quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Orange Colored Sky


O que eu mais gostava em São Paulo? Os bares. A profusão deles, os azuleijos, o fato de serem quase todos iguais - porque não há nada pior do que entrar em um bar sem saber muito bem como ele funciona, se o garçom vem na mesa, se você pede no balcão, que horário tem comida, etc. Sendo todos iguais não tinha erro, você sempre estava em casa em qualquer um.

O que não gostava? Principalmente de fatores ligados a locomoção. Os motoristas que não dão seta nunca, o trânsito dos pedrestres vagarosos no centro, a impossibilidade de se ir a pé a muitos lugares - o que eu geralmente ignorava. Mas na boa, nada tão sério.

Bom, valeu a todo mundo. Vocês me ajudaram a construir nesses sete anos uma vida, no mínimo, mais eclética do que eu poderia imaginar quando cheguei aqui. E foi foda pra caralho.
Boa sorte pra todos vocês.
Ah, e dêem notícias, seus putos.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Revolução Francesa


OS OLHOS DOS POBRES

Quer saber por que a odeio hoje? Sem dúvida lhe será menos fácil compreendê-lo do que a mim explicá-lo; pois acho que você é o mais belo exemplo da impermeabilidade feminina que se possa encontrar. Tínhamos passado juntos um longo dia, que a mim me pareceu curto. Tínhamos nos prometido que todos os nossos pensamentos seriam comuns, que nossas almas, daqui por diante, seriam uma só; sonho que nada tem de original, no fim das contas, salvo o fato de que, se os homens o sonharam, nenhum o realizou. De noite, um pouco cansada, você quis se sentar num café novo na esquina de um bulevar novo, todo sujo ainda de entulho e já mostrando gloriosamente seus esplendores inacabados. O café resplandecia. O próprio gás disseminava ali todo o ardor de uma estréia e iluminava com todas as suas forças as paredes ofuscantes de brancura, as superfícies faiscantes dos espelhos, os ouros das madeiras e cornijas, os pajens de caras rechonchudas puxados por coleiras de cães, as damas rindo para o falcão em suas mãos, as ninfas e deusas portando frutos na cabeça, os patês e a caça, as Hebes e os Ganimedes estendendo a pequena ânfora de bavarezas, o obelisco bicolor dos sorvetes matizados; toda a história e toda a mitologia a serviço da comilança. Plantado diante de nós, na calçada, um bravo homem dos seus quarenta anos, de rosto cansado, barba grisalha, trazia pela mão um menino e no outro braço um pequeno ser ainda muito frágil para andar. Ele desempenhava o ofício de empregada e levava as crianças para tomarem o ar da tarde. Todos em farrapos. Estes três rostos eram extraordinariamente sérios e os seis olhos contemplavam fixamente o novo café com idêntica admiração, mas diversamente nuançada pela idade. Os olhos do pai diziam: "Como é bonito! Como é bonito! Parece que todo o ouro do pobre mundo veio parar nessas paredes." Os olhos do menino: "Como é bonito, como é bonito, mas é uma casa onde só entra gente que não é como nós." Quanto aos olhos do menor, estavam fascinados demais para exprimir outra coisa que não uma alegria estúpida e profunda. Dizem os cancionistas que o prazer torna a alma boa e amolece o coração. Não somente essa família de olhos me enternecia, mas ainda me sentia um tanto envergonhado de nossas garrafas e copos, maiores que nossa sede. Voltei os olhos para os seus, querido amor, para ler neles meu pensamento; mergulhava em seus olhos tão belos e tão estranhamente doces, nos seus olhos verdes habitados pelo Capricho e inspirados pela Lua, quando você me disse: "Essa gente é insuportável, com seus olhos abertos como portas de cocheira! Não poderia pedir ao maître para os tirar daqui?" Como é difícil nos entendermos, querido anjo, e o quanto o pensamento é incomunicável, mesmo entre pessoas que se amam!

(Nesse frio, só Baudelaire)

domingo, 27 de janeiro de 2008

O punhal




Numa gaveta há um punhal.

