Lena Grove é uma
jovem que vai caminhando do Alabama ao Mississipi em busca de Lucas Burch.
Solteira e grávida ela decide ir atrás do pai da criança para se casar antes
do filho nascer. Burch a deixou prometendo avisar assim que se estabelecesse;
nunca mais mandou notícias. Por quatro semanas ela segue a pé atrás
de uma pista até ouvir dizer que havia um "Burch" trabalhando em uma serraria de
Jefferson, Mississipi. Ao chegar até lá Lena encontra Byron Bunch e percebe que,
provavelmente, houve uma confusão entre os nomes Bunch e Burch. Logo descobre, porém, que Lucas Burch está na cidade, mas agora usa o nome de
Joe Brown. Naquele dia, no entanto, todas as atenções estão voltadas para um grande incêndio na casa de Joanna Burden, uma mulher solitária que é ignorada há
décadas em Jefferson por ser descendente de uma família abolicionista que veio do norte
Byron Bunch é
um homem pacato e com certa fobia social, trabalha incansavelmente e faz horas
extras na serraria aos sábados. Nos domingos viaja 30 km para reger o coral de
uma igreja. Seu único amigo é Gail Hightower, um pastor aposentado há décadas,
expulso da igreja após o suicídio da mulher. Hightower vive sozinho e depois de
anos de perseguições morais e físicas passou a ser quase um fantasma na cidade,
mal saindo de casa. Ele chegou a Jefferson logo após o casamento, fez tudo para vir à cidade onde o avô morreu durante a guerra civil. Avô que lhe era quase uma obsessão: um soldado que morreu de forma prematura e
estúpida (levou um tiro enquanto roubava galinhas). Mesmo depois dos escândalos
pelos quais passou em Jefferson o ex-pastor não quis se mudar, continuou ali,
resistindo, até ser esquecido e passar a ser apenas uma sobra do passado na cidade.
Joe Brown, ou
Lucas Burch, a quem Lena procura, vive em uma cabana nos fundos da casa que
fora incendiada. Vendia uísque contrabandeado em sociedade com o misterioso Joe
christmas, o protagonista da história. A história de Christmas começa ainda no orfanato
onde descobre que apesar de sua pele branca ele tem sangue negro (fato que não
fica claro se verdadeiro ou não, mas é uma verdade que Christmas assume). Logo
na infância começa a ser perseguido por uma professora que pensa ter sido
descoberta por ele enquanto dormia com um funcionário, ela faz de tudo para que
ele seja enviado para um orfanato de negros. Depois é adotado pelo fanático
religioso McEachern e sua esposa, passando a infância e adolescência em uma
fazenda com o aprendizado da dor e da punição. O ódio e o completo desprezo a
qualquer tipo de compaixão, inclusive própria, são o resultado disso. Alguns
dos momentos mais raivosos da juventude de Christmas são exatamente contra a
mãe adotiva que tenta ser carinhosa e cúmplice dele. O que mais lhe assusta é a
possibilidade de que ela o faça se comover. Christmas então se apaixona por uma
prostituta que vive na cidade, e por causa dela acaba dando uma cadeirada na
cabeça do pai adotivo e fugindo. Passa anos vivendo com negros em
comunidades até que chega a Jefferson e conhece Joanna Burden. Ela é mais velha
e eles têm um caso completamente doentio marcado por violência e mistérios de
ambas as partes. No dia do incêndio em sua casa ela é assassinada,
aparentemente por Christmas.
Seu assassinato
não havia causado nenhuma comoção em Jefferson, principalmente por ser uma
abolicionista (chamavam-na de Yankee). Tudo muda quando descobrem que
Christmas, o principal suspeito, possui sangue negro, o que torna sua punição
uma questão de honra para a cidade. Quem traz a informação até o xerife é
Brown (ou Burch), que está interessado na recompensa. A esta altura Lena ainda
não o viu, mas está sendo amparada por Byron Bunch, que se apaixonou por ela mas mesmo
assim prometeu levá-la até o pai da criança para se casarem.
A
perseguição policial a Christmas o leva em fuga até a cidade de Mottstown, onde é
preso. Lá vive um casal de idosos, os Hines, que são os verdadeiros avós de
Christmas. A filha deles (mãe de Christmas) morreu no parto quando seu pai, Doc Hines, se
recusou a procurar um médico, por ela ter engravidado de
um artista de circo, morto por Doc, um mexicano que,
segundo o dono do circo, tinha sangue negro. O neto é odiado pelo avô antes
mesmo de nascer e a morte da filha lhe parece justa pelo pecado que cometeu. A
avó tenta cuidar do neto, mas ele o leva para um orfanato onde
passa a trabalhar como porteiro para vigiar a criança. Assim que ficam sabendo
que o neto está preso, trinta anos depois, cada um tem uma atitude distinta. O
avô passa a fazer discursos públicos pelo linchamento, a avó tenta de alguma
forma salvá-lo. Os dois vão então até Jefferson, onde seria realizado o
julgamento.
