cidade e pedindo que não lhe enforcassem o afilhado. Nem mesmo outros condenados à morte, para os quais é oferecido indulto em troca de realizar o serviço sujo, aceitam. Sentado ao pé da forca Caneca espera. Sem sucesso os oficiais são obrigados a chamar um pelotão de fuzilamento para cumprir a pena. Este é um fato muito simbólico. O frei foi condenado como um criminoso comum, por isso seria enforcado. A tentativa de desmoralizá-lo ruiu ao terem de recorrer ao fuzilamento. Morrer fuzilado era quase uma honra militar, uma redenção, um ato heróico. Fuzilá-lo era como ratificar sua posição de mártir.

Por fim morre Caneca, com doze tiros. A cena da morte é narrada através de seu pai, que está em um bairro onde não pode ver, apenas ouvir o que acontece no Forte. Ao som dos tiros da tropa ele volta para o quarto onde passou dias rezando e acendendo velas a todos os santos. Apaga todas, joga as flores no lixo, recolhe os santos e os joga ao mar.

Ainda sobre o pai, foi por ele que Joaquim do Amor Divino Rabelo se tornou Caneca.

“ — Por que o chamam sempre Caneca

se se chama mesmo é Rabelo?

— Frei Caneca é o filho maior

de um certo Rabelo tanoeiro;

ao pai, por sua profissão,

chama-o Caneca o povo inteiro.

E o filho quando se ordenou

quis levar a alcunha do velho.

— Por que não deixou para um lado

esse apelido de Caneca?

Ser do Amor Divino era pouco

para dignificar quem ele era?

— Não quis esconder que seu pai

um simples operário era,

nem mentir parecendo vir

das grandes famílias da terra.”

Um personagem histórico vivido por um personagem literário. Uma reinterpretação, uma reconstrução pela poesia como se fosse a ciência da linguagem, típica de João Cabral.

O poeta escolhe o lado e recria esta faceta rígida e lírica, totalizante ao mesmo tempo que se baseia em vozes soltas. Uma espécie de monumento de representação dos vencidos, este é o admirável paradoxo.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Juan Rulfo - Pedro Páramo



Uma narrativa que mistura memórias e poesia como poucas. Pedro Páramo é uma saga em precisas 130 páginas. Histórias tristes se misturam a desejos de vingança, servidão, amores paranóicos, violência e busca. A história sofrida de Comala muito se assemelha com a de toda a América Latina longe das capitais e do poder constituído (geralmente ocupado pelo coronelismo). 

Juan Preciado é um filho de mãe solteira que após a morte dela vai em busca de seu pai, Pedro Páramo, no povoado de Comala, México. Lá encontra uma procissão de mortos que lhes contam todas as desventuras de seu pai, um coronel implacável, de formas que variam de acordo com cada narrador. Depara-se inclusive com as memórias do próprio pai. Este "recurso narrativo" de utilizar os mortos não nada tem de espírita ou sobrenatural. Na verdade a escolha pelos mortos parece precisamente o oposto disso: como se os mortos já não temessem a verdade, como sempre o fizeram em vida, sendo eles os únicos com autonomia para relatar com precisão. Por outro lado mostra que a condenação daquele povo é eterna, que mesmo depois de mortos estão presos àquele sistema, àquela terra quente e sem esperanças, interpelando os vivos que passam por ali para que rezem por eles. E, porque não, para contar como foram algumas das mortes sob o ponto de vista mais claro, o do morto.

O contra-ponto da história de opressão de Pedro Páramo é, de certa forma, Susana San Juan, mulher que ele amou no fim da vida e que, mesmo que minimamente, lhe fez ter consciência de suas fraquezas. 

A narração é completamente não-linear, mas é fácil perceber a mudança de personagens, ou de perspectiva. Um mesmo personagem pode contar a sua história, como num relato de infância com os verbos no tempo presente, ou contar suas memórias, no pretérito. As vozes vão do coronel Páramo até senhoras simples que viveram suas vidas enclausuradas à espera de dias melhores ou de amores impossíveis. 