Foi forjado em Toledo, em fins do século passado; Luis Melián Lafinur deu-o a meu pai, que o trouxe do Uruguai; Evaristo Carriego teve-o uma vez na mão.
Os que o vêem tem de brincar um pouco com ele; percebe-se que há muito o buscavam; a mão se apressa em apertar o punho que a espera; a lâmina obediente e poderosa folga com precisão na bainha.

O punhal outra coisa quer.

É mais que uma estrutura feita de metais. Os homens o pensaram e o formaram para um fim muito preciso; é, de algum modo, eterno, o punhal que na noite passada matou um homem em Tacuarembó, e os punhais que mataram César. Quer matar, quer derramar brusco sangue.

Numa gaveta da secretária, entre borradores e cartas, interminavelmente sonha o punhal seu singelo sonho de tigre, e a mão se anima quando o dirige porque o metal se anima, o metal que em cada contato pressente o homicida para quem os homens o criaram.

Às vezes, dá-me pena. Tanta dureza, tanta fé, tanta impassível ou inocente soberba, e os anos passam, inúteis.


(Jorge Luís Borges).

sexta-feira, 13 de abril de 2007

O Jogo da Amarelinha - Cap. 7



Toco a sua boca, com um dedo toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a sua boca se entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e desenha no seu rosto, e que por um acaso que não procuro compreender coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que a minha mão desenha em você.

Você me olha, de perto me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de cíclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõem-se, e os cíclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do seu cabelo, enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água.

(Júlio Cortazar. O jogo da Amarelinha)

quarta-feira, 4 de abril de 2007

Buenos Aires: um domingo antigo



Buenos Aires, 03 de setembro de 2006

Não há nada como saborear a derrota do inimigo estando próximo a ele. Quando se vence em meio aos seus pares, todos são tomados por uma fraternidade, que nos traz a acomodação fácil de quem não pode ser mais atingido. O confronto acaba e você está seguro. Quando se está em meio ao inimigo, e é o vencedor há, sobretudo, um desejo secreto de anunciar aos quatro cantos uma suposta supremacia. Contenta-se, entretanto, com uma silenciosa admiração da dor alheia, e uma discreta contenção de explosão em cada trunfo. Apesar disso, me parece uma alegria mais equilibrada, e, ao mesmo tempo, extremamente sádica. Brasil 3, Argentina 0. O churrasco e a Quilmes descendo lentamente pela garganta dos que dividiam o restaurante conosco, enquanto resmungavam e movimentavam os braços. Alguns iam embora, outros chegavam. O que não mudava era a feição de velório ao olharem para os números mágicos no canto da tela. E nós dois ali, falando o bom português sem nenhum pudor, tomando docemente quilmes com fogazzas e sorrisos. 

Depois disso a cidade se calou, e tomada por uma nostalgia (talvez dos tempos em que tinham Maradona) foi toda para a feira de antiguidades de San Telmo. Havia muita coisa, mas confesso que nao me prendi a quase nada. Só me chamaram a atenção alguns casacos. Havia neles qualquer coisa de rústico com o toque nostálgico de Buenos Aires. Não, não caberia na mala, melhor sair logo daqui. Minhas pretensões, afinal, eram outras naquele domingo de sol. As ladeiras, com seus paralelepídos - cravados há 100 anos por homens que vieram do norte, e chegaram pelo que hoje é o Puerto Madeiro - , ajudavam consideravelmente a amenizar a temperatura. As barracas, a quantidade de pessoas, a subida. Quase me sentia incomodado. Mas de fato tudo isso não passava de desculpa. A verdade é que depois de tomar uma Quilmes, tudo que eu queria era tomar outra. E rumamos em busca de um lugar qualquer. Encontramos, por sorte, um bar vazio e agradável. Apoiavam os cotovelos no balcão dois senhores de idade um pouco avançada, bastante corteses. Serviram-nos sanduiches e algumas cervejas. Era um lugar escuro, numa esquina da Avenida Independência. Talvez pela quantidade de pessoas de alta idade, pela decoração, não sei ao certo, mas algo de antigo pairava no ar que respirávamos naquele ambiente, o que me fez imaginar que neste domingo não poderia fugir do saudosismo e das antiguidades. Entretanto não havia o sol, e sim as Quilmes.