Christmas é
levado a Jefferson, mas consegue fugir para a casa de Hightower. A esta altura
o ex-reverendo já fez o parto de Lena Grove e ouviu os apelos da avó para que
fosse o álibe de Joe Christmas. Já havia então em Jefferson uma espécie de milícia
liderada por Percy Grimm, da Guarda Nacional, que seguia o caso com sede de
morte caso o tribunal não condenasse à pena máxima o provável assassino. Quando
Christmas foge Grimm tem sua chance e não a desperdiça. Ao entrar na casa,
mesmo com os apelos de Hightower de que Joe era inocente, Grimm o mata e o
castra, para ele "deixar as mulheres brancas em paz, mesmo no
inferno".
Enquanto isso
Byron Bunch consegue levar Lucas Burch até Lena, sem que ele soubesse do que se
tratava. Ao entrar e ver a mulher com o filho nos braços ele dá um jeito de
fugir novamente, desta vez pela janela. Byron havia decidido deixar a cidade,
mas quando percebe que Lena está novamente sozinha ele volta. No último
capítulo ambos conseguem uma carona de caminhão até o Tennesse. Byron pede
continuamente a mão de Lena em casamento, mas como ela recusa continua a
ajudá-la a encontrar Lucas Burch. Como se os dois fossem passar a vida juntos,
viajando atrás de algo inalcançável e inútil.
Joe Christmas é
uma mistura de herói e anti-herói. Tudo nele tem certo exagero, um personagem
absurdo, como sua vida, como o racismo e o conservadorismo da sociedade
americana da época. Ao mesmo tempo em que assume sua condição de negro ele se
mantém racista: era natural odiar os negros, mesmo que você fosse um deles,
como neste diálogo imaginário com a mãe adotiva: "Escute. Ele diz que
criou um blasfemo e um ingrato. Eu a desafio a lhe dizer o que ele criou. Que
ele criou um crioulo embaixo do próprio teto, com sua própria comida em sua
própria mesa". Todos os personagens
são solitários, exilados, abandonados, amargos ou com esperanças vazias. O fanatismo é o pano de fundo, é o que justifica praticamente tudo
que acontece, como se fosse a única coisa certa e regente no mundo que recebe o
bebê de Lena Grove. Um retrato amargo e realista do sul dos Estados Unidos à
época, ainda abraçado ao cadáver quente da guerra civil. Todas as mazelas sociais recaem sobre
os personagens de Luz em Agosto, todos são alguma face sombria de sua época. Os dramas pessoais são perfeitamente construídos, como os
de Hightower. A imensidão épica que ele dava ao avô, soldado confederado, o faz
ficar eternamente preso ao passado, delirando com histórias que lhe fazem criar
um filtro psicológico para a realidade e o levam ao imobilismo. Assim como
Christmas, todos são um pouco caricatos, e este exagero parece uma escolha, Faulkner
cria com tanto detalhismo as vidas de seus personagens, dá-lhes uma forma de
pensar tão particular que é como se os víssemos por dentro de uma forma em que
não podemos julgá-los por conhecermos tanto seus pontos fracos. Entramos em suas
misérias particulares, vemos seus medos, suas limitações, principalmente as
limitações. Em resumo, é possível enxergar o porquê deles entenderem o mundo de
determinada forma. Daí todos ficarem um pouco exagerados, porque olhamos de
perto demais.
A narrativa em
Luz de Agosto segue o fluxo de consciência dos personagens. Não há onisciência,
mesmo o narrador em terceira pessoa só conhece a história até o ponto em que o
personagem a conhece, deixando inclusive lacunas que outros personagens podem
vir a cobrir. Christmas, por exemplo, nada sabe sobre sua primeira infância, e
o leitor também não, o que só mudará quando aparecerem seus avós. Os
personagens são a narrativa. O narrador, no entanto, a organiza e a constrói.
Porém, diferentemente de James Joyce em Ulisses e do próprio Faulkner em
Enquanto Agonizo, a consciência não domina a linguagem. Neste Faulkner a
linguagem do narrador molda a vida dos personagens ao contar suas histórias.
Ela explica e amplifica os sentimentos, dá-lhes uma forma artística sem deixar
de ser prosaica. Faulkner parte da consciência de seus personagens e a lapida, diferentemente do que faz, como citado, em Enquanto
Agonizo, onde ele deixa que os personagens construam a narrativa. Seguem abaixo
alguns exemplos:
(Joe Christmas e
a mãe adotiva)
Não era o trabalho duro que ele odiava, nem
o castigo e a injustiça. Estava acostumado a isso antes mesmo de ter visto
qualquer um deles. Não esperava menos, e por isso não se sentia ultrajado nem
surpreso. Era a mulher: aquela bondade suave da qual se acreditava condenado a
ser a vítima eterna e que odiava mais do que a dura e implacável justiça dos
homens. "Ela está tentando me fazer chorar", pensava, deitado frio e
rígido na cama, as mãos atrás da cabeça e o luar caindo sobre o corpo, ouvindo
um murmúrio constante da voz do homem como se ela subisse a escada para o
primeiro estágio a caminho do céu. "Estava tentando me fazer chorar. Aí ela
acha que eles teriam me submetido".
p. 150
Percebe-se então
que a narrativa e a voz de Christmas se completam, o personagem
exemplifica o que o narrador explica.