É fácil perceber a influência desta obra em clássicos como Cem anos de solidão. Aliás, Comala, assim como Macondo, me lembraram muito o interior de Minas Gerais, afinal "América Latina" é isso aí. 

Pode ser um exercício interessante comparar as técnicas narrativas de escritores que tratam de realidades tão próximas abordando-as de maneira tão distinta (ou seguindo "escolas literárias" diferentes) como Garcia Marquez, Juan Rulfo, Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa, etc. 

Um trecho que exemplifica bem a narrativa poética de Juan Rulfo:
"Pedro Páramo viu como os homens iam embora. Sentiu desfilar na sua frente o trote de cavalos escuros, confundidos com a noite. O suor e o pó; o tremor da terra. Quando viu os pirilampos cruzando outra vez suas luzes, percebeu que todos os homens tinham ido. Só restava ele, como um tronco duro começando a se despedaçar por dentro" (p. 120).

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Resenha: Água viva


Ganhei este livro no fim de 2010, em um amigo secreto. Clarice Lispector era uma das minhas grandes lacunas literárias, que ainda são muitas. Só conhecia alguns contos dela que saíram naquelas coletâneas escolares, e não havia lido nenhum romance. Conhecia um pouco dela pelo livro de cartas com o Fernando Sabino, "cartas perto do coração", e algumas entrevistas. E comecei quase por um anti-romance. Um livro sem linearidade, sem cronologia, sem capítulos. Eu adoro essas estruturas caóticas, desde que não sejam incompreensíveis, que possuam ao menos alguma ordem possível de se construir por trás de tudo, senão vira arte pela arte. Aqui a narrativa é muito espontânea, muito livre. E na verdade todo ele gira em torno disto, já que praticamente não há história, apenas um longo relato, uma carta da protagonista, uma pintora, para um homem que não se define bem quem é. 


"Sei o que estou fazendo aqui: estou improvisando. Mas que mal tem isto? improviso como no jazz improvisam música, jazz em fúria, improviso diante da platéia" p. 21.



"Isto não é história porque não conheço história assim, mas só sei ir dizendo e fazendo: é história de instantes que fogem como os trilhos fugitivos que se vêem da janela dos trens". p. 67



Me parece que ela tenta fazer a narrativa seguir a mesma lógica das reflexões que constrói. Parece óbvio, mas não é. É preciso ajustar o ritmo da escrito ao ritmo dos pensamentos, usando metáforas e histórias mais selvagens ou mais calmas, sincronizando sempre forma e conteúdo. Usando as metáforas não apenas como exemplos ilustrativos, mas em uma sucessão caótica, desordenada, e vai construindo pictoricamente - como uma pintora faria em uma tela - o momento, um estado psicológico quase "primitivo", atrás de sensações perdidas, ou não entendidas. 



"Estremeço de prazer por entre a novidade de usar palavras que formam intenso matagal. Luto por conquistar mais profundamente a minha liberdade de sensações e pensamentos, sem nenhum sentido utilitário: sou sozinha, eu e minha liberdade. (...) Esta minha capacidade de viver o que é redondo e amplo - cerco-me de plantas carnívoras e animais legendários, tudo banhado pela tosca e esquerda luz de um sexo místico. Vou adiante de modo intuitivo e sem procurar uma idéia: sou orgânica. E não me indago sobre os meus motivos. Mergulho na quase dor de uma intensa alegria - e para me enfeitar nascem entre os meus cabelos folhas e ramagens" p. 22.



Enfim, é um romance da espontaneidade, sem ensaio, algo como um desabafo organizado. Outra técnica interessante que ela usa às vezes é que os sentidos vão se ligando, o fim de uma frase traz um conceito que dá início a outra frase, parágrafo, tema, como em um jogo. Por exemplo: 

"O excesso de mim chega a doer e quando estou excessiva tenho que dar de mim como o leite que se não fluir rebenta o seio. Livro-me da pressão e volto ao tamanho natural. A elasticidade exata. Elasticidade de uma pantera macia. 
Uma pantera negra enjaulada. Uma vez olhei bem nos olhos de uma pantera e ela me olhou bem nos meus olhos. Trasmutamo-nos. Aquele medo."p. 73. E assim vai. 