Domingo, em qualquer lugar do planeta, é o dia sagrado do futebol, e apesar do providencial clássico da manhã, ainda havia Estudiantes contra alguém e River contra outro alguém. O bar logo se encheu para assistir os jogos. A atmosfera era tão simpática que nem mesmo as crianças me incomodavam. Cheguei até a achar um ou outro engraçado. Perdi levemente a noção de que a Quilmes tem um litro, e tomei aproximadamente o número de garrafas que tomaria se ela fosse do tamanho das cervejas que estou acostumado. Então, entre um copo vazio e um cheio, descobri o segredo daquele bar. Ali as horas passavam mais rápido. O tempo fluía por uma fenda própria no tempo, e nos levava com ele. Os assuntos, os gestos, os copos, certeiros e voadores, como uma bala. Tudo escorregava com agilidade entre as mesas apertadas e a meia luz. Aquela calma era justamente isso: o referencial da velocidade, a rápida leveza contra o peso que tanto dificultava a caminhada do mundo. Tão rápido que quando estava prestes a pedir talvez minha nona Quilmes, vimos o senhor levantando as cadeiras e limpando o chão. O pior, ainda era cedo. Cedo no meu relógio, e no tempo dos mortais, ali dentro já era tarde, embora eu quisesse permanecer naquela mesa por talvez uma parte da eternidade.

Talvez pela grande quantidade de cerveja, não me lembro de mais nada desta noite.

sábado, 31 de março de 2007

Buenos Aires: jazz portenho


Buenos Aires, 02 de setembro de 2006

Uma leve diferença arquitetônica, toques pitorescos de antiguidade. Cafés que mesmo ao sol do meio dia pareciam escuros e sombrios. O vento frio que balançava o cachecol, peça que nunca havia usado. Um ambiente propício para cigarros tão fortes e fumados incessantemente. A fumaça no rosto, o calor no céu da boca. Talvez eu pudesse me perder, e não conseguir me fazer entender. Talvez chegasse a algum lugar de onde não saísse, tomado por uma força magnética. Talvez odiasse tudo, ou ficasse entediado. Essa era a sensação ao me aproximar de cada esquina no primeiro passeio a pé por esta cidade. Embora no fundo eu soubesse o máximo e o mínimo que poderia encontrar. Me entregava ao que estivesse entre isto. Em geral, as simples calçadas e esquinas de um sábado frio. Era o que eu precisava.

Existem aproximadamente cinco pessoas que eu traria a Buenos Aires. Ao menos uma estava comigo. E dividir a experiência de chegar à Praça de Maio era necessário. Subia daquela praça, como de uma ilha avistada ao longe, um cheiro de esperança, misturado com uma sensação de sofrimento. As placas, as pixações, abraçavam-nos ao mesmo tempo que nos olhavam com os olhos transtornados de ódio. Uma sedução arriscada. Como uma vontade quase incontrolável de se jogar de uma ponte, um sorriso macabro perante a idéia da morte rápida e inesperada. Pombas, mendingos, bancos. Uma praça cravada no sul da América do Sul, me trazendo memórias que não vivi. Relembrando fatos que não conheço. Tensionando meus músculos ao ponto de me fazer aqui, nesta praça, numa vigília incessante. Depor quem for contra meus irmãos, quem quiser tomar minha terra. Senti-me parte de algo que sabia não ser. Repugnavam-me os turistas tirando fotos, os grupos de pessoas sorrindo e falando português ou ingles. Incitava-me uma força interna e violenta a algum atentado. A Casa Rosada, exibindo seus guardas emplumados e estáticos. Sentei-me. Olhei com indiferença para os imponentes prédios ao redor. Vi bandeiras tremulando, e senti o orgulho de quem trabalhava ou vivia com janelas virada para ali. Senti-me então traído por nacionalismos que não existem em mim. Monumentalizaram a pátria. Juntaram num mesmo saco todas as bandeiras, todos os interesses, todas as angústias, e disseram "esta é Argentina". O país parecia de fato estar acima de todos. Ou melhor, o país era todos. A maneira de falar o espanhol. As propagandas tão hipócritas quanto as do resto do mundo (a una amiga nunca se deja sola - cigarrillos philip morris).
Levantamo-nos e pegamos o metrô. Havia o silêncio, e o apito do guarda. O silêncio, reprimido. As portas então, fecham-se. O silêncio, o apito do guarda, as portas fechadas. Rumamos para Palermo Viejo.