Já em outros trechos, como o descrito abaixo, o próprio personagem pode se
explicar por completo:
(conversa entre
Hightower e Byron Bunch)
"Por que você passa as tardes de sábado
trabalhando na fábrica enquanto outros homens estão se divertindo na
cidade?"(...).
"Não sei", disse Byron. "Acho
que a minha vida é esta mesmo".
"E eu acho que a minha vida é esta
mesmo, também", disse o outro. "Mas agora sei por quê", Byron
pensa. "É porque um sujeito tem mais medo do problema que poderá vir a ter
do que do problema que já tem. Ele se agarrará ao problema a que está
acostumado em vez de arriscar-se a uma mudança. Sim. Um homem falará sobre como
gostaria de escapar dos vivos. Mas são os mortos que lhe causam dano. É dos
mortos que jazem quietos num lugar e não tentam agarrá-lo que ele não pode
escapar".
p. 67
No trecho abaixo
há apenas uma pequena interferência de Hightower em meio ao trabalho do
narrador (e por sinal uma intervenção do narrador quando Hightower está
falando/pensando), o modo como se organiza a memória, detalhista e precisa. O
ex-pastor escuta de sua casa os sons da cerimônia e lembra como era em sua
época, misturando passado e presente para formar uma coisa única, atemporal,
onde sobrevive:
Esperando, observando a rua e o portão da janela do estúdio às escuras, Hightower ouve a música distante no momento em que ela começa. Ele não sabe que a espera, que todas as noites de quarta-feira e domingo, sentado à janela escura, ele espera que ela comece. Sabe quase o segundo em que deve começar a ouvi-la sem recorrer ao relógio de bolso ou o de parede. Ele não usa nenhum dos dois, já não precisa deles há vinte e cinco anos. Vive dissociado do tempo mecânico. Mas por essa razão ele nunca o perdeu. É como se no seu subconsciente ele produzisse, sem querer, as poucas cristalizações de instâncias estabelecidas pelas quais sua vida morta no mundo real fora governada e ordenada um dia. Sem recorrer a relógio ele poderia saber imediatamente, pelo pensamento, precisamente onde, em sua vida antiga, ele estaria e fazendo o quê entre dois momentos fixos que marcavam o começo e o fim do serviço dominical matinal e do serviço dominical noturno e do serviço de oração na quarta-feira à noite; precisamente quando estaria entrando na igreja, precisamente quando estaria trazendo para um desfecho calculado a oração ou o sermão. Assim, antes de o crepúsculo ter desvanecido por completo, ele está dizendo para si mesmo 'Agora eles estão se reunindo, se aproximando pela rua lentamente e virando para entrar, saudando-se uns aos outros: os grupos, os casais, os solteiros. Uma ou outra conversa informal na própria igreja, em voz baixa, as senhoras de sempre um pouco sibilantes com leques, acenando com a cabeça para as amigas que chegam enquanto passam pela nave. A srta. Carruthers (ela era sua organista e já morrera há quase vinte anos) está entre elas; logo ela se levantará e entrará no balcão do órgão' Reunião para orações no domingo à noite. Sempre lhe pareceu que naquela hora o homem chega mais perto de Deus, mais perto do que em qualquer outra hora de todos os sete dias. Só então, entre todas as reuniões religiosas, existe algo daquela paz que é a promessa e o fim da igreja. A mente e o coração se purgavam então, se assim devesse ser; a semana e seus desastres, quaisquer que eles fossem, terminados e somados e expiados pelo furor duro e formal do serviço matinal; a semana seguinte e seus possíveis desastres ainda não nascidos, o coração aquietado agora por algum tempo sob o fresco e suave sopro da fé e esperança".
p.319a
Em relação ao
título, sempre me pareceu haver uma relação entre "luz" e o
nascimento do filho de Lena. Há uma aparente releitura do nascimento de
Cristo, até alguma semelhança, como entre a cabana onde ela dá a luz e a manjedoura,
ou os três personagens que estavam com ela no momento (os Hines e Hightower) com os três reis magos, e além de tudo o nome de seu outro personagem, Christmas. Até mesmo a capa da edição
brasileira mais recente, da Cosac Naify, mostra uma sombra sobre uma
adolescente, mais especificamente a barriga de Lena Grove. De toda forma
algumas pesquisas me indicaram que o próprio Faulkner refutava esta relação e
dizia que em agosto, no Mississipi, em alguns dias a luz do sol lhe dava a impressão de que estava em outra época, uma época clássica, como a Grécia antiga.
Luz em Agosto é um clássico maiúsculo. Impossível não se sentir inserido na história americana, além da usual aula de técnicas literárias que Faulkner nos proporciona.
Luz em Agosto é um clássico maiúsculo. Impossível não se sentir inserido na história americana, além da usual aula de técnicas literárias que Faulkner nos proporciona.
FAULKNER, W. Luz em Agosto. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007.