Por não ter uma "história" clara, definida, parece que o livro poderia continuar sendo escrito e lido para sempre, sem ter um fim. Ela mesma deixa isso claro: 



"O que te escrevo é um 'isto'. Não vai parar: continua". p. 87



Além de tudo - me foquei basicamente nos aspectos narrativos - as reflexões dela-personagem são ótimas, vale bastante a leitura.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Resenha: Junta-Cadáveres


O uruguaio Juan Carlos Onetti parece estar sendo descoberto apenas agora no Brasil, inclusive por mim, em edições muito bem-feitas pela Planeta. Como destacado no prefácio, ele sempre seguiu uma tendência um pouco diferenciada da maioria dos autores latino-americanos, distanciando-se do realismo fantástico e do regionalismo, o que talvez explique um pouco o fato. Sobre as edições citadas destaco as capas de "Junta-Cadáveres" e "O Estaleiro", e o prefácio de Francisco Dantas, importantíssimo para introduzir e dimensionar a obra do uruguaio.

A estrutura da narrativa de Onetti é muito bem construída e inovadora. Em "O Estaleiro" quem conta a história é uma espécie de "voz coletiva", que narra e julga as atitudes de Larsen e dos outros personagens. Não se escondem intenções e preferências, e essa parcialidade explícita leva a voz narrativa a ser julgadora e julgada, bem como o personagem, em todos os seus atos. Em "Junta-Cadáveres" o narrador é Jorge Malabaia, garoto de dezesseis anos que vive em Santa Maria, cidade fictícia onde são ambientados todos os romances do autor, dividida em uma cruzada moral contra a instalação de um prostíbulo na cidade. O foco porém não é único, as passagens vão de primeira a terceira pessoa de acordo com o capítulo, e algumas vezes a introdução de uma primeira pessoa introspectiva em cada personagem transforma a narrativa em uma grande teia, cobrindo todas as possibilidades de se enxergar aquela sociedade, e as pessoas, por fora e por dentro.

De toda forma o que mais me atraiu na narrativa de Onetti foi o seu modo peculiar de descrição. É muito comum percebermos e entendermos uma cena apenas pelos gestos de seus personagens, o corpo refletindo pensamentos, sensações, através de movimentos, como na parte a seguir, onde Jorge caminha pela noite depois de se encontrar com Julita, confuso e insatisfeito com poemas que escreveu:

"Empurro o portão e pego a estrada; mas não tenho realmente vontade de ir, de repetir hoje a comédia noturna com o velho Lanza. Vou indo com as mãos nos bolsos da capa de chuva, cuidando para que os ombros fiquem soltos, abandonados, tentando fazer com que os braços não participem do esforço da marcha, evitando às vezes com trabalho e alarme os buracos cheios de água, pisoteando-os outras vezes com raiva. O nariz aberto para tentar descobrir a origem (a forma da árvore, o monte de lixo, da cova ou esconderijo sombrio) de cada cheiro de fim de verão que a noite úmida apodrece e adocica; a cabeça erguida naquele ângulo que indica o desespero e a vontade de assimilá-lo, aquele ângulo exagerado, viril e doloroso que determina a queda da boca e das pálpebras. Vou indo - a passos largos pelo caminho que sobe e desce e que parece virar continuamente para a direita, em espiral - porque tenho muita vontade de fazer a outra coisa; subir para comer e inclinar-me, mastigando, consciente do brilho da gordura nos lábios, sobre a estupidez desolada dos quatro versos sem destino, que não deviam ter-se formado, de cuja inútil introdução no mundo sou responsável e que não posso tirar da memória" (p. 75)