Espaço. É tudo que posso dizer sobre esse bairro. Também tem verde, zoologico, praças, mas tudo se insere de maneira quase milimétrica na exatidão dos grandes espaços. Os grandes espaços onde é impossível se perder, mas é muito fácil errar. Erramos, não era a Palermo Viejo que tinhamos que ter vindo. A rua que procuramos fica no centro. Impressionou-me como os argentinos (selecionados) de Palermo pareciam sentir-se bem nessa imensidão vasta de Argentina. Eram simpáticos e prestativos. Os cavalos enfeitados que levavam crianças também felizes a um passeio por 25 pesos. Tudo aqui sorria. Vamos ao centro.

Centros são, quase sempre, efusivos e radiantes. Fábricas de extâse coletivo, materializados pelas luzes e vitrines aglutinadas, atiradas ferozmente em retinas sem aviso. Corpos andando num ritmo como o dos peixes, milhares, sem se tocar. Todos olhando aos pontos fixos, e o mundo se diminui, ou aumenta. Entramos nessa, já que o centro de Buenos Aires não fugia à regra. Eu querendo toda a coleção dos livros de Cortazar (baratíssimos), e minha amiga selecionando um ou outro filme nos cartazes (e querendo os livros do Cortazar). A rua Corrientes, um mar de água doce e quente. Infelizmente um pequeno contratempo nos aconteceu, e precisamos deixá-la. Desfrutamos dos serviços públicos, e para amenizar, fomos a um bar onde acontecia um show de jazz. À noite em San Telmo, todos os bares sao pardos. O unico critério para entrar ou não seria cara ou coroa. Por mais que andássemos, víamos sempre os mesmos rostos, nas mesmas mesas, etc. Esse etc. tornava a simples busca um enorme cansaço. Até que a sorte nos trouxe o jazz, e uma pizza de mussarela.

segunda-feira, 26 de março de 2007

Buenos Aires: a chegada




Buenos Aires, 02 de setembro de 2006

Chegar até aqui nao foi nada fácil. Nao me refiro unicamente às 33h preso na condução. Não. Apesar da distância e da demora, havia sempre a janela, e algo novo. Paisagens, nada excepcional, mas em todo caso, paisagens que ainda não havia visto, possibilidades de surpresa a cada quilômetro rodado. Esse instinto de curiosidade sempre me repele qualquer sensação de tédio ou de insegurança. Refiro-me, mais que tudo, ao longo caminho entre a vontade de estar em Buenos Aires e de fato estar em Buenos Aires. Muitos de meus planos apenas nascem e morrem, nunca crescem ou frutificam. Este não. Circunstancias foram me levando a cada vez mais quere-lo, e mesmo quando não pensava necessariamente nesta cidade, ela se encaixava perfeitamente ao desejo de uma fuga planejada.

Lembro-me de uns três anos atrás, quando Fernando, Gil, e eu, programamos ir a Buenos Aires. A vontade maior era estar com meus amigos, mas Buenos Aires me pareceu, além de tudo, um destino agradável e pitoresco para este feito. Não fomos, mas a vontade não morreu. A literatura ajudou: primeiro Borges, e depois Horácio Oliveira, quando Bons Ares se tornou quase obrigação. A conversa no porto, os arredores caóticos. Eu sentia que de alguma forma tinha de viver aquilo. E, mais recentemente, dissertando numa tediosa noite de domingo, rascunhei em algum canto: "eu ando precisando mudar de ares, de música nova, de uma língua nova.", e juro que nesse dia nao pensava nessa viagem específica. Como eu disse, Buenos Aires era a fuga perfeita.

