
Ao colocar a chave sobre a mesa, ouvindo o barulho alto do vidro, lembrou-se que ele pediria que não fizesse aquilo. Era uma mesa grande para o cômodo. Muito bem cuidada, apesar da idade. "O vidro arranha, do jeito que você joga essa chave, qualquer hora ele quebra". Um vidro dessa espessura não quebra, pensava ela. Retirou a chave, e pendurou-a no porta-chaves. O tamanho da mesa tornava quase um reflexo colocar qualquer coisa sobre ela. Quantas e tantas discussões por não estar vazia: apenas o forro, o jarro, e a própria mesa. Ao pendurar a chave resmungava contra aquilo. "Você era tão chato que mesmo não estando aqui me assombra com suas manias". Sentiria remorso ao contrariá-las. Mais remorso do que quando fazia algo sabendo que ele chegaria em casa e brigaria. Como é estranha essa sensação de não ter de te esperar. Parece que o ar e tudo fica tão cheio de você, como se antes você anulasse tudo isso com sua presença. Ah, mas como eu sou boba, o ar é o mesmo, é tudo a mesma coisa. Até o silêncio é o mesmo. Sim, você imóvel daquela forma nunca quebrava o silêncio. Ruíam cascas da parede, formigas, mosquitos, a brisa, mas isso tudo era silêncio e continua sendo o mesmo. É estranho o fato de que antes a esperança era quanto ao dia em que o silêncio seria mais profundo. Que viria o estopim, as portas batendo, o carro arrancando, e de repente, tudo tornaria a ser um silêncio calmo e sem peso, sem você. Quando você voltou, pela última vez, eu já havia me despedido. Acredito que você também. A última vez que sonhei com nós dois, estávamos em um trem. Era estranho, parece que íamos para alguma faculdade, em meio a muitos jovens que usavam roupas de formatura, mas era outono e não estavam em clima de festa. De um banco olhávamos, depois você quis entrar em uma das cabines e eu te impedi. Não entendi nada desse sonho, só me lembro dele por ser o último. Quem sabe agora eu não volte a sonhar contigo? Mas sim, como eu dizia, antes a esperança era de que o silêncio se tornasse mais profundo. Agora, quando esta sala lembra um entardecer na memória, tudo parece abstrato e esfumaçado, a esperança é de que um dia possa se ouvir, aqui neste mesmo ambiente escuro e calado, um som espontâneo cortando o ar e surpreendendo estas velhas paredes. Esperança, ou talvez apenas curiosidade. Se um dia tudo vai parecer sólido e firme novamente. Se vão ranger as madeiras. Ou se passou mesmo esse tempo, sem migalhas do passado, e o que se reserva a tudo isso é um fim que provavelmente desconhecerei, como velhos soldados aposentados e inválidos em asilos. Só me resta esperar e continuar com essa esperança, ou talvez curiosidade. Não que eu tenha tempo para esperar, só não resta muito além disso.