Jorge, o narrador, é um jovem que vive na cidade e observa os acontecimentos: a criação e a luta contra o prostíbulo de Junta-Cadáveres. Enquanto isso vive encontros proibidos com Julita, viúva de seu irmão, que enlouqueceu e parece confundir o irmão morto com o vivo. Por influências familiares acaba sendo levado a participar da queda da casa da orla, como é chamado o lugar onde vivem Junta e as três mulheres. Marcos, irmão de Julita, e o padre Bergner, tio de Marcos, são os maiores inimigos da casa de prostituição, além das estudantes e quase todas as mulheres da cidade. Do outro lado temos Larsen, o Junta-Cadáveres, e o médico Díaz Grey. Larsen é um homem visto por toda a sociedade como de moral questionável, um aventureiro, que sempre sonhou em montar o prostíbulo perfeito, mas conseguiu recrutar apenas três prostitutas de idade avançada. Díaz Grey é um médico velho e decadente, que do alto dos anos passados em uma cidade pequena e sem saída, olha para o passado, para as pessoas que ajudou a nascer, com certo desgosto, amargo pelo que se tornou, e esperançoso no que poderia ter sido, como no trecho a seguir, em que se imagina vivendo outra vida:

"Em vez do perfume dos jasmins amarelos e pisoteados, daquele que o vento traz do rio, daquele que flutuará sempre, imóvel, na sombra da minha escada, um cheiro composto e respirado no meio da tarde num café, numa cidade populosa que nunca vi. O mais Díaz Grey dos Díaz Grey está sentado numa mesa, sozinho, sem esperar ninguém. Não é um café familiar, não muito luxuoso nem muito pobre, tem janelas que dão para uma avenida larga e mal-lavada.

Díaz Grey fuma, com o corpo em abandono, um pouco suado, fresco e cálido por essa leve umidade das caminhadas nos finais de primavera; apóia o cigarro na borda de uma xícara para soltar a cinza. Alguém varre e esparrama serragem atrás do balcão; deixaram abertos os mictórios e um cheiro de sexo e amoníaco, de caracóis mortos esfrega-se contra o piso, contra o cheiro de serragem molhada. Da janela chega o cheiro de nafta da rua e o de jornais recém-impressos; há também um perfume de mulher, intenso, suave, com uma intenção que não consegue se concretizar.

Sem dúvida, nada disso tem sentido nem importância; de qualquer modo, vou subindo com cautela a escada em sombras com uma tênue inveja do suposto Díaz Grey, com os olhos fechados e o nariz inquieto, tentando reunir e respirar os diferentes cheiros que formam o cheiro que lhe convém" (p. 127)

Enfim, um livro para ser lido por diversos motivos, o antagonismo social e moral, as certezas que se tornam perigosas e munição para guerra, o radicalismo de idéias, a vida dissecada de uma sociedade fechada, a variação de personalidades do público para o privado, e principalmente, a meu ver, as descrições e construções narrativas, únicas.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Resenha: homem comum


Em matéria de descobertas literárias o ano de 2010 tem sido esplêndido. Li neste ano alguns dos melhores livros de minha vida, e quatro em especial são de autores que até então eu não havia lido nada: Ernesto Sábato (O Túnel), Cormac McCarthy (Todos os belos cavalos), Juan Carlos Onetti (O Estaleiro), e Philip Roth, com "homem comum", livro sobre o qual escrevi abaixo algumas impressões.

"Homem comum" é um livro completamente arrasador. Daqueles que te fazem parar quase de página em página e pensar na própria vida. Não que te ensine algo, mas pela forma familiar de construir lembranças. A história começa no enterro do protagonista e termina com sua morte. Philip Roth se debruça sobre o que há de mais triste e inevitável na existência humana. O livro não é nada além disso: morte, pessoas unidas à espera da morte, decadência, espera, arrependimento. Aliás, a única parte viva deste romance, a única em que os personagens criam, vivem intensamente, e não se preocupam com o amanhã, é narrado em forma de memórias, portanto terreno fértil para arrependimentos e crises.