Bom, como cheguei agora a pouco, posso falar apenas de minhas primeiras impressões. Viadutos... chegamos por uma parte da cidade com muitos viadutos. Apesar de achá-los belas construções, me incomodam, principalmente quando estou a pé. Me deixam um pouco perdido... mas logo passamos por eles, e a primeira claridade do dia apareceu. Veio a melhor parte: as árvores secas por causa do inverno.. todas, sem folhas, sem vida. Tudo opaco, acinzentando as fachadas dos prédios, os cachecóis, o rosto dos que acordam cedo, um cinza que não era triste, era apenas sóbrio. Esse cinza, que de vez em quando também acontece no Brasil, sempre me afugenta instantaneamente a felicidade e a tristeza. Sentimentos que talvez não sejam tão ajustados a minha personalidade.

Quando desci do ônibus o vento era cortante e implacável, e a minha primeira lembrança foi a Loveless. Sim, acho uma boa relação: corte, frio, sobriedade. Se você é muito emocional, nao controla uma Loveless.. se é muito racional, calcula melhor a temperatura da chegada e se precave. Mas era um frio que me dizia: vá em frente, isso não é um obstaculo, é um presente meu para você, que tanto quis me conhecer.

Agora vou deixar minhas bagagens no quarto, tomar banho, e ver o que mais essa mítica cidade me preparará.


"Son para el solitario una promesa
porque millares de almas singulares las pueblan
únicas ante Dios y en el tiempo
sin duda preciosas.
Hacia el Oeste, el Norte y el Sur
se han desplegado – y son también la patria – las calles" (Borges, Las calles)

sexta-feira, 23 de março de 2007

Nocautes Históricos: Marciano x Louis


Alguns nocautes são lembrados por serem plasticamente intocáveis. Outros, por terem acontecido em lutas envoltas por diversos fatores que as tornam especiais. O nocaute de Rocky Marciano em Joe Louis tem isso tudo em doses cavalares. A primeira frase que me ocorre ao lembrar dele é: "o fim de uma era inicia outra". Alguma coisa como se o sol, ao morrer, gerasse uma outra estrela, tão poderosa quanto. Se Joe Louis, com a carreira que teve, precisava ter se exposto a isso, é a pergunta que não cala. Lutar boxe deve ser difícil. Dedicar seu tempo e sua vida a isso. Deixar de lutar boxe é ainda pior. Joe Louis tentou parar. Ezzrard teria sido o último, mas o boxe tem lá suas nuances. Se Louis vencesse, a sua carreira, tão gloriosa, seria encerrada do modo mais nobre que qualquer pugilista poderia sonhar. Acho que, mesmo tendo perdido, não foi desonroso. Louis passou o bastão, e o fez em cima do ringue. Sucumbiu de um modo e tanto... Sim, foi um nocaute fortíssimo e que talvez Louis não merecesse. É um pouco confuso associar aquele garoto rápido como uma bala e preciso como nunca havia se visto até então, ao homem perturbado de alguns anos depois dessa luta. E ver Louis caindo fora do ringue... Não, Louis não merecia um nocaute desse. Mas Marciano merecia conseguir esse nocaute. O rapaz mostrava naquele momento o surgimento de um dos socos mais poderosos do boxe. Marciano nunca perdeu uma luta, e nocateou quase todos que o enfrentaram. Joe Louis foi não só a catapulta física para essa carreira irretocável, mas acredito que tenha sido a psicológica também. Não foi atoa que Marciano disse a Louis depois da luta "eu sou seu fã", e nunca escondeu a ninguém que Louis havia sido o grande inspirador de sua carreira. Porque se você nocauteia Louis, você pode nocautear qualquer um, como ele o fez. Imagino a cabeça do jovem Marciano ao ter em seu campo de visão, num determinado segundo, Joe Louis em queda livre e o seu braço esticado, ainda tocando o rosto do ídolo.