quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Resenha de "Aldeias da solidão", de Justino Alves Lima



Em seu novo livro, Aldeias da Solidão, publicado pela editora Criação, o bibliotecário e amigo Justino Alves Lima analisa o problema relativo à falta de políticas de informação e, consequentemente, de aparelhos informacionais, mais notadamente as bibliotecas, em comunidades periféricas do entorno do campus São Cristóvão da Universidade Federal de Sergipe, traçando um paralelo do contraste entre os “vizinhos”, e também com o desenvolvimento da interação e explosão informacional em âmbito global. Afinal, não há melhor forma de observar e analisar o todo do que pela nossa parte, especialmente no caso dele, que atuou por décadas na UFS. Como dizia Fernando Pessoa, na obra de Alberto Caeiro: “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”. Ainda que, no caso de Justino, não seja bem o caso de apontar as virtudes, mas de lutar para construí-las.

Após um hiato entre a publicação de Bibliotecas & bibliotecários: situações insólitas, em co-autoria com Oswaldo Francisco de Almeida, Justino publicou duas novas obras nos últimos dois anos. Aldeias da solidão sucede Catedrais do silêncio, publicado em 2023. É perceptível a coerência do autor na escolha dos títulos de suas obras recentes. O ponto em comum são os espaços que pressupõe algum tipo específico de sociabilidade, seguidos por adjuntos que os problematizam: da vivência pública e coletiva nas aldeias, que define uma comunidade enquanto grupo, ao tempo em que a diferencia de outras; à transcendental e privada, interiorizada nas catedrais. Em ambos os casos, estabelece-se uma relação comparativa com as bibliotecas públicas e suas comunidades usuárias, e por isso temos o contraponto, especialmente no que se refere à cultura, que deveria pressupor a socialização e a agitação, e não solidão e silêncio. Essa é uma tônica das obras, a contestação e a reflexão sobre questões normalmente estagnadas, que passam a figurar como letra morta, casos perdidos, e assim as aceitamos, como se a normalidade nos impusesse a derrota. Ele não aceita. Demonstra as falhas de um sistema viciado, tanto em termos de concepção de Estado, da questão pública, até a categoria profissional dos bibliotecários, compondo um mosaico complexo dessa estrutura que engloba cultura, leitura e informação.

Os pontos em comum não são por acaso, há uma relação entre as obras, embora não de forma direta, tampouco uma é continuação da outra. A ligação se dá na defesa das bibliotecas públicas como agentes de integração e desenvolvimento humanos, sobretudo para as classes populares, constantemente ignoradas no cada vez mais explícito projeto de manutenção de riquezas e privilégios para poucos, em detrimento da maioria que apenas sustenta com seu trabalho o abismo social. Nesse sentido, as obras também revelam o lento e cruel processo de, em um primeiro momento, elitização da informação e, em um segundo, de esvaziamento. Em Catedrais, o autor discute a ineficácia das políticas públicas que priorizam a arquitetura e o acervo, em detrimento da localização e adequação da estrutura ao público. Agora, em Aldeias, ele faz o caminho contrário: vai até as comunidades sem unidades informacionais para discutir suas necessidades informacionais que não são atendidas, sequer consideradas. 

Aldeias da solidão parte do ponto de vista da teoria das aldeias globais, do teórico da comunicação canadense, Marshall Mcluhan, para analisar comunidades periféricas no entorno do maior campus da UFS. A utilização da teoria, que pretende explicar categorias que atravessam o fenômeno da globalização, transformando hábitos e unificando a humanidade em certa medida, para o bem e para o mal, se contrapõe à falta de acesso às informações nas periferias brasileiras, que as deixam à margem dos processos históricos. Isto ocorre na mesma sociedade que dispõem de lugares hiper informacionais, os não-lugares, de Marc Augé, conceito apresentado por Justino na obra, onde o cidadão pode imergir em sua solidão de forma plena, pois está contemplado e abastecido por recursos informacionais necessários à sua completude, como em aeroportos e centros comerciais, opondo-se às comunidades citadas, onde a solidão coletiva se dá pela falta de acesso ao básico de informação cidadã. Assim, fica evidente que o bonde da história está, na contemporaneidade, mais para uma estação em que uns embarcam primeiro que outros, se é que alguns têm o direito de embarcar.

A era da informação, que se anunciava como uma alternativa democrática, por supostamente diminuir a distância entre usuário e informação, onde a socialização do conhecimento seria facilitada pela difusão tecnológica, acabou, ao manter a concentração de poder, sendo mais um motivo para a manutenção da era da desigualdade, que se estende em seu método desde os primórdios da modernidade. Mais uma vez, aquilo que deveria ser um bem essencial de melhoria da qualidade de vida, de consciência e identidade, torna-se um produto, valorizado apenas enquanto meio de consumo.