Roth constrói de maneira muito fluida e natural sua narrativa, e às vezes nem parece que trata de um tema tão áspero. Ao mesmo tempo em que segue uma prosa simplificada e sintética ele intercala considerações reflexivas fortes, porém, em nenhum momento, pedantes (como "Para quem provou a vida, a morte não parece nem sequer natural"). Consegue reunir as melhores reflexões de uma escrita clássica em uma narrativa contemporânea e passível de ser lida por qualquer um, misturado a uma dose de realismo.

Outro traço marcante é a relação com os pais. A variação de momentos mais fortes do livro é entre a velhice terminal do protagonista e a morte de seus pais. É interessante como ele constrói essa mudança de paradigma, primeiro:  "o que será deles", e depois, num amargo amadurecimento, "o que será de mim". Uma das coisas que mais me agradou foi justamente a perfeita descrição da decadência do corpo e da carne como justificativa para a decadência psicológica do ser humano.

Tenho a impressão de que este romance/novela é exatamente o que penso de arquétipo de um romance moderno (não no sentido de modernismo, mas de contemporaneidade).

Um trecho para exemplificar a leve narrativa do pesado tema da obra. Neste momento ele visita o túmulo dos pais:

"Eram apenas ossos, ossos dentro de uma caixa, mas os ossos deles eram dele, e ele aproximou-se dos ossos o máximo que pôde, como se a proximidade pudesse estabelecer um vínculo com eles e atenuar o isolamento causado pela perda do futuro e religá-lo a tudo o que havia ido embora. Durante uma hora e meia, aqueles ossos foram a coisa mais importante no mundo. Eram tudo o que importava, a despeito do ambiente de decadência daquele cemitério abandonado. Na presença daqueles ossos, ele não conseguia se afastar deles, não conseguia não falar com eles, não conseguia fazer outra coisa senão ouvir o que eles diziam. Entre ele e aqueles ossos muita coisa aconteceu, muitos mais do que agora entre ele e os que tinham carne em torno de seus ossos. A carne vai embora, porém os ossos permanecem. Os ossos eram o único consolo que restava para alguém que não acredita na vida após a morte e sabia, sem nenhuma dúvida, que deus era uma ficcão, e que aquela vida era a única que ele teria". (p. 123-124)

E um segundo trecho, onde ele pensa sobre como fora o suicídio de uma de suas amigas de velhice, Millicent Kramer. Espero não ser muito longo:

"Quando acordou, no meio da noite, acendeu todas as luzes, bebeu um copo d'água, escancarou uma janela e ficou andando de um lado para o outro para recuperar o equilíbrio, porém, por mais que tentasse pensar em outra coisa, só conseguia formular uma única pergunta: como fora seu suicídio? Num impulso, engolindo todas as pílulas antes que mudasse de idéia? E, depois que as engolira, teria gritado que não queria morrer, que só não queria continuar sofrendo aquela dor paralisante (...) teria gritado que só queria que Gerald estivesse ali para ajudá-la e lhe dizer para aguentar firme, para lhe garantir que ela conseguiria suportar e que estavam juntos para enfrentar tudo? (...) Ou teria agido com frieza, convencida, por fim, de que estava fazendo a coisa certa? Teria agido sem pressa, segurando o frasco com as duas mãos, pensativa, antes de esvaziá-lo na palma de uma das mãos e engolir os comprimidos um por um com seu último copo d'água, a última água de sua vida? (...) talvez sorrindo enquanto chorava e relembrava todos os prazeres, tudo o que a entusiasmava e agradara, evocando centenas de momentos comuns que não lhe pareceram importantes quando ela os vivera, mas que agora era como se tivessem existido com a intenção específica de inundar sua vida de uma felicidade cotidiana? Ou teria perdido o interesse nas coisas que estava deixando para trás? Teria ficado sem medo, pensando apenas: finalmente a dor passou, a dor finalmente foi embora, agora é só dormir e ir embora desta coisa extraordinária? (p. 118-119)