Ao demonstrar o que ocorreu no entorno da UFS, Justino nos faz enxergar esse panorama na prática. O autor esmiuçou o aspecto em diversas formas, demonstrando como a percepção de informação é colocada em via de mão única, por exemplo, sem alternativas práticas e institucionais por meio do Estado. Justino ressalta a atrofia do termo no imaginário social, quando informação, inclusive pela via legal, é fortemente associada apenas às mídias tradicionais de difusão, como rádio e a televisão, e ligadas ao jornalismo. Atualmente, podemos inclusive discutir como as redes sociais, que parecem alterar essa lógica, mantêm em essência os princípios da inclusão e exclusão social.

A cidadania está alienada de uma informação popular, cultural, alternativa, entre as descritas pelo autor como caminhos e possibilidades que perdemos ao longo das décadas, por culpa inclusive nossa, os profissionais da área, muitas vezes alheios aos desafios de seu campo, mas, sobretudo, à política institucional, incapaz de enxergar em formação cidadã uma alternativa viável para investimento (não apenas financeiro, mas também humano), como se vê descrito em Aldeias da solidão, ao diagnosticar a falta de estrutura e profissionais qualificados de informação nas comunidades analisadas.

Para alguns, ou para muitos, pode parecer um pouco fora de lugar discutir o investimento público em bibliotecas públicas na era da superinformação, em que qualquer um, e qualquer um mesmo, é bombardeado diariamente com um volume de informação maior do que pode dar conta, e em todos os níveis. De informações pessoais dos amigos, “seguidores” e influencers nas redes sociais até informação política, comunitária (infelizmente dominada apenas pela violência) e jornalística, agora filtradas de acordo com o crivo do algoritmo e de quem paga mais para impulsioná-las. Não que o modelo tradicional da imprensa também não tivesse seus problemas, mas havia muito o que melhorar, e não piorar. Aqui vem justamente um dos importantes tópicos abordados pelo livro, a informação tratada como monopólio dos meios de comunicação e redes sociais, além da distinção essencial entre a informação para entretenimento e a informação para exercer o direito à cidadania, voltada para ressignificar materialmente as condições de vida, especialmente aquelas comunitárias. Aí entram os fatores como mediação, acervos e estruturas.

Nesse sentido, Justino detectou que as comunidades às margens do desenvolvimento econômico se tornaram lugares de não informação. Sua conclusão nos ajuda a entender, por exemplo, o terreno fértil que se formou para as crescentes quadrilhas de falsas notícias, como as que proliferam atualmente a internet, geralmente movidas por interesses políticos específicos e com um exército de robôs por trás, para impulsionar e fazer seu conteúdo chegar ao maior público possível que, sem alternativas, consome muitas dessas como se fosse a única verdade possível.

Ainda sobre a prática cotidiana, que é a tônica do livro, embora muito ancorado na teoria, o que Justino nos demonstra, a partir da premissa inicial de oposição entre aldeias globais e não-lugares, é: uma universidade federal, local em que a informação não só circula, como também é produzida, cercada por uma formação urbana que não tem acesso mínimo à informação para a cidadania básica. Esse contraponto demonstra diversas questões, como a de que fatores geográficos, por si só, não são suficientes, e de que o abismo entre teoria e prática ainda é quase intransponível no modelo de sociedade em que vivemos. Cada vez mais isolados, como pessoas ou comunidades, distantes do que João Cabral de Melo Neto realizou no poema “Tecendo a manhã”, para que algo novo se crie: “Um galo sozinho não tece uma manhã: / ele precisará sempre de outros galos. / De um que apanhe esse grito que ele / e o lance a outro; [...] e de outros galos / que com muitos outros galos se cruzem / os fios de sol de seus gritos de galo, / para que a manhã, desde uma teia tênue, / se vá tecendo, entre todos os galos.”

Conhecido nos meios bibliotecários de todo o país, especialmente por sua atuação na representação da classe em Sergipe nas décadas de 1980 e 1990, bem como sua atuação ligada à área cultural nos anos 1990 e 2000, Justino mais uma vez nos brinda com uma obra densa que nos deixa reflexivos. É um pensador atrelado à prática. Que suas ações, como a escrita desse livro, nos levem de volta a uma possibilidade de futuro que um dia já foi imaginado, mas que soa cada vez mais distante.